domingo, 28 de dezembro de 2014

Fora de casa

Eu imaginava lá como uma masmorra
Acorrentado todas as horas de sol embaixo da terra
Escutava passos e o resmungar dos doidos
Logo após o tilintar apressado de alguma corrente
Era proibido gemer e chorar
Só era permitido sorrir
Pois a pena era se condescender à pena
E eu era tão triste, mas tão triste
Que quando de lá depois voltei
Esperava pelo menos um soco,
Ou uma lágrima
Mas eu ainda não tinha as forças
para chorar de tudo aquilo

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

manhã de quinze de dezembro de 2014.


Nane deve ter gasto naquelas três horas de viagem mais de cinquenta reais de crédito. Seu tio tinha falecido no dia anterior, que coincidentemente era o dia anterior do aniversário de seu irmão, pai de Nane. Por esses dois motivos explícitos Nane então iria naquele dia fazer um lanche com o pai e a madrasta, Neuza, em São Paulo. Era uma surpresa.

Nane parecia uma ótima pessoa, daquelas que possuem ainda uma paciência sincera para escutar com eloquência e oferecer conselhos preocupados, e mesmo ainda que esses girassem em torno de misticismos, eu fazia força para escutá-la além dos jargões dos centros espíritas.

Por isso tudo a tal surpresa carregava um diálogo riquíssimo entre a morte e a reencontro.

Tentou discar primeiro ao pai, que por motivo de estar no trabalho não atendeu. A segunda opção foi a madrasta, que de tanta empolgação com sua chegada quase falava sozinha ao telefone, no sentido que suas palavras sobrevoavam Nane como se ela nem estivesse ali oferecendo levar uma sobremesa. Era o esquema do dia sendo apressado com carinho. Neuza  pôs à mesa a questão de convidar também a tia que ficara viúva, Lúcia, a que Nane respondeu oferecendo-se com prazer para depois acompanhar a tia na volta em um táxi, deixando-a em casa a indo depois até o lugar onde posaria, que aparentemente não seria a casa do pai, mas sim em outro lugar.

Depois foi Leonora. E depois. E de novo, até que a ligação funcionou e elas puderam se escutar. Antes que Leonora pudesse expor seus planos e idéias, Nane já deixou claro o compromisso naquela tarde com o pai ao mesmo tempo que a total disponibilidade para os próximos quatro dias. A despedida selou as expectativas e ânsias energeticamente, e "tchaus" atropelaram-se até cessar.

Depois a mãe de Cristina, uma velhinha simpática da cidade de onde Nane acabara de sair, mas apenas para que pudesse perguntar o então telefone de Cristina, que também morava agora em São Paulo. E então foi para Cristina. E dessa vez não sei ou não me lembro o que se passou, mas de alguma forma, sem tentar abstrair, deve ter sido como no caso de Leonora.

Finalmente por último foi o pai, que agora era o que fazia a ligação. Tinha chego em casa e Neuza havia lhe informado, provavelmente com empolgação, sobre os rumos daquela tarde. Combinaram então de se encontrarem no metrô, onde o pai a buscaria de carro.

Pode-se dizer que Nane não me deixou dormir naquelas três horas. Mas eu também não a calei, e acabei dormindo um pouco sim nos curtos intervalos de um telefonema a outro. Quando chegamos em São Paulo, fiquei sem a imagem real, somente com a especulativa, de Nane, que provavelmente desceu do ônibus atrás de mim, cheio de expectativas.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Por que?

Todos os dias eu acordava
a porta já estava
aberta
e eu saía para tomar
um ar.
Por que? - eles me perguntavam.

Um dia passou um homem
e olhou como se eu fosse
fantasma.
Eu olhei de volta,
parado.
Por que? - eu me perguntava.

Naquela manhã aquele homem
tinha espancado
alguém.
E de tanto bater,
matou.
Por que? - nos perguntávamos.

Entrei correndo em casa,
sentei em frente da
televisão,
e só me levantei às cinco
da tarde.
Por que? - aparentemente não se sabe.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

uma pequena estória de terror psicológico, ou, uma parábola sobre a solidão e a dependência

nos últimos tempos a minha casa passou a ser assombrada. eu não sei bem o motivo. não é como se alguém tivesse morrido aqui. mas coisas estranhas começaram a acontecer. não o tipo de coisa que pode ser ignorada facilmente. não é como se uma coisa que deixei em cima da mesa caísse do nada. não é o som de alguém andando no forro. essas coisas sempre aconteceram, e sempre foram normais. as coisas caem por causa do vento e o espaço entre o telhado e o forro é um ambiente ideal para gatos que querem fugir da chuva ou talvez outros animais. não duvido que morem alguns morcegos ou até uma coruja, quem sabe. não, as coisas que vem acontecendo são mais sutis. é a sensação de que alguma coisa está logo ali, atrás de mim, e, se me virar, vou dar de cara com ela. mas quando olho não tem nada lá. ainda assim, a sensação não se vai. é saber que não estou sozinho no quarto quando apago as luzes e vou dormir. é ser obrigado a escovar os dentes encostado na parede porque, em qualquer filme de terror, sempre vai aparecer uma criatura no espelho do banheiro. é ouvir distintamente um voz, mas não conseguir entender as palavras nem descobrir de onde vem o som. e os sonhos. acho que são sonhos. espero que sejam. apesar de serem tão reais.
num deles eu tenho a impressão de ter acordado. de estar no meu próprio quarto. pelo pé da porta entre uma luz, só que não é luminosa. é uma coisa quase material, como se a luz tomasse forma de névoa. eu sei que tem alguma coisa do outro lado. não posso fazer nada sobre isso. a simples presença daquilo, seja o que for, me assusta. continuo deitado, fingindo o melhor que posso que ainda estou dormindo. quem sabe assim a coisa não me deixa em paz. mas a coisa fala. e eu, deitado na cama, sonhando, entendo. entendo mas esqueço. só sei que continuo fingindo, imóvel de medo. nem toda a coragem do mundo seria suficiente para me fazer levantar e ir até aquela porta, nada conseguiria me fazer abrir e encarar o que quer que esteja do outro lado. nada a não ser a própria coisa. será que o que a coisa me diz é uma ameaça? será que toda noite, quando o sonho se repete, a coisa se enfurece e exige que eu vá e abra a porta? e se um dia ela não precisar de mim para abri-la? vai jogar toda sua raiva sobre mim? enquanto isso não acontece, continuo a sonhar.
quando acordo, já pelo meio do dia, sem lembrar dos detalhes, tento me convencer que sonhos recorrentes não são assim tão raros, e com essa pequena mentira consigo viver o meu dia, mais ou menos tranquilamente. mas quando escurece a casa começa a se tornar estranha novamente. me vem imediatamente um calafrio, como se alguém respirasse no meu pescoço, como se alguma coisa se movesse e eu quase conseguisse ver com o canto do olho. nunca tive muito medo dessas coisas. sempre imaginei que nunca fui odiado o suficiente para que alguém viesse do outro mundo com o simples intuito de me assombrar. mas talvez eu estivesse errado. talvez a criatura estivesse se sentindo só. e conseguisse sentir a minha própria solidão. talvez tenha vindo não para me assombrar, mas para me fazer companhia. e, saber que ela está ali, quase ao meu alcance, me conforta tanto quanto me assusta. se ela veio por isso, não devia eu abrir a porta? penso assim e tento criar uma resolução. essa noite, quando ela pedir para que eu abra a porta, em meu sonho, vou me levantar e abrirei. seja o que for, se se importa tanto assim comigo, merece meu amor. toda as noites vou dormir pensando nisso, mas quando vejo a névoa entrar por debaixo da porta o medo continua a me congelar. é como se uma aura viesse do outro lado e me impedisse de me mover. finjo que continuo a dormir para que ela, a criatura do outro lado da porta, não se decepcione e vá embora, para que não ache que não abro por má vontade, por não reconhecer sua dedicação a mim.

acordo depois da uma da tarde e tento me convencer: sim, essa noite, esta noite vou abrir a porta, seja lá o que estiver atrás dela. 

sábado, 6 de setembro de 2014

Crônica de uma viagem maluca

O homem cego de um olho numa baita cicatriz arca-se em direção aos outros e a preço alto oferece-lhes frutas numa caixinha debaixo de um sol escaldante desde as primeiras horas da manhã num vento lancinante e vê-se sempre preso do lado de fora das janelas cujas vistas pode enxergar somente de forma indireta pelo reflexo do insulfilme. O escritor conclui que é escravo da visão e que a base da literatura está nos detalhes da descrição a partir da observação atenta cotidiana policiada e impressionante e tem dificuldades em se expressar. Os médios arbustos aparentemente a o que eu acho uns cem metros ali para frente na descaída daquele morro em lusco fusco riem exaltados com as carícias e o cumprimento do vento seu velho amigo que traz as notícias do dia das cicatrizes da literatura e das estrelas que se fazem tímidas por ainda estarem a pouco número e avançam imperceptivelmente a quem passa pela estrada a muitos quilômetros por hora. Enfim vem o resto de um dia e lá a espera de alguém um velho pensa em seu avô e no que ele pensava do avô dele e que tempo curto esse que agente vive mas pensa também no próprio pai no filho e no neto que nem chegou a conhecer tanta gente assim mas talvez já andou de montão mas mesmo assim não deve se lembrar dos caminhos porque como já disse passa a muitos quilômetros por hora e é de se impressionar e depois pensa como é tolo se fazer pensar nisso só por que é velho acham que não pode pensar em mais nada porque velho tem essa de ter muita vida vivida e lembrança de verdade e estar sempre mais perto de casa e também do FIM.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um e outro alívios

Ela está esperando no ponto de ônibus, e está frio, mas não de um jeito pro qual ela estaria preparada, se já não morasse em São Paulo há algum tempo. Mas a coisa importante mesmo deste texto não é o fato de ela estar lá esperando, ou aquela sensação engraçada de expectativa que ela está sentindo, esse tipo de sensação que a gente sente quando está pra fazer alguma coisa pela primeira vez.
Não.
A coisa importante, pelo menos para mim, é que ela vai morrer. Não agora, não. Eu não acho que eu sei lidar com esse tipo de estória ainda. Nem daqui a poucos anos. Ela não tem nenhuma doença crônica misteriosa nem nada - além de um leve desconforto na gengiva quando ela usa pastas de dente que não sejam infantis. Ela vai morrer, provavelmente, só daqui a uns sessenta, setenta anos, bem depois de o texto já ter acabado. Talvez oitenta, se ela seguir até o fim da vida aquele programa maluco de dieta e exercício que a irmã dela inventou de elas fazerem, mas ela dificilmente vai ter paciência pra isso.
É importante que ela morra, e que eu esteja consciente disso, porque ela está consciente disso, o que é muito interessante. Eu gosto muito de escrever e ler sobre deuses e feiticeiros que vivem milênios e heróis e heroínas cujas canções os transportam para a eternidade, pode ter certeza. Mas ela não é uma dessas pessoas, e ela sabe disso, e isso provavelmente torna o sentimento do vento frio no pulso dela diferente, por mais que ela não se lembre disso em sessenta, setenta anos.
Caramba, eu nem sei o que vai pegar ela daqui a sessenta, setenta anos, mas pode ser que ela nem se lembre do que ela ia fazer hoje, com quem, e do porque isso era importante. Mas ela provavelmente vai se lembrar dessa sensação engraçada de expectativa que a gente sente quando vai fazer alguma coisa pela primeira vez. Não sei se ela ainda vai ter muitas coisas pra fazer pela primeira vez na vida daqui a sessenta, setenta anos, mas quem sabe? De qualquer forma, é uma sensação universal o suficiente pra ela se lembrar.
Pelo menos, é universal dentro do universo de nós dois, porque ela sente a sensação mais ou menos do jeito que eu sinto, então já é um universo maior do que a gente, certo? E talvez você também sinta, eu sei lá.
A coisa importante sobre ela ser só alguém que vai morrer daqui a pouco é que ela sente esse tipo de coisa que deuses e heroínas e feiticeiros provavelmente não sentem, e isso é muito interessante. Por exemplo, paulistana prevenida que é, o vento não a incomoda tanto pelo frio, mas porque está batendo no cabelo dela de um jeito que ela não gosta, porque isso vai deixá-lo embaraçado ou de alguma forma assimétrico, mas assimétrico do jeito errado.
Isso a incomoda por dois motivos:
Primeiro, isso a incomoda porque, por algum motivo, é importante que o cabelo dela esteja hoje, nessa ocasião em que ela vai fazer aquela coisa pela primeira vez, seja qual for, é importante que o cabelo dela esteja em ordem.
Segundo, isso a incomoda porque ela gosta de acreditar que não é uma dessas dondocas que ficam horas se arrumando na frente do espelho ou, ainda pior, em um salão de beleza, só pra fazer coisas, inclusive bem menos importantes que a coisa que ela vai fazer hoje.
Isso, por sua vez, a incomoda por dois motivos:
Primeiro, porque ela se lembra de que, por mais não dondoca que seja, e por mais que só gaste dinheiro com alguma coisa de maquiagem pra mãe dela e pro pessoal do trabalho não encherem o saco, e por mais que o penteado favorito dela seja prender tudo como der pra prender, ela até que sim, de vez em quando, quando passa um ônibus mais devagar, ou quando o metrô está parando, ou quando passa ao lado de um prédio espelhado, ela se dá uma olhada, confere se a postura está boa, elogia a disposição das cores da roupa que ela escolheu de manhã etc. Então ela tem que impedir a mente dela de discutir consigo mesma se isso é, de alguma forma, uma incoerência, o que é em si um saco - a mente dela é boa em contra-argumentar.
Segundo, porque ela acha que pensar nas dondocas como dondocas, além de ser terrivelmente século XX, pela terminologia, é uma coisa potencialmente muito machista. Eu não tenho certeza se ela pensa isso mais em termos de sororidade, ou de controle dos corpos, ou sei lá o que mais, porque ela provavelmente não lê os mesmos blogues que eu, e parece que curte muito a Judith Butler (de quem eu não li quase nada) e eu não tenho certeza como ela pensa sobre tudo o tempo todo, afinal.
Isso é também muito interessante e, eu acho, talvez um pouco assustador.

Tomando guaraná com você


Num ímpeto de ataque meu pai se projeta frente à minha mãe com a faca na mão. Ambos bêbados. Minha tia grita e se atira em cima dele para tentar impedi-lo, e meu tio vai atrás afim de derrubá-lo de vez, mas não antes que ele golpeie rapidamente a lâmina nas costas de sua cunhada. Minha tia morre, e ao receber um golpe cheio do irmão, meu pai roda e deixa a lâmina na própria barriga. Ele sangra muito, engole sangue, cai e também morre. Minha mãe grita em desespero e meu tio, em choque, tem os olhos abertos mas não olha em nada, e as lágrimas escorrem. Acho que corro, acho que desmaio, acordo no inferno e lá estão todos eles. Reencenam a cena de novo e de novo com infinda ira. Escuto risos. É meu próprio riso. Delirava. Acordo. Agora há um carpete de sangue. Minha mãe ainda grita, perdeu irmã e marido, eram todos uma família unida desde 85, e meu tio a sacode violentamente gritando calma. As pessoas chegam todas de fora para dobrar a realidade de novo, limpar, reparar os danos e continuar com o tempo. Olho o céu, as nuvens são imensuráveis, além delas não posso nem cogitar, sou também imensurável. Volto o olhar abaixo, olho o conteúdo que sorri ao mundo, engulo, olho ao lado, você me olha de volta. Não sei se algo importa nisso, mas sorrio de volta a ti. Obrigado, pelo menos agora posso sentir o gostoso do guaraná.

domingo, 3 de agosto de 2014

Sobre a paciência

Ele era um bom cozinheiro. suas habilidades conquistadas com anos de prática incessante, a ponto de muito já haver se tornado um processo mecânico. era um escape, um tempo em que parava de pensar na vida, e se deixava guiar completamente pelas mãos e pelos estímulos de seus sentidos. algumas pessoas encaram a cozinha como algo muito racional, uma ciência, outras com o senso estético, uma arte; para ele era apenas um hobby, sem grandes pretensões. a cozinha era a parte mais bem cuidada de seu apartamento, era branca, fria, antisséptica, enquanto todo o resto era bagunçado e não raro um tanto quanto sujo. seus utensílios eram de primeira linha, nada de facas guinso, para amadores, todas tinham seus usos específicos, como instrumentos de um cirurgião, e eram organizadas, ainda que inconscientemente, de forma harmônica. poderia muito bem ser algo saído de uma revista de decoração ou filme.
Estava cortando pimentões à julienne, completamente imerso no aroma levemente adocicado e nas cores, amarelo e vermelho. aquele era apenas o primeiro passo, mas seu paladar já ansiava o sabor do prato final. apesar disso seus movimentos eram repetitivos, algo que já havia feito muitas vezes antes. não precisamos saber o que estava fazendo, porque seja lá o que fosse, nunca foi terminado, nunca foi além daquelas fatias milimétricas de pimentão. a monotonia do processo se apossou dele, de forma que deveria ser completamente inofensiva, e o fez bocejar. as mãos, no entanto, se confundiram com isso, e uma continuou a fatiar enquanto a outra esqueceu de se mover e, ainda com os olhos fechados como reflexo do bocejo, sentiu a faca entrar em sua carne, respondeu rapidamente, evitou que o corte fosse mais profundo. mas, ao olhar para o indicador machucado, ele não conseguiu entender muito bem o que estava vendo. esperava um pouco de sangue, talvez um corte grande o suficiente para que necessitasse ir ao pronto socorro e alguns pontos, mas o que jorrava por seus dedos era um líquido azul elétrico e muito mais ralo do que seria de se esperar de sangue, e, para piorar, era uma torrente incessante. não doía muito mais do que um corte normal, e ele aproximou o dedo dos olhos para conferir. não parecia haver nenhuma dúvida, o líquido estava saindo dele, e era um corte normal, até doeu um pouco mais quando separou a abertura em sua carne para observar. não lembrava de ter sangrado azul antes. provou um pouco do liquido azul, que agora ia abaixo no ralo da pia, e era doce, como sorvete ou algodão-doce, nada ferroso. talvez fosse algum tipo de diabetes, que deixa o sangue doce e dificulta a cicatrização, mas não conhecia nenhum tipo que deixasse o sangue azul. isso não era motivo de preocupação, não era médico, até onde sabia aquilo era completamente normal. lavou o dedo e fez uma atadura precária, que ficou encharcada de líquido azul em poucos segundos. Substituiu-a por uma toalha e foi para o hospital.
A sala de espera lembrava vagamente sua cozinha. Iluminação fria e uma impressão geral de limpeza. o pronto-socorro parecia estar num dia pacato. apenas três pessoas estavam esperando atendimento quando ele chegou: duas crianças, uma delas ainda de colo, que não parava de chorar, acompanhadas, e um senhor que aparentava ter mais ou menos três séculos de vida, com pelos no nariz e sobrancelhas incomensuravelmente longas. seu nariz lembrava um pimentão, mas podia ser culpa dos óculos que usava. não havia mais ninguém na sala, e uma pessoa apenas abria a porta para chamar a próxima a ser atendida. o bebê foi primeiro, depois o idoso e então a outra criança.
Todos haviam sido chamados de forma relativamente rápida, mas quando não tinha mais companhia o tempo pareceu parar. o relógio na parede movia os braços de forma audível. a televisão estava desligada. ele praticamente esqueceu a toalha laranja que ia lentamente formando manchas azuis. esperava sem saber mais muito bem o que. mesmo quando olhava para baixo, para a toalha, só conseguia pensar que era uma cor bonita. o relógio tic-taqueava inutilmente. não conseguia escutar nenhum outro som. ficou um pouco preocupado, se não teria ficado surdo, e que o relógio não estivesse na parede, mas em sua cabeça. começou a achar estranho não terem vindo chamá-lo ainda, talvez não lembrassem que estava lá. talvez a pessoa que chamava tivesse caído no sono. nesta letargia, seria difícil julgar. as manchas cresciam lentas e silenciosas. primeiro dispersas, como um dálmata, apenas em cores que seriam mais fáceis de imaginar num personagem da vila sésamo. depois o laranja se tornou mais escasso. o tempo andava sem ir para lugar nenhum. ele dormiu de olhos abertos, e só foi acordado por um outro som, igualmente rítmico, o de gotas de líquido azul caindo da toalha em direção ao chão de cerâmica branca. só então percebeu que tinha dormido não apenas os olhos estavam abertos, mas também a boca. aquilo devia lhe dar uma impressão de infinita estupidez, aquele olhar para o nada, mandíbula caída, toalha azul na mão. cerrou os lábios e piscou, como se para voltar ao normal. se levantou e começou a andar de um lado a outro, para não dormir novamente. sua paciência era descomunal. quando menos percebeu, estava caminhando no ritmo do relógio. apesar de, a esta altura, já estar praticamente certo de que o haviam esquecido e abandonado ali, não lhe ocorreu que deveria deixar de esperar e buscar alguém. e, se pensou nisso, não levou a ideia a cabo. era uma espécie de loucura que o impedia e o invadia lentamente. a toalha já estava completamente encharcada. não servia mais para nada. o trajeto circular que fazia repetidamente estava sinalizado por respingos azuis. ele não sabia se uma pessoa poderia sangrar tanto assim e continuar bem, mas não sentia nada demais. mesmo o dedo não doía, a não ser que mexesse na ferida. tic-tac. tic-tac. nada acontecia. por puro tédio começou a escrever nas paredes brancas, como sua mente estava vazia, escreveu a receita que planejava fazer quando se cortou. completa com ingredientes, quantidades, modo de fazer e de servir. em letras grandes. lá fora escurecia. a próxima receita na parede foi escrita em letras menores, e a seguinte da forma mais compacta que pode. abstraiu o som do relógio. já era noite quando terminou a primeira parede. infelizmente as partes mais altas ainda estavam em branco, não as alcançara nem mesmo subindo na cadeira de espera. olhou para a parede seguinte e já conseguia imaginar como as receitas configurariam nela, escolhendo cuidadosamente cada uma. a porta se abriu, ele ouviu seu nome ser chamado e foi em direção à voz. a pessoa dona da voz lhe indicou uma porta, e ele entrou.

A médica parecia cansada, como se seu turno estivesse durando horas a mais do que devia. claramente não era a aparência de alguém que havia passado as últimas horas sem fazer nada, então ele concluiu que deveria haver uma outra sala de espera ou que alguma emergência a havia exigido sua atenção. ele contou o que havia acontecido em poucas palavras e mostrou à médica o ferimento. ela ergueu uma sobrancelha, talvez surpresa, mas não disse nada. ajustou os óculos e analisou o ferimento, perguntou se doía e ele disse que não. continuava a jorrar líquido azul, mesmo a vazão não se alterara. a médica suspirou, o tipo de suspiro que mostra que seu prospecto de finalizar seu expediente acabara de sair pela janela. chamou um enfermeiro, que veio equipado para retirar uma amostra de sangue. não dava para esconder que o liquido que encheu a ampola era azul. o enfermeiro exclamou em surpresa, a médica o reprovou com um olhar sério. não se deve mostrar esse tipo de reação frente a um paciente. o enfermeiro se foi. a médica pediu que o paciente esperasse e também se retirou. felizmente desta vez sua paciência não foi testada. voltou acompanhada por outra médica, mais alta do que a primeira. enquanto observavam o sangramento, se é que se podia chamar assim, falavam com um jargão que o paciente não conseguia entender. mas ele não fez perguntas. ao invés disso substituiu, em sua imaginação, as palavras que não entendia por outras, que lhe dissessem algo. uma palavra que se repetia muitas vezes se tornou açafrão, por ter uma sonoridade semelhante, outra por sautée, por parecer vagamente com um estrangeirismo. só voltou a si quando as médicas lhe perguntaram algumas coisas, sobre sua alimentação, sobre sua rotina, sobre históricos de doença. ele lhes disse tudo, mas acreditava que as perguntas haviam sido feitas mais por protocolo do que por poderem dar alguma pista do que estava acontecendo. a doutora alta saiu e deixou a outra acompanhando o paciente. não trocaram nenhuma palavra. desta vez a espera foi um pouco mais longa, mas nada que se aproximasse daquela antes de ser atendido. apenas os suficiente par gerar um leve desconforto com o silêncio, coisa completamente natural quando dois seres humanos estão no mesmo lugar mas não se comunicam por algum tempo. a doutora deveria estar buscando em sua memória algum precedente pois sequer fez algum comentário sobre o tempo ou algo do gênero. quando voltou a segunda médica trouxe consigo um terceiro, que ao ver a situação não conseguiu esconder um sorriso de canto de boca, que se inverteu quando ouviu que o líquido na seringa ao retirarem uma amostra de sangue fora igualmente azul. saiu ele mesmo e voltou preparado para refazer o teste. o resultado foi o mesmo e ele foi embora cabisbaixo para não mais voltar. as duas decidiram que seria necessária uma bateria de exames, que precisavam do resultado da análise do sangue. o paciente foi levado a um quarto. trocaram suas roupas, fizeram com que a mão com o corte ficasse pendendo da cama e abaixo dela colocaram um balde. mesmo depois de terem costurado o ferimento, o liquido vazava, embora agora mais lentamente. o balde ficou cheio em três horas e vinte e sete minutos. pouco depois de o substituírem por um vazio, trouxeram o jantar. comida de hospital. o paciente fez uma careta ao provar e deixou de lado. fechou os olhos e imaginou as comidas cujas receitas escrevera na parede da sala de espera. começou a salivar em abundância, a ponto de um filete escorregar bochecha abaixo. ao abrir os olhos e olhar a macha, descobriu que sua saliva estava verde. 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Onde levou o bilhete

Eu não sei exatamente o que aconteceu naquela semana, antes e depois do incidente, estava preocupado demais com meu novo emprego e a mudança e tudo mais e os dias passavam muito depressa, além do calor que fazia. A memória que eu tenho foi daquele dia e parcialmente daquela noite. Dessa o que sei foi que com certeza desmaiei na cama, bêbado, lá pelas dez horas da noite, um horário mais cedo do que eu costumo dormir e que não pude escolher, as circunstâncias e o álcool acabaram me nocauteando. Pois bem, as circunstâncias foram duas: a primeira é a de que não havia dormido bem na noite anterior já que, além da ansiedade pela mudança de casa, a mudança de horário me roubou uma hora de sono de acordo com o horário de verão; já a segunda é a que compõe essa história e que relembrarei nessa página. Lembro de estar cozinhando o almoço, acho que era coisa rápida, algum macarrão, quando escutei uns gemidos. Primeiro achei que era o gato e olhei ao meu redor com ar de preocupado para checá-lo, mas ele não estava comigo. Pensei em procurá-lo mas parei por aí, não me preocupei mais, ao contrário, despreocupei-me ao perceber que estava sendo bobo, jamais me preocuparia  com o gato, e afinal e contas ele sempre fazia uns barulhos estranhos mesmo. Foi quando precisei ir ao banheiro, logo após da lembrança do gato, passando pelo corredor iluminado pela da grande janela ficava de frente com o muro que separava a casa com a casa do lado, que escutei novamente os gemidos, e dessa vez o som era mais alto. Passava pouco do meio-dia e o sol batia forte naquele muro conforme a luz refletia para dentro. O sol fez com que, além da curiosidade pelos gemidos, eu parasse ali durante alguns segundos afim de me observar o dia e espairecer. Mas sim, os gemidos vinham do vizinho. Não eram de sexo, nem de criança, nem de bicho. Eram gemidos de dor.
Concentrado naqueles sons que passavam por cima do muro, de repente pude escutar a voz da vizinha. Comecei imediatamente a especular. O marido era um cara tímido, mas das poucas vezes que nos falamos abertamente parecia muito simpático, e por esse motivo era meio estranho pensar que ele poderia tê-la agredido. A vizinha, no entanto, possuía certa agitação em primeira vista, mas o tempo a sublimava logo em alguma melancolia. Ela fazia lembrar uma dessas mulheres que sonham jovens e em segredo com algum tipo de futuro, mas que em algum momento acabou sendo intimada ou cobrada de um casamento, com seus pais dizendo que está na hora e que se não for agora não será nunca mais, que eles não podem mais sustentá-la e etc. Parecia ironicamente que o sonho perdido dessa mulher em particular era ser freira, levar a vida nu convento. Quando os via juntos, o marido e a esposa, ele sempre estava em primeiro plano alguns passos a frente, mas não por vontade dele, sempre a empurrava e a puxava junto, como se faltasse a ela algum bom senso de sinergia necessário para encarar junto dele as situações sociais. Além disso, e essa é uma característica importantíssima, ela era acolhedora demais, e não só com ele, mas também com os outros. Suas falas expressavam constantemente uma preocupação com o bem estar do marido e o conforto dos que estavam ao redor, e com clareza parecia viver sob esse propósito.
Escutei um grito, fraco, sofrido, destacava-se entre os gemidos. Com ele tive uma surpresa: os gemidos eram do marido, ele sofria. Eu tinha o número de telefone deles, poderia ligar e perguntar se precisavam de ajuda, cogitava, ou poderia chamar uma ambulância, a polícia, enfim, não sabia o que fazer. Não deveria ser nada, deveria despreocupar-me dos gemidos como fiz com os supostos gemidos do gato. Achava eu que vizinho devia ter se machucado ou coisa assim. O que veio a mente em seguida, porém, foi que sendo pouco tempo após o meio dia, a esposa teria acabado de chegar em casa do restaurante. Esqueci de mencionar que nessa época a esposa fazia meio período num restaurante ali perto. Parece que uma amiga era a dona e também uma ótima cozinheira, e por relatar que havia recebido reclamações do marido, insatisfeito com sua habilidade, ou falta de, na culinária, a esposa conseguira uma ajuda da amiga experiente com uma espécie de emprego construtivo, e ainda a deixava preparar um almoço no restaurante para levar ao marido como prova de seu esforço. Tendo acabado de chegar em casa então, será que ela havia encontrado o marido já em dor ou será que num ato súbito de realização da própria vida quis quitar as dívidas com seu futuro desperdiçado e na falta de resposta teria partido pra cima do homem com e o machucado? Até mesmo podia ser um caso amoroso, de ter encontrado o marido com outra e ter trocado em tal situação o juízo pela violência. Não soubera dizer naquele momento apesar de aproveitar o exercício.
No fim, acabei ligando. Fui até a sala em direção ao telefone e reparei que de lá também podia escutar os gemidos, agora ainda mais altos, numa questão de talvez uns três minutos. Ela atendeu o telefone:

_Alô?
_Dona Velma?
_Sim, quem é? - sua voz era meio tremida
_Seu vizinho, X., vocês estão precisando de ajuda?
_A-a-ajuda? Não, não precisa, já liguei, estão vindo!
_O que está acontecendo? Quem está indo? Não tenho como não ouvir daqui de casa...
_Desculpe, a ambulância, meu marido está com muita dor, não sabemos o que é!

Nesse momento houve o som da sirene da ambulância descendo a rua. Desligamos o telefone imediatamente sem nos despedir. Ela e eu, como se não tivéssemos mais o que falar nem explicações para dar ao desligar o telefone. Peguei meus documentos e meu celular e desci imediatamente para a rua. Lembro-me de vê-la na porta de sua casa, enquanto tiravam o marido de casa com uma maca. Não estava em prantos, mas tinha um choro contido, estava assustada. Observei a situação e fui até ela. O marido, continuamente em agonia, foi rapidamente posto em posição no carro e não consegui vê-lo com atenção. O homem da ambulância fez sinal que saía e perguntou se eu poderia fazer a gentileza de levar a senhorita ao hospital em minha própria condução. Perguntei então se ela queria carona para o hospital, ela disse muito obrigado e que queria sim. Fomos. A partir daí as coisas foram muito rápidas e loucas. Chegamos no hospital e a ambulância que entrara por um local especial já estava vazia, o pessoal já havia enfiado o marido pelos corredores e alguns enfermeiros levaram a mulher e nos separamos, acho eu que lhe perguntavam coisas de praxe enquanto entregavam papéis para preencher. Tudo isso foi com muita pressa sem que tivéssemos tempo de refletir no assunto, o que fez a situação parecer desesperadora, ou mais grave do que parecia desde que ouvi os gemidos na cozinha. Ela voltou, não disse uma palavra e sentou-se ao meu lado na sala de recepção. Disse a ela que esperaria, para ela se tranquilizar. Uma TV ligada para nos distrair não cumpria esse seu papel e eu pensava cada vez mais quanto tempo teria que ficar ali. Enquanto aguardávamos, ambos visivelmente cansados, vieram nos dizer que o haviam sedado por causa de seu estado inquieto e faziam exames. Ela fez como se fosse perguntar sobre a situação do marido mas o enfermeiro deu as costas e saiu em direção ao corredores antes que ela pudesse. Senti dó. Foi uma eternidade até que ela fosse chamada novamente, dessa vez pelo mesmo enfermeiro que tinha escapado aquela hora. Não foi levada a sala alguma, apenas a alguns metros a frente, no canto que se formava na sala antes da entrada para o corredor, e vi, lembro exatamente, como de repente a mulher quase caiu no chão dando um berro estranhíssimo, daqueles que agente não conhece até ouvir. O marido, segundo aquele infeliz e eleito enfermeiro, havia falecido. Não tenho a mínima ideia como é que fui parar em casa e que horas eram, mas lembro-me que durante esse tempo de choque e frenesi até o cheiro do meu próprio escapamento, ao estacionar o carro em casa, a mulher saiu e voltou várias vezes em minha presença. Numa dessas vezes fui chamado junto com ela para uma sala separada onde deram-na alguns calmantes, um copo d'água que ela não chegou a beber por inteiro e que provavelmente era o segundo ou terceiro que recebia, e uma imagem de raios-X do seu marido, mostrando um esbranquiçado anormal aonde era provavelmente seu estômago. Explicaram-nos que ele havia engolido um pedaço de papel ainda naquela manhã, e que devido a uma anomalia genética hereditária, uma forte rejeição à tintura no papel teria dado início a um processo em cadeia e não me lembro o nome disso e daquilo e que o acabara matando. Foi horrível. Mas o fato intrigante foi o de que ao retirarem o papel na autópsia, logo em seguida, puderam desdobrar um bilhete que dizia:
"Querida Velma, não suporto mais essa vida aqui e não suporto mais você, gostaria de ter aguentado um pouco mais e que as coisas não tivessem que acabar assim. Adeus."
Deixando em aberto várias questões. Teria ele se matado? Na minha opinião, não. Não é possível que ele soubesse sobre aquela história de doença genética e todo aquele papo de como engolir um papelzinho causaria sua própria morte, e ele nem tinha o jeito de bolar uma morte assim tão poética, até mesmo porque sofreu de dor por pelo menos durante uma hora antes de falecer. Mas então o que era aquele bilhete? Porque o tinha engulido? Além disso, tinha que tê-lo feito antes da mulher chegar em casa. A hipótese que formulei, mas que obviamente não posso comprovar e sobre a qual não tive a falta de escrúpulos para investigar mais na época com a vizinha, é que o marido, descontente com alguma coisa que acontecia em sua relação com aquela mulher, planejava ou se matar ou fugir dali, mas acabou se enganando com o horário e foi surpreendido pela mulher que chegava do serviço, logo quando posicionava seu bilhete de despedida, e para se livrar dele o engoliu, tendo como resultado a maldita rejeição e para fins práticos, a morte.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Casos de Amor (ou o Coelho e a Tartaruga)

(em resposta a um do Rafael Carnevalli)

Louco mesmo foi o romance
Entre Don Coelho e Dona Tartaruga:
Desde o começo, ele fugia de planos
Desde o começo, ela planejava a fuga

sábado, 10 de maio de 2014

Matar saudade

Nesses dias de espera à tua presente chegada
Floriram-se expectativas, anseios, imagens

Pouco antes deste momento eu já especulava
Algumas extravagâncias, passeios, bobagens

E agora impressiono-me, com alguma estupidez
O extraordinário de uma plena lucidez
Sou perdido no tempo um teu amigo
E sólido em ti, num cantinho, um meu abrigo

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A segunda pessoa.

Os melhores sorrisos
São dados pela metade
E as maiores verdades
Taxadas de maldade.

***

Você acorda suando ao som do despertador. Era de se esperar, foi uma noite quente e você não tem ar-condicionado em casa. Talvez por culpa do calor você teve sonhos ruins, não exatamente pesadelos, mas o tipo de sonho que te deixa desconfortável e te acompanha por pelo menos algumas horas depois de despertar. Normalmente você teria acordado antes do despertador tocar e teria ficado na cama, já acordada mas ainda sem muita coragem para levantar, enrolando até não mais poder. O toque estridente costumava ser mais a voz da razão dizendo que era hora de deixar a preguiça para lá e começar o dia do que realmente algo que te impedia de dormir demais. Isso só fez com que a sensação de não ter dormido bem fosse ainda maior. Ainda assim, você se força a fazer aquilo que sempre faz: come alguma coisa que não é exatamente um café da manhã, se prepara para o dia que vai enfrentar, penteia os longos cabelos castanhos e ondulados para que não ficar parecendo com os restos mortais de quem você foi no dia anterior, checa se tem tudo que precisa na bolsa antes de sair de casa e tenta parece mais acordada do que morta-viva enquanto o faz.
O caminho para o trabalho é o mesmo já há tanto tempo que você já sublimou o quão desconfortável é. Felizmente não é tão cedo quanto poderia ser, as piores horas do transporte público já passaram, embora o seu trajeto esteja longe de ser agradável. Raramente conegue um lugar para sentar no ônibus, e hoje não foi exceção. Apesar de já não ser assim tão cedo, o dia ainda tem aquele aspecto cinzento das manhãs, mas você sempre achou que isso se devia mais ao seu estado de espírito do que à realidade, não é mesmo? Você quase cochila de pé, e a senhora não muito velha e apenas ligeiramente gorda que está sentada num dos assentos amarelos à sua frente sorri ao te ver pescar. Você não consegue distinguir, a essa hora, se era um sorriso de companheirismo ou zombaria, e você sorri de volta, preferindo acreditar no melhor das pessoas. Ela, no entanto, não se oferece a segurar a sua bolsa.
Eu não preciso descrever o seu trabalho, não é mesmo? Nem como você se sente sobre ele, ou como pensa sobre ser só um estágio e como podem ser as diferenças em lidar com um trabalho real quando acabar a faculdade. Se é que vai conseguir um trabalho de verdade depois disso. Você conhece muito bem as suas mágoas, e eu não estou aqui para revivê-las. Não vou falar da sua chefe, ou dos seus colegas de trabalho, essas pessoas não são importantes, não hoje, não nesse dia; você ainda está apenas meio acordada, e qualquer interação com essas pessoas é mais mecânica do que qualquer outra coisa. Em mais de um momento do seu dia você se surpreende não tendo certeza se você disse alguma coisa ou se apenas imaginou ter dito, ou de onde vieram as palavras que saíram da sua boca – pois seu cérebro sem dúvida não teve nada a ver com o parto delas – e sem ter certeza do que foi que alguém te disse, mas você faz o que é preciso e ninguém parece perceber qualquer diferença. Você chaga a se perguntar se essas pessoas ligam assim tão pouco para você, ou se você age assim normalmente, até perceber que você está até mesmo fazendo piadas e comentários sagazes, como você sempre faz, a única diferença é uma letargia que parece saída de algum filme da Sofia Coppola. Você não lembra de que algo assim já tenha acontecido antes. E no fim isso se revela como nem sendo algo assim tão ruim, o dia hoje foi cheio, como costuma ser vez ou outra, e isso te ajudou a não se cansar tanto. Talvez você só tenha se acostumado demais com tudo que faz diariamente. Apesar disso, agradece que hoje você não precisa ir para a faculdade e vai poder voltar para casa sem maiores consequências e quem sabe depois de uma noite de sono com a qual você já sonha, amanhã tudo tenha voltado ao normal.
Voltar para casa não é um processo muito diferente do de sair de lá. Por um momento você tem até mesmo a impressão de encontrar a mesma mulher que sorrira para – ou seria de – você pela manhã, mas não tem certeza, pode muito bem ser apenas um efeito da idade e tipo físico semelhante. Chegando em casa você se sente melhor. Tem até um ligeiro sentimento de que deveria arrumar o seu quarto, mas, olhando melhor, não está assim tão mal, pode deixar o pó se acumular por mais uns dias, até porque você tem coisas mais importantes para fazer. As provas vão começar em breve e você, obviamente, está com seus estudos atrasados. Ninguém diria que você é uma estudantes irresponsável, muito pelo contrário, a maioria dos seus colegas tende a elogiar – embora de forma não exatamente elogiosa – a sua capacidade de tirar notas boas; isso, você prefere ver dessa forma, é uma capacidade de tirar notas boas, é insegura demais para se rotular inteligente, e cobra muito de si mesma para dizer que as notas são fruto de um grande esforço. Pega um dos livros que tirou da biblioteca, deixa próximo um que é seu mesmo, para possíveis referências, comparações e lembranças e acha a folha de papel onde vinha fazendo anotações sobre a leitura. Se perde naquilo por algumas horas, e não é de todo diferente daquilo que aconteceu no trabalho, mas ao estudar esse distanciamento parece algo mais natural, de forma alguma problemático. Já estava tentando criar alguma desculpa para se afastar dos livros e procrastinar por algum tempo quando seu celular toca, ou melhor, vibra, ao receber uma mensagem.
É a sua amiga. Não preciso dizer qual delas, você sabe; aquela que sempre te convida para festas e para a qual você na maioria das vezes diz não, embora te machuque um pouco dizer não para ela, vocês tem se visto tão pouco nos últimos tempos, e você gosta tanto dela, e por isso vez ou outra acaba dizendo sim, só para ter uma chance de sair com ela. Nem sempre os resultados são bons, às vezes vocês mal conseguem falar, seja pela quantidade de álcool consumido ou pelo barulho que sempre existe em todos os lugares para onde ela te leva, outras vezes, no entanto é bom, por vocês conseguirem se reconectar, outras vezes, sem dúvida, é bom exatamente por causa do álcool e do barulho. Não estou dizendo que você não gosta de sair, você sabe disso, apenas que os lugares para onde essa sua amiga vai nem sempre são os que mais te agradam, e que nem sempre você está com vontade de sair, não é nada decepcionante ficar em casa numa noite de sábado vendo os seriados nos quais você está atrasada, mas periodicamente você também tem seus acessos e não quer passar uma noite de sexta em casa por nada nesse mundo, às vezes você sai durante todos os fins de semana por um mês ou mais, e nem mesmo o mal-estar inerente às segundas-feiras faz com isso tenha parecido uma má ideia, muito pelo contrário, isso costuma te divertir bastante. São raras as vezes que você sai durante a semana, no entanto, e começar a trabalhar só fez com que essas escapadas se tornassem ainda mais raras.
A mensagem que ela te manda te lembra que hoje é sexta, e que sair hoje não parece uma ideia assim tão ruim. E você responde que sim, sem o menor peso na consciência depois das horas que você passou estudando. É claro que depois, quando chegar o dia de  alguma prova para a qual você se sinta especialmente despreparada, a situação vai ser diferente e você vai praguejar contra as horas que devia ter passado estudando e não o fez, mas isso é uma inevitabilidade da vida, e essas inevitabilidades nós temos que aceitar e aproveitar conforme venham. Também não é como se você não se sentisse melhor ao reclamar, o que está aí para te provar que às vezes mesmo as coisas mais insignificantemente ruins podem ter um lado positivo.
Você se arruma para sair. Você se veste bem, todos dizem isso e eu concordo. Não sei, no entanto, se é uma coisa intrínseca ao seu bom gosto ou se reflete algum tipo de planejamento, de fabricação, esse é um dos segredos que você ainda me guarda, e que eu não me esforço em descobrir. Você diz que o jeito que você se veste é algo que simplesmente acontece, e eu não sei dizer se isso é modéstia ou verdade, e, no fim, não importa, o que importa é que o jeito que você se veste é completamente seu. E coisas superficiais como a forma de nos vestirmos acaba dizendo tanto sobre nós, não sei se te disse mas não julgar pelas aparências sempre me pareceu algo tão superficial, até mesmo uma falta de respeito, quanto de nossas histórias, de nossas personalidades, emerge em fenômeno? Quem foi mesmo que disse que nossa alma é, na realidade, o corpo? Aristóteles? Provavelmente. Mas isso são vãs digressões, voltemos a falar de você.
Você encontra com a sua amiga e vão juntas para o lugar da festa. É, surpreendentemente, algo muito mais tranquilo do que você esperava, e só depois de algum tempo você consegue perceber que é a comemoração de aniversário do cara com quem essa sua amiga tem saído já há algum tempo – você jurava que já tinham terminado, mas aparentemente não, ou talvez tenham voltado, quem sabe? – e que você já teve chance de ver em algumas situações. Você, no entanto, não lembra o nome dele. Você também não conhece a maioria das pessoas que estão ali, mas isso não te impede de se divertir, é claro. Além do mais, por mais que você possa não reconhecer, fazer amizades nunca foi uma dificuldade assim tão grande para você.

Me desculpe, eu disse que ia voltar a falar em você e assim tão logo volto a falar de mim. Esse é, afinal, o momento da história no qual eu entro. Você nunca tinha me visto antes. É aí que você me vê pela primeira vez. Eu me reservo ao direito de ficar calado e não te dizer se eu já tinha te observado antes, de longe ou de perto, tem algo de romântico em deixar essa dúvida, dizer que eu posso ter estado tão próximo de você antes e ter sido completamente ignorado. Mas não dessa vez. Você me vê através da sala, que não é muito grande, mas estamos longe o suficiente para que nossos olhares se cruzem apenas casualmente. Eu te conheço bem o suficiente para saber o que em mim te chamou a atenção, eu sei que mesmo do outro lado da sala você prestou atenção nos meus caninos pronunciados, que não raro chegaram perto de te machucar, no meu cabelo, pouco mais curto que o seu, e tão parecido com ele, também castanho e também ondulado, o meu estilo meio gótico, mas sem muitos exageros. Quando nossos olhares finalmente se fixaram um no outro, eu soube que você gostou dos meus olhos escuros tanto quanto eu gostei dos seus cor-de-mel. Eu sabia tanto quanto você que aqueles olhares estavam fadados a se atraírem, como se atraírem, o que eu não fazia ideia – e tenho certeza que você também não fazia – era que algum dia, nem tão distante assim, nós íamos nos conhecer a ponto de que eu fosse conseguir fazer uma descrição assim tão detalhada daquele seu dia, daquele momento em que nos encontramos. 

Tradução de música incompleta e Fragmento de auto-ajuda literária.

Ela deve estar em alguma sarjeta
Esperando a alvorada e os metrôs
Meio bêbada; tentando esquecer,
Não pensar que em algum lugar
Eu estou a esperar a morte,
Cuspindo saliva e sangue
No assoalho do banheiro,
Carcomido por inteiro,
Rogando a deus pra que ela venha,
Que me salve a vida e me foda,
Como só ela pode.

***


A função de quem escreve é a de dar sentido a algo que, por princípio, não tem sentido algum, a vida. Nada mais natural, portanto, que o começo das carreiras literárias – embora eu tenha algumas ressalvas a utilizar uma palavra tão não-literária quanto carreira numa situação como essa – seja uma tentativa de dar ordem à própria vida de quem escreve. Disso decorrem as centenas de primeiras obras que são ao menos em parte autobiográficas, e também o número ainda maior de estórias de amor. Talvez seja algo comum à categoria que acaba se dedicando à escrita, afinal, não raro é ouvir comentários que ressaltam a necessidade de uma sensibilidade desenvolvida, de capacidade de observação e de solidão. Não é difícil ver como essas características geram pessoas emocionalmente disfuncionais, e com grandes dificuldades de relacionamento, que precisam ser exorcizadas na escrita, que pode ser também uma forma de prática ou memória do fato real, pois as coisas parecem muito mais verdadeiras e passíveis de compreensão quando estão no papel. A vida real é algo muito mais complexo que a mais surrealista das novelas, ou mesmo do que o Finnegan’s Wake. Eu mesmo poderia dizer que, na minha experiência, tento fazer algo assim, poderia mentir que foi mesmo isso que me aproximou da literatura, mas isso seria só uma forma de tentar parecer especial, seja como indivíduo ou como classe. A busca por sentido não é especial a quem escreve, e quando procuramos o sentido da nossa, sejamos nós quem formos, o primeiro passo é olhar para quem está perto, para as pessoas com quem nos relacionamos. Eu acho uma forma de pobreza a literatura que foca no romantismo e esquece a amizade. Mas a relação amorosa sem dúvida é onde o sentido parece – e pode ser apenas uma aparência ou não – mais forte, mais claro. Talvez por isso seja tão valorizada. O amor é a busca do nosso sentido no outro. E quanto mais incerto parece o mundo, maior se faz a dependência. A diferença é que algumas pessoas o fazem na vida real, procuram um amor material, enquanto outros se dedicam outras coisas, procuram um amor metafísico, na literatura ou na religião ou na política ou no que for. E é tão mais fácil essa segunda opção, é tão mais difícil que alguma dessas coisas nos decepcione quando comparamos isso a algo tão carnal e falível quanto um ser humano, que também tem suas vontades e fraquezas e, principalmente, a sua própria busca de sentido. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Bons irmãos

Somos filhos do poder
Força e lei
Lei pela força
Força para lei
Somos bons irmãos
Respeito, cordiadilade
Somos super-heróis
Nós, e mais ninguém
Mais do que animais

domingo, 30 de março de 2014

Amor próprio alheio

E nesses dias tristes de cansaço
Nessas semanas de horas tão sem fim

Dessas de olhar você pra você mesma
E até você achar você ruim

Em que você só quer deitar na cama
Pra se ver longe de você enfim

Não tem lhe juro solução mais linda
Do que me dar você você pra mim

quinta-feira, 27 de março de 2014

Ritual

Acendo uma vela
Evoco nomes, invoco seres
Falo torto e errado
Uso giz, telha e sangue
Prego e pedaço de pau
Teclado e até lápis
E papel

Abro a janela
De luz apagada, luz acesa
Penso, escrevo
Canto, danço, amo
E faço o pacto de que
Mesmo que o mundo me engula
Vomitará

quinta-feira, 6 de março de 2014

A luz de um poste

A luz de um poste penetra pelas folhagens. Forma-se dela uma estrela: difusa, rala, intensa.
É na penumbra que vem abaixo, depois da grande e retalhada escuridão da copa, que eu me encontro.
Sou ao mesmo tempo repelido de seu centro mas mantido em seu halo, e sobre a influência de seus membros dourados, pressiono-me contra o chão, abandonado por mim mesmo.
Ali, a triste lembrança de um espírito pleno, um sorriso puro, inquieta-me.
Tsc.
Estala uma rebeldia, gerando forças quase suficientes para que eu desvie o olhar.
Shmm...
Quase desvio.
Hffffff...
Mergulho novamente. Mergulho nessa imagem e ela mergulha em mim.

Concentram-se noites de verões a invernos. A nostalgia lembra-me de muita coisa: mas são só imagens, e dúbias. Tudo, desde sempre, diz que sempre existe uma culpa, e ela é sempre de alguém. Talvez alguém muito especial e escondido, talvez a própria estrela e quem passa por ela. Até condenam a solidão. Porém hoje não há alguém.
Hoje imagino fotografias.
Sob a mancha de luz e na sombra, levanto-me. Levanto-me de tal imagem, levanto-me de todas as distâncias e respiro o ar de vidas e mortes. Só existe eu e as coisas, as casas, os postes.
Dou de costas, volto ao caos ordinário. Finalmente para afundar.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

PííííBüüü

Tu Dum
Tu Dum
Tu Dum
Tu Dum
Tu  Dum
Tu    Dum
Tu      Dum
Tu            Dum

Pííííííííííííí

[Esse túnel para onde vai?
Como será tal futuro?

Nem um pouco sozinho
Preparo-me para a parada]

Büüüüüüüüüüü

— Estação..Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.

domingo, 26 de janeiro de 2014

We never know ourselves.

I see you alone and this makes me wonder why things went out that way. Maybe you thought I didn't like you, maybe we've got tired of mirrors. You know, I was never too good for you, and you’ve always heard they say. When the wind blew backwards that night, I got scared of interiors, I didn’t want to go back home, I confess.
Anyways, I decided to reach you just to let you know, as you might, that I still see you, and the broken glass we’ve left behind scattered light all over, it is beautiful. I hope your life turns out to be the best of all our. We never know who we are until we see ourselves hugged in front of that thing, don’t you think?

sábado, 25 de janeiro de 2014

São Paulo

It wouldn’t be summer in São Paulo if it wasn’t for the rain. Some of the sidewalks are actually made of a porous kind of stone, so it can absorb a small amount of water, as if it could be enough to prevent the recurring floods of January. Usually, this late in the afternoon, a storm should be raging, but the rain falling now is very light. It creates ever-changing patterns on the porous stone, filling it with slightly darker spots, as in a Pollock painting. God always held some resemblance to Pollock anyway.
I see this while I stand waiting on the bus stop. I get so hypnotized by the sidewalk that I almost forget to give it the sign to stop. Through the window I see the city and it’s post-modern patterns racing, like a movie in fast-forward. São Paulo was supposed to be gray, but it’s not. Nah, I should rather say that it is, but in a different way than usual. Newton said that if you go too fast trough all the colours, you’ll only see a white shade. I assume if he ever had a chance of seeing this city he would change his opinion. All the colours merge into gray. Gray and green. There’s quite a lot of green here, despite what people say, and despite all reason. And the green here is eternal. Maybe that’s why I think there’s a lot of trees. The place I was born was dry, no plants could ever grow proper green leaves there. My hometown was gray and blue – a unbearable, cloudless blue sky – and São Paulo is Gray and Green. But when it’s cloudy, like today, I can almost understand why people forget how green it is.
I get to the underground. Blue and Yellow lines and I’m in the center. Not the old, historic center, but the real center. Paulista, Augusta, Consolação.  Roosevelt square. Ypiranga and São João. As I walk these streets I can’t avoid remembering so many others I’ve seen. The narrow ones, the loving alleys, the royal roads all over the world. I can’t say that I haven’t fallen in love for them, in them. But in all the cities I roamed, it was a passionate love, carnal, some of them became perennial in the maps of my heart and mind, others were ephemeral. The other cities were lovers. This one is family. Is the place I'm always dragged back to. And the place I ultimately feel I have to leave. Even so, it will still be home, my home. Hometown is an ancestor, is my past, my history. São Paulo is my flesh and bones.

A famous song – and everybody must be quoting it today – says that there’s no true love in São Paulo. I guess that might be truth. This city was build upon obsession and illusion. Broken hearts and dreams. But it has its wonders, I must say. There’s no sense in a book where all the characters are good, a movie without motion, a song without emotion. São Paulo is the place where they all come from. Is a hole in the fabric of reality, showing us heaven and hell and telling both are lies. Getting us drunk on love. However fake or paid-for or misunderstood. Let’s keep the real love for the rest of the world. All we need are the Japanese lampposts in Liberdade – freedom, it means – and the Pollock sidewalks and the light rain, the city’s most renowned patrimony, over our heads. All we need is to belong somewhere. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Cats and dogs (b).

It was the third Friday evening of the month, and Red Hat (with a tiny white stripe) Girl was really happy. She was tall and almost never combed her hair – which is why she would usually keep the hat on even inside. She had two parrots, named “Dog” and “Cat”, and  “Karl Marx”, the cockatoo, and that sort of humour, stuck somewhere between sarcastic and ironic, was the only one she seemed to get a hold of.

So thought most of her friends, who would only invite her to cult French, Swedish and sometimes Finnish movies, which used to play at the old willow tree cinema downtown. They had once made the mistake of bringing her to a superhero film/dance party combo and, legend says, for the next entire month she would just leave her apartment for work and to watch, repeatedly, a minimalist (and dreadfully tedious, for most human beings) post-post-modernist montage of Moses und Aaron, which was playing on a theatre two blocks away.

Every third Friday evening of the month, however, she would engage in a secret ritual unknown to everyone but her bird friends: She would set herself a mysterious mix of milk, cocoa, ice cream, tea and some alcoholics, enough to last an entire night; she would place Cat on the sofa, by her side, while Dog bounced around the floor of the living room; She would take off the hat, and Karl Marx would nest himself in it; They would then, together, proceed to watch something between ten and thirteen hours of pirate movies – with the occasional break for toilet, cookies and sunflower seed.

They loved pirate movies. Dog would always do his impression on barking whenever a ship appeared. Marx wouldn’t blink for as long as a swordfight took place. The only of the four who didn’t like it that much was Cat:

Red Hat Girl would always tell Cat she could never fall in love for another person after seeing Errol Flynn as “Captain Blood”, but Cat was never sure if she was talking sarcasm, and ended up having troubling thoughts on the human nature.       

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Viagem (Açaraí nº2)

No cano o fogo
No fogo um estalo
No pano o vento
No vento um pouco do mar
<->
De boca em boca um sopro
De palma em palma ferramentas
Olhamos além dos morros
Trazemos no peito tal tormenta
<->
Na cabeça, fios de cada dia
Agradece-se o sol que ilumina
Queimam-se pés com pedra quente
Espera-se a noite com seu presente 
Aos errantes, de oferenda, uma alforria
<=>
<=>
('------------=/[[(.,.)]]\=------------')
 |=--=={|=====|==|=====|}=--==|
\\-=-==-{====]==[====}-==-=-//
\\----==--\\\--|----|--///--==----//
~'~".,."~~~~~     ~~      ~~~~".,."~'~
~~"~    ~"~~

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

domingo, 19 de janeiro de 2014

Cats and dogs.

He had a cat called Deleuze.

The first he did when he arrived home was to go get his cat. He had been out of town for quite a long time. Too long maybe. When he left, he was in a relationship. Nothing seemed more natural then than to leave the cat with his significant other. The thing is, he was away for far too long. The relationship was now over, but, fortunately, they kept at least a decent respect for one another. So, it was a little weird to go meet someone with whom he had a relationship no more and ask to have the cat back. What if it was one of those involuntary heirlooms people get when they broke-up? Still, it was surprising how well things went. It was probably a result of the mutual awkwardness of exes who don’t really have anything to hold against each other but at the same time know that things are definitely over among them. The thing is, when he opened the door to his dusty-filled apartment, he was carrying a huge carrier bag on one hand and a black-and-white cat on the other one. Deleuze was a suspiciously thin cat; bony and awkward. He moved not with the confidence usual to most felines, but with a shyness that seemed to be out of a song by The Smiths.

She had a dog called Byron.

It took her and awful long while to find a place to live where she could have a dog, especially a dog as big as Byron. The big city seemed to be terribly uncaring about the animals living in there. She was actually a pet-person. Back in her hometown she had quite a few of them, but most she had to leave at her parent’s house. She moved to the city to study in the university, and she wouldn’t be able to give the pets the attention they required, even if she had found a place where she could keep them all, which wasn’t the case. She was now sharing a house, and her flatmates were not entirely happy about having the big coffee-colured Labrador there. But time would teach them to like the happy dog. She couldn’t find the guts to leave Byron behind, with the other pets. He had been by her side since she was ten years old. It got his name due to a slight shorter hind leg that made his walk look clumsy, but that was overshadowed by the inherent joy and majesty that Byron emanated. The dog made her feel happy, and that was the ulterior reason why she couldn’t let go of him. And also the reason why everybody ended up loving him, sooner or later.

They met in front of the cinema.

It was one of his favourite places in the city. He had to go there and see if it was still the way it used to be. It wasn’t.

It was a very cozy place, with a vintage air, in a quite old building. Now it’s almost contemporary. The outside looks haven’t changed that much, but the old movie poster have been replaced by ever-changing images on flat screens. The café there is now bigger, but it lost the tables it had on the outside. Apparently it’s no more possible to enjoy a cup of coffee under the willow tree on the backyard.

She was walking Byron. She lived nearby and loved to walk her dog. Especially since she couldn’t quite believe that she was living in the city and walking there made everything look real.

He was disappointed with the changes he was seeing everywhere, even in places close to his heart, like that cinema. She was temporarily amazed by the big-city lights, by the buildings and didn’t really realize that Byron approached someone. The dog caught his eye ‘coz it was majestic, even if limping. The voice of someone talking to Byron made her come back from her wonderings.

He said that that was a beautiful dog.

She asked if he was a dog person.

He answered that not really, that he liked cats better.

She told him she liked animals in general. That she missed the cats she left behind, but that her dog made her company.

He jokingly talked to the dog, as a mean of talking to her, saying of course, such a Don Juan might charm everyone he meets. And asked her if she had moved to town recently.

She replied yes, to study at the university and be and animal activist.

They smiled at each other with empathy and parted ways.