Os melhores sorrisos
São dados pela metade
E as maiores verdades
Taxadas de maldade.
***
Você acorda suando ao som do despertador. Era de se esperar,
foi uma noite quente e você não tem ar-condicionado em casa. Talvez por culpa
do calor você teve sonhos ruins, não exatamente pesadelos, mas o tipo de sonho
que te deixa desconfortável e te acompanha por pelo menos algumas horas depois
de despertar. Normalmente você teria acordado antes do despertador tocar e
teria ficado na cama, já acordada mas ainda sem muita coragem para levantar,
enrolando até não mais poder. O toque estridente costumava ser mais a voz da
razão dizendo que era hora de deixar a preguiça para lá e começar o dia do que
realmente algo que te impedia de dormir demais. Isso só fez com que a sensação
de não ter dormido bem fosse ainda maior. Ainda assim, você se força a fazer
aquilo que sempre faz: come alguma coisa que não é exatamente um café da manhã,
se prepara para o dia que vai enfrentar, penteia os longos cabelos castanhos e
ondulados para que não ficar parecendo com os restos mortais de quem você foi
no dia anterior, checa se tem tudo que precisa na bolsa antes de sair de casa e
tenta parece mais acordada do que morta-viva enquanto o faz.
O caminho para o trabalho é o mesmo já há tanto tempo que
você já sublimou o quão desconfortável é. Felizmente não é tão cedo quanto
poderia ser, as piores horas do transporte público já passaram, embora o seu
trajeto esteja longe de ser agradável. Raramente conegue um lugar para sentar
no ônibus, e hoje não foi exceção. Apesar de já não ser assim tão cedo, o dia
ainda tem aquele aspecto cinzento das manhãs, mas você sempre achou que isso se
devia mais ao seu estado de espírito do que à realidade, não é mesmo? Você
quase cochila de pé, e a senhora não muito velha e apenas ligeiramente gorda
que está sentada num dos assentos amarelos à sua frente sorri ao te ver pescar.
Você não consegue distinguir, a essa hora, se era um sorriso de companheirismo
ou zombaria, e você sorri de volta, preferindo acreditar no melhor das pessoas.
Ela, no entanto, não se oferece a segurar a sua bolsa.
Eu não preciso descrever o seu trabalho, não é mesmo? Nem
como você se sente sobre ele, ou como pensa sobre ser só um estágio e como
podem ser as diferenças em lidar com um trabalho real quando acabar a
faculdade. Se é que vai conseguir um trabalho de verdade depois disso. Você
conhece muito bem as suas mágoas, e eu não estou aqui para revivê-las. Não vou
falar da sua chefe, ou dos seus colegas de trabalho, essas pessoas não são
importantes, não hoje, não nesse dia; você ainda está apenas meio acordada, e
qualquer interação com essas pessoas é mais mecânica do que qualquer outra
coisa. Em mais de um momento do seu dia você se surpreende não tendo certeza se
você disse alguma coisa ou se apenas imaginou ter dito, ou de onde vieram as
palavras que saíram da sua boca – pois seu cérebro sem dúvida não teve nada a
ver com o parto delas – e sem ter certeza do que foi que alguém te disse, mas
você faz o que é preciso e ninguém parece perceber qualquer diferença. Você
chaga a se perguntar se essas pessoas ligam assim tão pouco para você, ou se
você age assim normalmente, até perceber que você está até mesmo fazendo piadas
e comentários sagazes, como você sempre faz, a única diferença é uma letargia
que parece saída de algum filme da Sofia Coppola. Você não lembra de que algo
assim já tenha acontecido antes. E no fim isso se revela como nem sendo algo
assim tão ruim, o dia hoje foi cheio, como costuma ser vez ou outra, e isso te
ajudou a não se cansar tanto. Talvez você só tenha se acostumado demais com tudo
que faz diariamente. Apesar disso, agradece que hoje você não precisa ir para a
faculdade e vai poder voltar para casa sem maiores consequências e quem sabe
depois de uma noite de sono com a qual você já sonha, amanhã tudo tenha voltado
ao normal.
Voltar para casa não é um processo muito diferente do de
sair de lá. Por um momento você tem até mesmo a impressão de encontrar a mesma
mulher que sorrira para – ou seria de – você pela manhã, mas não tem certeza,
pode muito bem ser apenas um efeito da idade e tipo físico semelhante. Chegando
em casa você se sente melhor. Tem até um ligeiro sentimento de que deveria
arrumar o seu quarto, mas, olhando melhor, não está assim tão mal, pode deixar
o pó se acumular por mais uns dias, até porque você tem coisas mais importantes
para fazer. As provas vão começar em breve e você, obviamente, está com seus
estudos atrasados. Ninguém diria que você é uma estudantes irresponsável, muito
pelo contrário, a maioria dos seus colegas tende a elogiar – embora de forma
não exatamente elogiosa – a sua capacidade de tirar notas boas; isso, você
prefere ver dessa forma, é uma capacidade de tirar notas boas, é insegura
demais para se rotular inteligente, e cobra muito de si mesma para dizer que as
notas são fruto de um grande esforço. Pega um dos livros que tirou da
biblioteca, deixa próximo um que é seu mesmo, para possíveis referências,
comparações e lembranças e acha a folha de papel onde vinha fazendo anotações
sobre a leitura. Se perde naquilo por algumas horas, e não é de todo diferente
daquilo que aconteceu no trabalho, mas ao estudar esse distanciamento parece
algo mais natural, de forma alguma problemático. Já estava tentando criar
alguma desculpa para se afastar dos livros e procrastinar por algum tempo
quando seu celular toca, ou melhor, vibra, ao receber uma mensagem.
É a sua amiga. Não preciso dizer qual delas, você sabe;
aquela que sempre te convida para festas e para a qual você na maioria das
vezes diz não, embora te machuque um pouco dizer não para ela, vocês tem se
visto tão pouco nos últimos tempos, e você gosta tanto dela, e por isso vez ou
outra acaba dizendo sim, só para ter uma chance de sair com ela. Nem sempre os
resultados são bons, às vezes vocês mal conseguem falar, seja pela quantidade
de álcool consumido ou pelo barulho que sempre existe em todos os lugares para
onde ela te leva, outras vezes, no entanto é bom, por vocês conseguirem se
reconectar, outras vezes, sem dúvida, é bom exatamente por causa do álcool e do
barulho. Não estou dizendo que você não gosta de sair, você sabe disso, apenas
que os lugares para onde essa sua amiga vai nem sempre são os que mais te
agradam, e que nem sempre você está com vontade de sair, não é nada
decepcionante ficar em casa numa noite de sábado vendo os seriados nos quais
você está atrasada, mas periodicamente você também tem seus acessos e não quer
passar uma noite de sexta em casa por nada nesse mundo, às vezes você sai
durante todos os fins de semana por um mês ou mais, e nem mesmo o mal-estar
inerente às segundas-feiras faz com isso tenha parecido uma má ideia, muito
pelo contrário, isso costuma te divertir bastante. São raras as vezes que você
sai durante a semana, no entanto, e começar a trabalhar só fez com que essas
escapadas se tornassem ainda mais raras.
A mensagem que ela te manda te lembra que hoje é sexta, e
que sair hoje não parece uma ideia assim tão ruim. E você responde que sim, sem
o menor peso na consciência depois das horas que você passou estudando. É claro
que depois, quando chegar o dia de
alguma prova para a qual você se sinta especialmente despreparada, a
situação vai ser diferente e você vai praguejar contra as horas que devia ter
passado estudando e não o fez, mas isso é uma inevitabilidade da vida, e essas
inevitabilidades nós temos que aceitar e aproveitar conforme venham. Também não
é como se você não se sentisse melhor ao reclamar, o que está aí para te provar
que às vezes mesmo as coisas mais insignificantemente ruins podem ter um lado
positivo.
Você se arruma para sair. Você se veste bem, todos dizem
isso e eu concordo. Não sei, no entanto, se é uma coisa intrínseca ao seu bom
gosto ou se reflete algum tipo de planejamento, de fabricação, esse é um dos
segredos que você ainda me guarda, e que eu não me esforço em descobrir. Você
diz que o jeito que você se veste é algo que simplesmente acontece, e eu não
sei dizer se isso é modéstia ou verdade, e, no fim, não importa, o que importa
é que o jeito que você se veste é completamente seu. E coisas superficiais como
a forma de nos vestirmos acaba dizendo tanto sobre nós, não sei se te disse mas
não julgar pelas aparências sempre me pareceu algo tão superficial, até mesmo
uma falta de respeito, quanto de nossas histórias, de nossas personalidades,
emerge em fenômeno? Quem foi mesmo que disse que nossa alma é, na realidade, o
corpo? Aristóteles? Provavelmente. Mas isso são vãs digressões, voltemos a
falar de você.
Você encontra com a sua amiga e vão juntas para o lugar da
festa. É, surpreendentemente, algo muito mais tranquilo do que você esperava, e
só depois de algum tempo você consegue perceber que é a comemoração de
aniversário do cara com quem essa sua amiga tem saído já há algum tempo – você
jurava que já tinham terminado, mas aparentemente não, ou talvez tenham
voltado, quem sabe? – e que você já teve chance de ver em algumas situações.
Você, no entanto, não lembra o nome dele. Você também não conhece a maioria das
pessoas que estão ali, mas isso não te impede de se divertir, é claro. Além do
mais, por mais que você possa não reconhecer, fazer amizades nunca foi uma
dificuldade assim tão grande para você.
Me desculpe, eu disse que ia voltar a falar em você e assim
tão logo volto a falar de mim. Esse é, afinal, o momento da história no qual eu
entro. Você nunca tinha me visto antes. É aí que você me vê pela primeira vez.
Eu me reservo ao direito de ficar calado e não te dizer se eu já tinha te
observado antes, de longe ou de perto, tem algo de romântico em deixar essa
dúvida, dizer que eu posso ter estado tão próximo de você antes e ter sido
completamente ignorado. Mas não dessa vez. Você me vê através da sala, que não
é muito grande, mas estamos longe o suficiente para que nossos olhares se
cruzem apenas casualmente. Eu te conheço bem o suficiente para saber o que em
mim te chamou a atenção, eu sei que mesmo do outro lado da sala você prestou
atenção nos meus caninos pronunciados, que não raro chegaram perto de te
machucar, no meu cabelo, pouco mais curto que o seu, e tão parecido com ele,
também castanho e também ondulado, o meu estilo meio gótico, mas sem muitos
exageros. Quando nossos olhares finalmente se fixaram um no outro, eu soube que
você gostou dos meus olhos escuros tanto quanto eu gostei dos seus cor-de-mel.
Eu sabia tanto quanto você que aqueles olhares estavam fadados a se atraírem,
como se atraírem, o que eu não fazia ideia – e tenho certeza que você também
não fazia – era que algum dia, nem tão distante assim, nós íamos nos conhecer a
ponto de que eu fosse conseguir fazer uma descrição assim tão detalhada daquele
seu dia, daquele momento em que nos encontramos.
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