domingo, 9 de maio de 2021

1.: O Jaguar e a Estrela

 

É pouco prudente – dizia algum ditado tortuoso dos bores, ou que se atribui a eles – é pouco prudente mastigar a folha de uma raiz que não se conhece. Mas eu não sou um bor, e já não há mais nenhum País dos Bores para sustentar que seu método de prudência tenha sido eficaz. Não há. Isso dado, posso me arriscar a tentar contar uma estória como essa: a de antes mesmo de haver um mundo.

E aí é que aparecem as folhas sem raiz visível: antes de haver o mundo, não havia a humanidade, nem ninguém disposto a ficar com as nádegas e as córneas doloridas, escarafunchando registros antigos e organizando cronologias discrepantes para rabiscar em rolos de pergaminho bem catalogados uma História do que quer que fosse. Nem havia rodas onde os mais velhos cantavam canções sobre os feitos passados; nem havia pedras para se empilhar umas ao lado das outras, à maneira dos povos da serra, com estórias codificadas em padrões intrincados; nem havia quem inventasse canções, polisse pedras ou fabricasse tintas e pergaminhos.

Aos súditos respeitáveis de Sua Majestade Imperial resta ir a um templo do Sol para ouvir histórias desse tempo remoto, mas elas são incompletas: são contadas conforme a tradição dos pequenos deuses que vieram do Sol e das Luas, e de outros deuses ainda menores, nossos conterrâneos. Mas esses pequenos deuses não estavam lá, antes do início do mundo. Tampouco estavam lá os grandes deuses, que lhes sopraram a vida e essas histórias do começo do mundo em suas orelhas. E mesmo os grandes deuses contavam histórias contraditórias entre si, e os ecos de sua contradição permanecem, mesmo que os deuses mesmos estejam agora desaparecidos.

Além de toda contradição, sabemos apenas que os maiores entre os grandes deuses despertaram sozinhos, cada um em uma Ilha no imenso Mar de Nada. E ao olharem ao seu redor, tinham apenas consciência de sua solidão, e um desejo por encontrar o que quer que houvesse nas Ilhas distantes que seus olhos divinos sondavam. E ao olharem para dentro de si, sabiam apenas de uma saudade de ser o que havia antes de seu despertar. No fundo de sua mente havia um brilho primeiro, a consciência de uma Estrela.

Cada um dos grandes deuses inventou para si o que significava essa Estrela, essa Deusa Velha anterior a todos eles. E a história de suas invenções contaremos depois. Mas há uma invenção mais antiga que qualquer uma dessas, uma que se inventou antes mesmo do início do mundo, quando ainda havia a Deusa Velha Primeira, a Estrela.

Para conhecê-la, é preciso bater nas portas certas das noites da Cidade dos Homens, onde templos domésticos se improvisam à luz de velas amareladas. Lá se compartilha a tradição das pequenas deusas da morte, que vêm carregar o espírito dos mortos para além do Mar de Nada, até as mansões de seus ancestrais nas estrelas distantes. Elas nasceram do Jaguar, que habita nas praias extremas do Mar de Nada, mas que é anterior ao Mar e suas praias. Ele é, das coisas que há, a única que conheceu a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. De sua mãe, o Jaguar, as pequenas deusas da morte contam essa história:

Quando o Jaguar abriu os olhos pela primeira vez, só havia ao seu redor a névoa, no qual boiava. O Jaguar sabia, de alguma forma, que ele era ele mesmo, como a névoa, feito de nada, mas havia alguma coisa em seu núcleo, misteriosa e feita de não-nada. Essa coisa regia às partículas de nada que o compunham, a elas impunham ordem e forma: A cabeça do Jaguar era comprida, como a de um tapir ou um dragão - que eram bichos que não havia ainda; seus olhos eram dois pontos vermelhos e reluzentes como rubis - que também não havia. Sua juba flutuava sem ordem, arrastando atrás de si ondas cinzentas da névoa. Seu corpo era longo e esguio, e mal se percebia onde terminava e onde começava sua longa cauda. Ele era todo cor de relâmpago - os quais também ainda não havia - desde a ponta dos chifres à ponta das garras, desde o focinho até a cauda, ainda que em tons variados de relâmpago: relâmpago claro no focinho; relâmpago elétrico na juba; relâmpago tempestade na cauda, cujas escamas o iam tornando progressivamente um tom de relâmpago submerso.

    Naquele tempo, o Jaguar não entendia exatamente que havia um limite para si mesmo no mundo: ele olhava para todos os lados e só via o cinzento escurecido que era a névoa, e o relâmpago de sua cauda e da ponta do seu focinho, mas não pensava nessas coisas como separadas. Se ele tinha vontade de esticar sua pata, ela se esticava. Se ele tinha vontade de que a névoa de nada ao seu redor se agitasse, bastava chacoalhar sua cauda. Ele era ele, e era também a névoa, e não percebia que havia qualquer distinção entre as duas coisas, pois sua vontade nunca era contrariada.

    Então o Jaguar se sentiu só, e entediado, mas como ainda não tinha inventado palavras para isso, nem para mais nada, ele só sabia de um mal-estar dentro de si, nas suas divinas entranhas de Jaguar: sua vontade pela primeira vez foi contrariada, mas não de um jeito que lhe deixasse menos só: pois eram suas entranhas que insistiam em sentir aquilo, e ele de alguma forma sabia que aquelas entranhas eram definitivamente ainda ele. A fera divina tentou então fechar os olhos e voltar a dormir, mas isso de pouco serviu: não lhe fora dado escolher quando dormia ou quando acordava; e mesmo quando dormia, era perseguido por um sonho terrível, em que ele era o Jaguar, flutuando solitário pelas névoas feitas de nada.

Ocorreu a ele que talvez não fosse parte da névoa, mas apenas uma coisa separada, boiando nessa bruma, e que talvez houvesse outras coisas boiando como ele. Primeiro, ele ficou parado por algum tempo – não que ele tivesse qualquer ideia de tempo – imaginando se desejaria encontrar alguma outra coisa no meio da neblina, e se pegou pensando sobre o que aconteceria se ele desejasse que ela erguesse a cauda ou esticasse as patas. Imaginou depois o que aconteceria se essa coisa, por sua vez, desejasse que ele erguesse sua cauda ou esticasse as próprias patas, ou balançasse seu longo focinho. Um arrepio percorreu seu corpo comprido, desde a juba até a ponta mesmo de sua terrível cauda; mas a solidão era maior do que o temor, e o Jaguar começou a nadar.

Como a língua primitiva dos deuses não tem palavras para designar a passagem do tempo, as pequenas deusas da morte nunca souberam a duração dessa busca de sua mãe por companhia; sabem apenas que ele nadava, e então dormia, e sonhava que estava nadando, e então acordava e nadava novamente. Até que, durante um de seus sonhos, o Jaguar começou a sentir uma sensação que nunca sentira antes, que era calor. Não havia encontrado antes nada quente ou frio na névoa, suas ondas cinzentas tinham a mesma temperatura em toda parte, que era a mesma temperatura do corpo da fera divina, mãe das deusas da morte.

O calor despertou o Jaguar de seu sono, e seus olhos contemplaram à distância um minúsculoo ponto de luz, de onde o calor parecia emanar. Ele experimentou desejar que a luz se movesse, ou que o calor aumentasse de intensidade, mas nada aconteceu. O que quer que fosse aquilo, estava além da sua vontade, e não era ele mesmo. Deslocando-se vagarosamente, serpenteando seu corpo pelas ondas cinzentas, o Jaguar começou sua longa jornada em direção àquela luz.

Conforme o ponto de luz aumentava de tamanho, e o calor de intensidade, o Jaguar percebeu que a névoa também se agitava. Ela fluía cada vez mais rápido, como se fugindo da fonte daquele brilho, e o Jaguar se viu obrigado a nadar com mais intensidade, e fazia o possível para não adormecer, pois cada vez que acordava havia sido levado pela correnteza para mais longe de sua meta. Por um tempo que não se pode calcular a fera nadou contra a corrente, até que as brumas se dissiparam, e ele pode chegar perto o suficiente da fonte de luz para perceber do que se tratava:

Era Ela: a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. O Jaguar nunca fora hábil para nomear o que seus olhos viam, e por isso não conseguiu nunca fixar um nome adequado para a fonte daquela luz. E tampouco sabia fazer as palavras o obedecerem para descrever as formas das coisas, por isso tudo o que as pequenas deusas da morte sabem é que de alguma forma a fonte de luz era quente e linda, e tinha olhos que atraíam tudo para sua órbita e davam ao Jaguar a sensação de que a vida despertaria de dentro de seu corpo feito de nada e explodiria em mistérios além de sua compreensão.

As línguas do mundo seriam talvez diferentes se a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, tivesse ela sobrevivido, ao invés do Jaguar. Porque ela precisou dar apenas um nome à fera divina, mãe das deusas da morte, e era um nome tão preciso; não há nada mais Jaguar que seu focinho de tapir e seus olhos de rubi, nada mais Jaguar que seu corpo de relâmpago e sua fome do tamanho de uma tempestade. O Jaguar, no entanto, só nomeava por metonímias e aproximações: e percebia o que havia de Estrela, e de Menina Leoa, e de Deusa Velha primeira em sua contraparte; e lhe deu esses múltiplos nomes, todos espelhando ou sombreando aspectos incompletos de seu existir. Mas a Deusa escolheu entregar-se à própria destruição, ao contrário do Jaguar, então as línguas do mundo são todas sombras e espelhos com que tentamos agarrar alguma coisa do que existe em meio a tantas coisas que parecem só existir enquanto colocamos palavras nelas.

Por um tempo incontável, o Jaguar e a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, encararam-se admirados da existência um do outro, e de si próprios, por consequência. O Jaguar desejou levantar e baixar sua própria pata, e a pata obedeceu; quando desejou, porém, que os dedos das mãos da Deusa se retraíssem, ou que os olhos d’Ela se fechassem, foi em vão. Mas conforme ele baixou e levantou sua própria pata ela, em resposta, baixou e levantou sua mão direita, e o Jaguar imaginou que ela fosse pelo menos como as ondas da neblina, que respondiam aos movimentos de sua juba.

Até que uma palavra saiu da boca da Deusa. ‘Jaguar’. E ele percebeu que ela era mais que as ondas do Mar, porque elas nunca faziam nada antes que ele movesse a própria juba. E aqueles olhos dela tinham com certeza uma vontade que não era dele, e o Jaguar imaginava se ele próprio também teria olhos, e se eles também arrastariam tanto para dentro de si. E por um tempo incontável, porque eles nunca se preocuparam em inventar palavras para contar o tempo, o Jaguar e a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, inventaram palavras e gestos para tentar entender o que eram, o onde terminava um e começava outro, e se havia alguma coisa além deles dois.

Concluíram que sim, nos dizem as pequenas deusas da morte, cuja mãe é o Jaguar. Segundo elas, inventaram os dois a ideia de que havia, por um lado, a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela; por outro lado, o Jaguar; e entre eles dois, e ao redor deles, a névoa, que ia se espessando conforme se afastava. Nunca conseguiram se decidir se a luz que emanava da Estrela era parte mesma da Estrela, ou outra coisa. Não sabiam dizer, tampouco, se a força de seus olhos, de arrastar tudo para si, ou a força de sua voz, que emanava para além de si, significava que seu olhar ou sua fala estendiam seus eus para mais além deles mesmos – mas intuíam que sim. Por muito tempo também, tentativamente, debateram se poderia haver na névoa alguma coisa além de névoa: alguma outra coisa que tivesse talvez olhos, ou talvez voz, ou que emanasse de si luz e calor, ou que soubesse nadar pelas ondas da bruma. Até que sentiram nascer em si uma sensação que resolveram chamar de uma vontade: era a vontade de mais do que derramar uma luz que seria arrastada para dentro dos olhos do outro, ou de falar uma voz que entraria por seu ouvido. Eles nunca haviam tocado qualquer coisa além da névoa, que era feita de um nada bem tênue, ralo. Mas sentiam no formigamento da ponta de seus dedos, ou de suas garras, que poderia haver ali outra forma de sentir. Disseram isso um ao outro, quase ao mesmo tempo.

Ficaram em silêncio, por algum tempo.

Então, o Jaguar começou a torcer seu corpo para fazer vibrar a névoa ao seu redor, ao mesmo momento em que a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, ensaiava dar uma braçada e bater suas pernas na bruma. Os dois nadaram pela névoa, vagarosamente, incertos de tudo, exceto do chamado que exerciam um sob o outro. Pararam a uma distância tal um do outro que sabiam que, se estendessem os braços, a ponta da unha da Deusa encontraria a ponta da garra do Jaguar. Mas nenhum dos dois estendeu o braço ainda.

Os deuses primordiais eram muito mais cuidadosos, você veja, que os deuses que vieram depois. Ainda não tinha sido inventada a morte, então não tinham consciência de sua imortalidade. O que faziam era não falar palavra nenhuma, e saltar seus olhos dos olhos da outra divindade para a ponta de seus próprios dedos, e para a ponta dos dedos do outro, e de volta aos olhos, e de volta aos dedos, vagarosos como só quem não inventou o tempo pode ser.

Imperceptível como uma onda de nada, o Jaguar movimentou sua garra, quase ao mesmo tempo em que a Menina Leoa, a Deusa Velha, moveu a sua. Aproximaram-se. Sentiram medo, pois à medida que se aproximavam as mãos, aumentava a vontade de se encostarem, como aumentava também a força secreta da maré de nada, repelindo-os um do outro. Mas o que podia a maré contra sua divina vontade?

A cada infinitesimal milhar de quilômetro que atravessava sua mão em direção a seu amigo, a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, sorria – apesar do vento e da maré revoltos arremessarem seus cabelos para todos os lados, e fazerem sua pele sentir pela primeira vez a pressão de algo que poderia destruí-la. Mas essa luta entre o medo e a vontade era muito mais difícil para o Jaguar. Seus olhos vermelhos agarravam-se aos da Deusa, sabiam que se hesitassem, se se voltassem para qualquer outra direção, o Jaguar nadaria apavorado para longe, e talvez nunca mais pudesse se aproximar do calor de sua companheira. Ainda assim, avançava em velocidade cada vez menor – temia que, tanto quanto sua fuga, o contato entre eles dois significaria que nunca mais se veriam. Notou, enfim, que a Menina Leoa não se aproximava mais.

Ela teve que inventar uma nova palavra para perguntar algo como:

Você tem medo?

Ele, por sua vez, pensou por um tempo que não se pode contar, para entender o que a nova palavra significava:

Sim.

O que te causa o medo? O mar? O vento?

A sensação em minhas escamas, no meu couro, que o mar e o vento causam. Quanto mais me aproximo de ti, mais me agridem. Sinto que vou deixar de ser. Eu não quero deixar de ser, para poder continuar te vendo, e para poder continuar conversando contigo.

O Jaguar percebeu que fazia a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, encontrar essa ideia em seus pensamentos pela primeira vez. Mas depois de passear com seus olhos dourados de um lado para o outro, ela respondeu:

Não acho que possamos deixar de ser. Talvez, só passemos a ser uma coisa nova. E o que quer que seja a coisa nova, vai ser como a primeira vez que te vi, nadando contra a correnteza da bruma. Eu não era a mesma coisa que sou antes de te ver – ela tropeçava na própria voz conforme inventava o pretérito, mas o Jaguar a compreendia, porque suas palavras eram sempre precisas – eu não inventava palavras, e não sabia de nada que pudesse refletir a minha luz, ou reconhecer o meu calor. E eu não tinha vontade de tocar em nada, e eu não tinha medo de deixar de ser. Então eu já não sou o que eu era, Jaguar, nem você.

Eu tenho medo de não saber que sou seu amigo, o Jaguar, o que nada pela bruma. Eu acho que já não sei mais como era antes disso.

Pode ser que você se esqueça que é o Jaguar, como você esqueceu o que era vagar sozinho na bruma. Pode ser que você se esqueça de que é meu amigo, e que eu me esqueça de que sou sua amiga. Mas isso não faz deixar de ser verdade que você nadava sozinho pela bruma, Jaguar. Olhe como sua cauda controla a neblina a seu redor, olhe como até os bigodes do seu focinho atentam-se à corrente instante a instante. O que quer que aconteça depois que minha mão encontrar a tua, tudo o que aconteceu antes ainda se fará sentir. E o que quer que sejamos, então, se lembrará de alguma forma, e poderemos estar juntos de novo, de uma forma diferente, talvez ainda mais bonita.

A Deusa Velha inventou então o gesto do convite, girando a palma de sua mão pra cima, mas sem se aproximar. O Jaguar sentia medo; mas apesar do medo, voltou a estender suas garras na direção da Estrela, e mais rápido dessa vez: tinha que nadar contra a correnteza cada vez mais forte da bruma, contra a força imensa, além da vontade deles dois, que seus divinos corpos não se tocassem nunca. Quando já estavam ao alcance um do outro, quando a Menina Leoa conseguia sentir em sua pata o frio que emanava da pata do Jaguar, tanto quanto ele sentia o calor que emanava dela, hesitaram novamente. Percebiam que a força que os separava um do outro se tornava mais forte. Não sabiam se seriam capazes de resistir a ela quando finalmente se tocassem.

Mas o formigamento que atravessava suas mãos, e subia por seus cotovelos e pescoços, era agora também uma força irresistível. A vida no sozinho infinito da bruma era insuportável, e se tornava insuportável também a ideia de uma vida em que não tocassem suas mãos uma na outra, entrelaçassem seus dedos, sentissem o choque entre o frio e o calor e pele, e músculos, e tendões, e ossos. De repente, em algum lugar dos olhos do Jaguar, a Estrela encontrou um sorriso. Era a si mesma que ela via ali refletida. Mas também via o Jaguar refletido no reflexo do reflexo de seus olhos. E dentro de cada um dos reflexos de reflexos, ela viu o que poderia ser o mundo das coisas vivas, e ali encontrou o sorriso. Era a fagulha que faltava: o Jaguar entrelaçou suas garras nos dedos da Deusa Velha, resistindo à violência da maré, encostou mesmo a almofada de sua pata na palma da mão da Deusa. Toda a força de sua vontade se concentrava em segurar a mão de sua amiga, e em impedir que seu divino corpo fosse esfacelado pelo furação de nada que surgia de seu contato.

Mas a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, lutando também contra o furacão, percebia que abrir mão do toque de seu amigo era também esfacelar-se. Dobrou o próprio cotovelo para puxar para si o corpo do Jaguar. Seus cabelos, como a Juba de seu amigo, voavam para todas as direções possíveis, e alguns fios mais frágeis começavam mesmo a se arrebentar e voar em direção ao infinito. Mas o braço que ainda tinha livre a Menina Leoa fez enfrentar o tufão e alcançar as costas de seu amigo. E puxando-o ainda mais para perto de si, inventou o abraço.

Puderam sentir então, por um instante, apenas o toque um do outro. No pescoço, nos ombros, no peito, e o Jaguar também esticou como pode sua pata para retribuir a sensação do braço da Estrela segurando suas costas. Sabiam que a maré queria arrastá-los um para longe do outro, mas ela já não cabia entre eles, e se contentava em lufar furiosa ao seu redor. Aprenderam muitas coisas nessa época: a diferenciar o bater de seus corações, e a se maravilhar quando as batidas coincidiam; a escutar sua respiração, a sincronizá-la, embaralhá-la, acelerá-la; a vibração engraçada que ouviam quando tentavam conversar com o ouvido encostado no outro. Perceberam todo um mundo que havia dentro de si mesmos como nunca antes, e como talvez nunca pudessem ter percebido à distância. A Deusa Velha, que era sempre certeira em palavras e ideias, não sabia mais dizer se gostava mais que tivessem inventado as palavras ou o abraço.

Meu amigo, ela disse, já não tenho forças para resistir à maré.

Então nos soltamos?, sugeriu o Jaguar. bem, bem devagar?

Não! Se eu simplesmente te solto, serei arremessada tão longe que não terei forças para te encontrar de novo; nem brilho para que você me encontre. E sinto seu coração se esvaindo, e sua respiração ficando mais fraca. Você tampouco vai ser capaz de me procurar.

Então o que podemos fazer, minha Estrela, minha amiga?

Vamos nos segurar um ao outro tão forte como pudermos – e depois, vamos nos deixar desmanchar. como não podia ainda convencer o amigo, continuou: você quer enxergar em mim agora apenas a Menina Leoa, a Estrela, mas a verdade é que só me sinto como a Deusa Velha. Estivemos juntos por eras que nem podemos contar, porque não inventamos palavras pra isso. Por eras nos olhamos, depois nos conversamos, depois nos abraçamos. E eu vi nos seus olhos, meu Jaguar, meu amigo. ela sorriu: no reflexo do reflexo do reflexo, dentro de seus olhos, eu vi o mundo que virá de nós dois. Não inventamos palavras para tudo o que existirá nele ainda, porque só tivemos a bruma para ver, e um ao outro; mas haverá coisas nele, coisas nossas filhas de alguma forma, ou parte de nós de um jeito que ainda não entendo; e essas coisas também serão lindas de olhar, e inventarão palavras para falar de si mesmas, e para tudo mais que houver no mundo, e saberão dar abraços, e segurar as mãos, e sentir o cheiro das respirações umas das outras.

Mas, para isso, teremos que deixar de ser, teremos que morrer.

Meu Jaguar, meu amigo, nós teremos que morrer. Mas eu não acho que isso seja o mesmo que deixar de ser. E se não nos deixarmos morrer, o que teremos? A bruma e a solidão. Eu prefiro morrer ao seu redor, e permitir que o mundo novo seja. Eu não amo a bruma, mas eu te amo, e amo o mundo que virá de nós dois.

Eu te amo, mas eu não quero morrer.

Eu também não quero, não sei se estou pronta. Mas ouça como a maré ruge. E ouça como meu coração falha. Nós não temos mais... ela inventou enfim: nós não temos mais tempo.

É verdade.

O Jaguar inventou então o choro, e as suas filhas, as pequenas deusas da morte, acreditam muito firmemente que é de suas lágrimas que se formaram depois os cometas. Mas mal concluía sua invenção, percebeu que a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, o abraçava de repente com mais força. Ela também chorava, mas parecia um choro de um tipo mais quente, e seu coração se acelerava.

Eu estou feliz que estejamos juntos agora. Gostaria apenas que eu pudesse ter brilhado mais forte, para que eu encontrasse seus olhos mais cedo na bruma.

O Jaguar percebia que o corpo de sua amiga estava cada vez mais quente, e cada vez mais insólito. Não percebia mais em seu pescoço, em seu peito e em seus braços as formas do corpo da Deusa; cada vez mais era como se abraçasse uma nuvem quente. Sentiu então o formigamento em suas próprias patas, e em seus chifres, e na ponta de sua longa cauda cor de relâmpago: bastava se permitir, e seu corpo se desmancharia aos poucos, como o de sua amiga agora se desmanchava, e da mistura de sua poeira e do turbilhão da bruma surgiria o mundo que a Estrela enxergou dentro de seus olhos, num reflexo de um reflexo de um reflexo.

O Jaguar, porém, teve medo. A Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, pode sentir ainda o salto em seu coração, e a hesitação de seu amigo, antes de se desmanchar completamente. Ela tentou então ela mesma resistir por mais um momento, para poder consolá-lo de sua tristeza, mas isso já não era possível. Sem ter mais o abraço sólido de sua amiga em que se segurar, o Jaguar foi arremessado para longe pelo turbilhão da bruma, feito agora de uma mistura do nada com o brilho intenso de poeira cósmica em que a Estrela se tinha tornado.

 

Quando acordou, enfim, seu pesado corpo estava deitado desconfortavelmente sobre uma areia cinzenta. Estava nas praias do Mar de Nada. Sua visão estava embaçada, mas pensou ver ao longe, no meio do mar escuro, algo reluzindo. Seria a Estrela? Tentou se levantar, mas suas pernas não podiam sustentá-lo, e sua cabeça doía intensamente. Seu corpo divino estava coberto de feridas provocadas pela explosão da bruma. Um de seus chifres tinha sido mesmo arrancado de sua cabeça. O sangue que escorria dele não tinha sua cor de trovão, mas era preto como o Mar de Nada.

No entanto, conforme escorriam e pingavam na areia prateada, as gotas negras de sangue do Jaguar não se contentavam em formar poças por aí. Não, elas se engruvinhavam, e ondulavam, e aos poucos começavam a se arrastar de um lado para o outro, e depois em direção às ondas na beira da praia. Primeiro eram apenas sangue encaroçado, mas logo de um caroço começava a surgir uma perna que saltava, um braço que arrastava, mesmo uma cabeça que olhava de um lado para o outro, tentando sentir o cheiro de nada do Mar, tentando saciar a sede em um gole de seu nada.

O Jaguar não sabia se podia confiar em suas próprias vistas embaçadas, mas já milhares dessas minúsculas criaturas se formavam ao seu redor. E apesar de não brilharem, apenas refletiam com pouca vontade as cores que havia a sua volta, apesar de não brilharem ele percebia que elas tinham em si muito mais o formato da Estrela do que o dele. Tinham dois braços, pernas maiores que o tronco, mãos ao invés de patas e nenhum sinal de chifre ou de cauda. Chamou-as de seu sangue, suas criaturas e suas filhas; mas como era inábil com as palavras, e não sabia precisar as coisas por nome, percebeu ainda que precisaria depois inventar um nome para cada uma delas, talvez mais de um nome para cada uma. E elas, por sua vez, teriam que aprender sobre os nomes e as palavras, para que pudessem ser chamadas.

Assim, por um tempo que a princípio não pode ser contado, mas que as Pequenas Deusas da Morte tentaram estimar depois, o Jaguar ensinou às suas filhas a língua que tinha inventado junto com a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. Enquanto isso, elas em troca cuidavam de sua mãe, lavando suas feridas com nada, ouvindo-o e alimentando-o, e construíam uma cidade de vidro e areia para habitar a sua volta.