tag:blogger.com,1999:blog-42473861930703777462024-03-14T00:24:27.574-07:00TalvezBlogAnonymoushttp://www.blogger.com/profile/11135378183474600166noreply@blogger.comBlogger205125tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-16574389815132462572024-01-29T15:33:00.000-08:002024-01-29T15:33:52.651-08:00A pergunta que fica da vida<p>Como de costume em qualquer outra vida ou ocasião, a vida do ser humano era uma coisa difícil. </p><p>Na verdade, verdade mesmo, não era que a vida era uma coisa difícil, mas é qua a palavra "difícil" foi inventada para falar de como se levava a vida.</p><p>A vida era um equilíbrio muito sensível, instável e frágil provavelmente por ser ao mesmo tempo específica mas complexa demais. </p><p>Precisava disso e daquilo e daquele outro, uma série de condições sem fim num universo que também era um infinito de caos.</p><p>Justamente por isso, a vida que se mantinha era a vida que não parava de trabalhar. Não é que era bom e não é que era o certo, nem tinha essas coisas, e também não é porque era preciso, era simplesmente por acaso, e aquele acaso laboroso diferenciava a vida do que não era vida. </p><p>A vida era muito egoísta, foi ela mesma que inventou isso de que ela era de alguma forma especial, foi ela que ao categorizar tudo, sem querer, por acaso de novo, por via do tempo que passou e de muitas outras vidas que não duraram, categorizou a si mesma: a vida. Isso foi inevitável, e inevitavelmente e ao mesmo tempo também, nomeou para si mesma seus deuses que eram seus algozes: o desequilíbrio, o trabalho, a morte. <br />(Inventou também, mas não antes disso, o livre arbítrio, e ainda mais, sem juízo de valor nenhum, se ajuntou nessa hora a inventar também o bom e mau.)</p><p>Vendo-se enlameada de desiquílibrio e afundando, emboscada pelos olhos frios da morte e sustentada pelos ombros sádicos do trabalho, a vida decidiu, pedaço a pedaço, que a única forma de alcançar um pouco de ar era devorando-os. </p><p>Como imortais, a lama subia, a brisa era dura e gelava, e o movimento feria.</p><p>Então a vida se deparou com o que não esparava: sua razão era a de devorar o universo sem parar.</p><p>Mas como tudo não lhe cabia na boca, afinal era de tudo que a vida fazia parte, tudo era dos deusas deuses e ela uma mortal, a vida, sem entender nada, foi dando ritmos às mastigadas, intensidade às mordidas, misturas, e harmonias às bocadas.</p><p>Criou a música, as palavras, a pintura e a matemática. Criou a biologia, a justiça, o esporte, a filosofia, aprendeu a cozinhar, a costurar, a correr, a andar de bicicleta e tudo mais o que há, pois afinal de contas só hão por a que a vida há de havê-los.</p><p>E assim a vida segue, e a pergunta que fica é a pergunta da boniteza, como um sussurro irônico dos tais deuses: será, onde, como, e por quê?</p><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOBfs_d3yKNeO7NZd4UeLN04X42E5cmK6kQkjrFiSnUC6d4dIl4_VPqeAi4KeDZCNih1xU4Wz5x8YmCLsaN10jnYvDIwX0KI4XftEqTenp1KExq6fCu8P1OLVuyyKPRmqoAuIqEIcIID0Ad2hpRMJebutTJHbnBKPkFv1EoInDtgj7Vh9SNDhXDy6yZWU/s1200/christwaves_002903.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="675" data-original-width="1200" height="187" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOBfs_d3yKNeO7NZd4UeLN04X42E5cmK6kQkjrFiSnUC6d4dIl4_VPqeAi4KeDZCNih1xU4Wz5x8YmCLsaN10jnYvDIwX0KI4XftEqTenp1KExq6fCu8P1OLVuyyKPRmqoAuIqEIcIID0Ad2hpRMJebutTJHbnBKPkFv1EoInDtgj7Vh9SNDhXDy6yZWU/w334-h187/christwaves_002903.png" width="334" /></a></div><br /><p><br /></p>Danielhttp://www.blogger.com/profile/03662784483533679232noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-12450633359339523742023-08-17T18:15:00.004-07:002023-08-17T18:15:30.229-07:00O Espelho de Madiã<p>Na primeira versão da fábula, havia dois Espelhos: um juiz chamado Madiã desejava saber o que sua esposa sentia quando se deitavam juntos, e recorreu a um espírito do fogo para ajudá-lo. O gênio deu a Madiã dois espelhos quase idênticos, engolido cada um pela moldura de um leão dourado, um caolho da vista esquerda, outro da direita. Era preciso que Madiã e sua mulher olhassem simultaneamente seu respectivo espelho, desejando sinceramente ser o outro, para funcionar o feitiço. A esposa de Madiã — para qual os fabulistas nunca deram um nome, como às vezes acontece — olhou para o espelho dentro da boca do leão canhoto de olho: quando deu por si, o rosto que a mirava era o de seu marido, e o leão da moldura de seu espelho só tinha aberto o olho direito. Mas ainda que perceber seu próprio corpo nu à luz da lua lhe encantasse de alguma forma, ela não suportou estar dentro do corpo de Madiã, que parecia, visto por detrás do nariz, subitamente muito feio. Madiã — ou sua esposa, ocupando seu corpo — teria então escondido os espelhos no fundo de uma gruta, para não serem mais encontrados.<br /><br />Ainda assim, algumas centenas de anos depois surgiu a história de um paxá com um par maravilhoso de espelhos de propriedades similares. O paxá era tido como o homem mais culto de seu tempo, por conta, dizia-se, do seguinte artifício: sempre se informava de antemão sobre qual era o grande interesse de qualquer dignatário estrangeiro que viesse visitá-lo — se as ciências naturais, a história, a criação de cavalos, a poesia etc. — e usava seu par de espelhos encantados para trocar de corpo com algum de seus secretários ou amantes que gostasse de se ocupar daquele tema em particular. Ao mesmo tempo em que escapava, deste modo, das inconveniências do trato maçante com estrangeiros e diplomatas para fumar e jogar gamão, sua fama de polímata e conversador versátil se espalhava pelo mundo. A boa vida do sábio paxá foi interrompida, porém, quando um de seus generais mais ambiciosos se recusou a desfazer a última troca, aproveitando-se da iminência de um conflito nas fronteiras para convencer os secretários mais importantes a manter o truque em sigilo. O paxá, no corpo do general, foi condenado ao exílio, e a ter seu olho direito vazado. Os espelhos foram entregues a um dervixe que fazia a Haje, para que fossem destruídos ou purificados, conforme ele melhor entendesse. Por precaução, furaram-lhe o olho esquerdo.<br /><br />Quaisquer que tenham sido as preces purificantes do dervixe, os espelhos desaparecem aí, e reaparecem em um convento um par de séculos adiante. Uma das irmãs enclausuradas, filha mais moça de uma família abastada de cristãos novos, se apiedou do esforço que suportava o jardineiro do convento, um velhinho curvado e barbudo, que mancava por conta de um ferimento de guerra. Ela apanhou de um baú trancado no quarto da superiora o par de espelhos mágicos — que diziam ter vindo do túmulo de um santo em Jerusalém — e convenceu o velhinho, pelas grades da clausura, a trocar de corpo com ela nos dias de maior calor. Com o tempo, outras irmãzinhas se juntaram à troca secreta, e o jardineiro, que antes não conseguia dormir de noite por conta dos reumatismos, aproveitava as horas ajoelhado em oração para descansar o espírito naqueles corpos jovens e sem dores. <br /><br />As irmãs por sua vez aproveitavam o corpo do velho para se esgueirar para além do claustro; e toda a cidade se espantava com o velho jardineiro que saía por aí oferecendo pão fresco do convento para mendigos, passeando descalço pelo riacho, fazendo coroas de flores para dar de presente aos doentes e sozinhos. Mas não é do feitio do diabo permitir que um instrumento seu seja usado para o que é bonito: o coisarruim se encarnou então na forma de um inquisidor que visitou o convento por ordem do bispo, e lá constatou sinais claros de feitiçaria. Pisoteou com seu pé cascudo o espelho do leão destro de olho até reduzi-lo a areia, e fez uma a uma as irmãzinhas olharem no espelho que sobrou, o leão com o olho esquerdo:<br /><br />Agora, porém, o efeito era outro. Quem quer que olhasse o Espelho de Madiã sobrevivente era lançado para fora de si, e tinha o espírito trocado por uma pessoa que, desesperadamente, já não desejava mais estar em si mesma. As almas das enclausuradas foram espalhadas para todos os lados do mundo, trancadas para dentro dos corpos de loucos, suicidas, perdidos e infelizes. As almas destes, por sua vez, vieram parar dentro do claustro, que se tornou agora mais sombrio que antes, e cujo jardim não sobreviveu ao próximo inverno. Feliz com o trabalho bem feito, o diabo jogou no rio a areia do espelho destro, mandou o espelho canhoto para ser usado nas missões do Novo Mundo, e tirou sua roupa de inquisidor, que já estava ficando esgarçada.<br /><br />Depois de muito esforço, encontrei o rastro do Espelho de Madiã que sobrava: não me lembro quantas pessoas subornei ou chantageei, quantas trocas fiz, quanto dinheiro gastei… Foram anos árduos para que eu o tivesse em minhas mãos: cuidadosamente embrulhado, a moldura, tão linda, acobreada, aquele olho verde e leonino me encarando, o vidro completamente coberto com papel pardo… Até que percebi um dia um brilho diferente. Não sei o que pode ter rasgado o papel daquela forma, um rasgo tão fininho, mas suficiente para que eu visse meus próprios olhos; e então já não eram mais meus olhos olhando para seu reflexo no espelho, eram estes olhos que não conheço, olhando para seu reflexo nesta faca. Eu não sei de quem são estes olhos, eu não sei o que é esta faca, e eu não sei por que você está aí onde você está. Só sei que a pessoa que segurava esta faca desejava desesperadamente não estar aqui, e é o que eu também desejo. <br /> </p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-31934143905148346092023-06-07T08:50:00.000-07:002023-06-07T08:50:05.009-07:00Fundo que nem raiz de jataí<p style="text-align: left;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgikj7ZHIPZnjkoWkafO7H3lGZWiKP3N33VkubnZoqhYvWYzpENbTfiEC-45xxtA2cX41QIx5S795VrM8CMneIj9oEEFdDHRRgNBmxR-kjUYXmkx26-c35Zi65q7IFlPXjETS7ed23wzdCepdmTDSqhj4zn-AHVD3dwgkyoBcXT7xluQ1HkL4-74-PBQA/s1280/photo4900109101627975682.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="768" data-original-width="1280" height="192" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgikj7ZHIPZnjkoWkafO7H3lGZWiKP3N33VkubnZoqhYvWYzpENbTfiEC-45xxtA2cX41QIx5S795VrM8CMneIj9oEEFdDHRRgNBmxR-kjUYXmkx26-c35Zi65q7IFlPXjETS7ed23wzdCepdmTDSqhj4zn-AHVD3dwgkyoBcXT7xluQ1HkL4-74-PBQA/s320/photo4900109101627975682.jpg" width="320" /></a></div><br />Gosto de pensar: que minha avó sorri quando dou comida pros bichos<br />(especialmente onde não se deve)<br />ou quando cozinho devagarzinho, andando de um lado pro outro<br />da cozinha<br />ou quando vou guardando potinhos e garrafinhas que encontro por aí<br />pra poder usar de novo depois, nunca se sabe<br />(especialmente quando tenho uma pilha de potes<br />muito maior que as necessidades de uma cozinha razoável)<br />ou quando tomo chá de boldo ou de dendilhão pra algum malestar<br /><p></p><p style="text-align: left;">Gosto de pensar: que minha avó sorri quando rezo a Ave Maria<br />às seis da tarde, voltando pra casa, quando o sino bate<br />na igreja do lado do metrô, bem na hora que eu saio da estação<br />e que ela sorri, talvez até um riso com barulho e tudo, ainda que não gargalhado<br />quando eu arrebento ainda outro terço sem querer<br />que continuo guardando terços nos lugares errados, tentando colocá-los<br />onde terços não cabem</p><p style="text-align: left;">Ganhei muitos presentes da minha avó, visíveis e invisiveis<br />O mais visível é o pé de Jataí imenso que cresce ao lado da casa da roça<br />que ela trouxe ainda broto pra plantar ali<br />Grande e bonito como o mundo, sua copa encarapitada no alto do morro<br />Se deixa ver de longe<br />Já amassei muitas das folhas secas que caíram da Jataí<br />Carreguei pedaços dos galhos que caem da árvore: me ajudam a sonhar<br />Já parti com martelos e o pé, e hoje mesmo com as mãos<br />a casca das jataís que caem da árvore<br />sujei meus dentes de verde, adocei minha língua<br />Um doce que dura muito tempo</p><p style="text-align: left;">Todo ano vejo brotar os filhotes da Jataí:<br />Como feijões imensos e cor-de-rosa procurando o sol<br />E sonho com carregar adiante o presente da minha avó:<br />encher os morros todos de jataís enormes de frutos doces<br />Mas o tempo do mundo já não é o tempo dos brotos de jataí:<br />Uma foice, uma roçadeira, uma mula esfomeada,<br />A Jataí permanece sozinha.</p><p style="text-align: left;">Uma vez calharam de crescer um par de brotos até uma altura<br />que estava além da fome e das roçadeiras<br />Mas cresciam por debaixo dos fios da rede elétrica<br />Se não fosse por sua pequenês, seria sua grandeza que as condenaria<br />Pensava sempre que era preciso trocar logo os brotos de lugar, antes que ficassem grandes demais, e difíceis de tirar</p><p style="text-align: left;">Mas o tempo do mundo já não é o tempo dos brotos de jataí:<br />Sempre havia trabalho que fazer em outro lugar<br />Eu mal vou pra Guará, quem dirá pra roça</p><p style="text-align: left;">Quando fomos tirar os brotos do lugar, já estavam mais altos do que eu:<br />e raiz de jataí cresce fundo, mais fundo do que a árvore é alta<br />Naquele dia, cavando a terra com meus irmãos, e meu tio, e meu pai,<br />foi que percebi que aquela jataí imensa que minha avó plantou <br />do lado da casa da roça<br />talvez chegue com sua raiz até o coração do morro<br />talvez o morro já nem saiba o que é seu formato sem aquela raiz pra guiá-lo</p><p style="text-align: left;">A terra escapou das raízes dos brotos<br />Não cavamos certo, não cavamos fundo o suficiente<br />Os brotos saíram da terra como dentes em um buticão<br />Depois da extração, não tínhamos mais energia para cavar uma cova daquele tamanho<br />que abrigasse aquilo tudo de raiz<br />Então improvisei a cova que pude apoiando aquelas arvorezinhas tortas <br />num barranco de terra vermelha<br />onde brincávamos de fazer caminhos pra descerem bolinhas de gude</p><p style="text-align: left;">Por ainda algumas semanas, quando eu conseguia voltar pra roça,<br />eu insistia em regar aqueles filhotes de árvore moribundos<br />Suas folhas verdes amarelando e amarronzando<br />O marrom dos galhos cada vez mais cinza</p><p style="text-align: left;">A Jataí permanece sozinha</p><p style="text-align: left;">Sei: que minha avó teria sabido o tempo dos brotos<br />e que teria dito o dia certo e o momento propício,<br />o tamanho apropriado da cova<br />para escavar a terra, para carregar os filhotes para um lugar novo<br />onde ficassem tão grandes quanto quisessem</p><p style="text-align: left;">Mas gosto de pensar, quando estou triste pelos jataizinhos que não salvei<br />e por outras coisas,<br />gosto de pensar: na sensação das mãos frias e pequenas da minha avó nos meus cabelos<br />no seu cheiro fresco, e em como era fácil abraçar<br />seu corpo pequenino<br />Tão menor que a Jataí, mas autor de tantos trabalhos penosos</p><p style="text-align: left;">A verdade é essa: passei da minha vida muito pouco tempo no mato pra ser do mato;<br />muito pouco tempo na pedra pra ser da pedra;<br />minhas mãos só servem pra matar filhotes de árvore e<br />pra apertar os botões errados no elevador do prédio</p><p style="text-align: left;">O filhote de árvore de que ainda tenho esperança de cuidar é o que <br />plantou em mim a Jataí de minha avó<br />por ele é que ainda tenho vontade de<br /></p><p style="text-align: center;"></p><p style="text-align: left;">Amar como uma Jataí: até os recônditos da terra, as raízes<br />esticando-se, afagando o húmus, desenrolando-se até os aquíferos;</p><p style="text-align: left;">Amar como uma Jataí: tão alto quanto possível na atmosfera, <br />os ramos abrindo-se para o céu, as folhas refletindo o sol;</p><p style="text-align: left;">Amar como uma Jataí: sombra num dia de sol, abrigo num dia de chuva</p><p style="text-align: left;">Amar como uma Jataí: fruto para quem tem fome, fogo para quem tem frio, flor para quem se sente só<br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-50027207890690745422023-03-10T20:04:00.002-08:002023-03-10T20:35:14.133-08:00Canções para fazer brotar um rio<p style="text-align: right;"><span style="font-size: small;"><i>para Nara, e para Lena</i></span> <br /></p><p>1.<br />Dizem que Moshê feriu as pedras a pauladas para fazer brotar a água<br />Deu certo, mas a que custo? </p><p>2.<br />Os rios precisam, para brotar, de canções mais sutis que aquela do pau contra a pedra:<br />O gelo andino se desmanchando ao sol, o olho d'água agitando a areia no meio da mata, a chuva de verão encharcando a serra;</p><p>3.<br />Cada rio que brota é um milagre,<br />Não pela sede que sacie, mesmo que sacie muita sede<br />Não pela vida que carregue, mesmo que carregue muita vida<br />O milagre é que o rio brote, e o rio que brota é o milagre;</p><p>4.<br />O difícil dos rios é que só se pode amá-los em movimento;</p><p>5.<br />Se eu fosse profeta, inventaria uma religião toda fluvial:<br />As noviças percorreriam um rio da nascente até o mar<br />As iniciadas de volta do mar até a nascente;<br />Só atingiriam o sacerdócio as que encontrassem<br />na volta uma nascente diferente daquela de que partiram;<br />Só conheceriam a fé verdadeiramente<br />as que, sem perceber, mudassem de rio no meio do caminho;</p><p>6.<br />A verdade é que não posso ensinar quem quer que seja sobre canções para fazer brotar um rio:<br />Moshé escreveu cinco livros para ensinar como fazer um mundo, um país, um povo,<br />e mesmo assim fez o que fez quando se tratou de brotar a água;</p><p>7.<br />Mas tenho fé nos aquíferos que moram em nossos subterrâneos<br />Há uma hidromancia toda nossa, se nos permitirmos <br />adivinhar a água pela água;</p><p>8.<br />Todo rio é presente de um rio que veio antes<br />Rios que correram por sob a terra, por sobre o ar, rios caindo das nuvens, ou das estrelas;</p><p>9.<br />Todo rio que brota é um presente,<br />Não pela sede que sacie, mesmo que sacie muita sede<br />Não pela vida que carregue, mesmo que carregue muita vida<br />O presente é que o rio brote, e o rio que brota é o presente;<br /><br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-88724742551098928542023-02-02T17:16:00.000-08:002023-02-02T17:16:30.280-08:00Liturgia (2)<div style="text-align: left;"></div><div style="text-align: right;"><blockquote><i>Então Jesus olhou para todos os que estavam ao seu redor, e disse ao homem: "Estenda a mão." O homem assim o fez, e sua mão ficou boa.</i> <br /></blockquote></div><p style="text-align: left;"> </p><p>Meu Deus não celebra a páscoa na igreja<br /> (Só comparece quando é convidado<br />e mesmo assim nunca com certeza)<br />prefere o chão, cem vezes, ao tablado<br /></p><p>Meu Deus celebra a páscoa onde esteja,<br />com vinho, ou guaraná, e pão assado<br />O culto do meu Deus se faz à mesa<br />só se louva a meu Deus acompanhado<br /><br />Meu Deus não celebra a páscoa na igreja<br />(Se tenta, botam-no logo de lado)<br />É uma religião que escapa ao sentido<br />a de um Deus que fornece Seu exemplo: <br /></p><p>Nunca realizar milagres no templo<br />(Exceto nos casos em que é proibido)<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-78428047090424228812023-01-23T16:52:00.002-08:002023-01-23T16:52:33.705-08:00Manual de Dermatonomia — ou, qual a diferença entre uma verruga e um olho de peixe?<p> <span style="font-size: xx-small;">para a Raíssa</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: xx-small;"><span style="font-size: small;"><span> </span>Quando uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) lança uma maldição, se forma sobre a pele da pessoa amaldiçoada uma verruga. O tamanho e aspecto da verruga podem variar conforme o rancor da bruxa (ou bruxe, ou bruxo) contra a pessoa amaldiçoada, e a força da maldição: quanto mais poderosa a maldição, maior será a verruga; quanto mais rancorosa, mais a verruga apresentará uma tonalidade que se destaque na pele da pessoa atingida. <br /><span> </span>A localização da verruga pode variar conforme o tipo de desagravo cometido contra a bruxa (ou bruxe, ou bruxo) em questão: esbarrar com uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) na calçada, por exemplo, provavelmente vai te render uma verruga em um braço ou ombro; a uma pessoa que julgue muito barulhenta, a bruxa (ou bruxe, ou bruxo) fará crescer uma verruga em alguma parte mole, normalmente a barriga, a bochecha, e, em casos especiais, uma das nádegas; pessoas que façam pouco caso da culinária de uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) podem ver em si brotar uma verruga na língua, ou na sola do pé; atrapalhar uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) que tenta enxergar o céu noturno rende uma verruga na ponta do dedo inconveniente; por fim, entre as de mais interesse, é no nariz que crescem as verrugas de pessoas amaldiçoadas por terem feito pouco dos poderes mágicos de uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo). Não é à toa, aliás, que tanta gente haja, entre a bruxaria, com verrugas imensas espalhadas pelo nariz: o segundo passatempo favorito das bruxas (e bruxes, e bruxos) é fazer pouco caso das habilidades mágicas de outras bruxas (e bruxes, e bruxos); seu primeiro passatempo favorito, por sua vez, é lançar maldições a outras bruxas (e bruxes, e bruxos) que fizeram pouco caso de seus encantamentos. <br /><span> </span>A quantidade de verrugas é invariável: sempre exclusivamente uma por maldição. Isso se dá porque a ofensa é a matéria prima da verruga, e as leis naturais são muito claras nesse sentido: independente do poder, do rancor, ou do direito de vingança que uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) tenha sobre uma pessoa que a ofendeu de algum modo, cada ofendimento só é suficiente para produzir uma unidade de verruga — é responsabilidade da bruxa (ou bruxe, ou bruxo) caprichar na maldição, caso se importe tanto assim com o desrespeito sofrido. Algumas bruxas (e bruxes, e bruxos), naturalmente, tentam burlar a natureza, quando sentem que o rancor não foi ainda exaurido: aprendem os horários da pessoa a quem querem amaldiçoar repetidamente para esbarrarem com ela de novo e de novo ao atravessar a rua para o mercado; se acostumam a ouvir tudo no volume mínimo, a andar o dia todo com abafadores nos ouvidos, apenas para retirá-los quando sabem que a pessoa a ser amaldiçoada vem visitar; presenteiam a amaldiçoável com seus bolos e doces menos favoritos, toda semana, um favor entre vizinhos, meu bem; misturam o nome de estrelas e constelações para ver seu alvo colocar um dedo entre seus olhos e o céu noturno; erram feitiços, poções, e fórmulas de encantamento de propósito, só para ouvir o bufar autoconfiante da bruxa (ou bruxe, ou bruxo) que se acha superior.<br /><span> </span>Mas logo descobrem que não é a mesma coisa. As verrugas subsequentes, forjadas de desagravos forçados, não têm o mesmo ímpeto, o mesmo charme, não têm arte. É a verruga pela verruga. A verruga traidora, que chega mesmo a realçar o desenho dos ombros ou valorizar o olhar afiado da pessoa atingida, agora mais bonita com suas três verrugas do que quando não tinha nenhuma.<br /><br /><span> </span>Por sua vez, os olhos de peixe aparecem quando uma sereia (ou sereie, ou sereio) se apaixona por alguém. No caso, o tamanho do olho de peixe independe do tamanho do apaixonamento da sereia (ou sereie, ou sereio), ou de seu poder, que as leis da natureza que regulam a paixão são outras, e não funcionam muito bem com isso de forças patológicas e medidas taumatúrgicas. É, na verdade, muito mais cronológico. O olho de peixe é o resultado da permanência do olhar apaixonado de uma sereia (ou sereie, ou sereio) por sobre aquele pedaço do corpo da pessoa amada: quanto mais tempo olha, tanto mais cresce.<br /><span> </span>Cada sereia (ou sereie, ou sereio) tem seu tipo. As que se apaixonam mais facilmente por pessoas parecidas consigo mesmas, normalmente ficam olhando para as mãos de suas amadas, e comparando com as próprias mãos, e daí de surgirem olhos de peixe em tantas mãos. As que se apaixonam mais facilmente por pessoas diferentes de si, se enamoram normalmente das pernas e dos pés de suas amadas, e daí que haja tanta gente com olhos de peixe nos joelhos ou nos pés. É difícil as sereias (e sereies, e sereios) porém ficarem olhando muito tempo para nossos rostos — acham as expressões humanas muito secas e terrestres para seu gosto, normalmente nos amam apesar de nossas caras, e não por causa delas.<br /><span> </span>O amor é coisa muito mais produtiva do que o despeito, pelo que uma única paixão pode levar a muitos olhos de peixe. Na verdade, a origem de um olho de peixe é coisa muito complicada de se identificar: há casos de múltiplos olhos de peixe no corpo de uma pessoa, causados por uma sereia (ou sereie, ou sereio, não se sabe ao certo) indeciso a respeito de qual parte achava mais charmosa na pessoa amada. Há o caso de uma pessoa que tinha, dizia-se, o cotovelo tão ao gosto de uma sereia, e ume sereie, e um sereio, que os três juntos revezavam-se admirando-o, a ponto de um olho de peixe do tamanho de uma bola de gude ter crescido ali. Mas é sempre incerto, e a natureza desproporcional entre o amor e o tempo complica as coisas: como saber quantas sereias (e sereies, e sereios) são responsáveis por aquele olho de peixe? Como garantir que a sereia (ou sereie, ou sereio) que por mais tempo admira seu tornozelo é realmente quem está mais enamorada? Às vezes alguma das outras pretendentes é mais tímida, ou às vezes há uma sereia astigmata, ou distraída, que precisa olhar longamente para aquele tornozelo para ter certeza de seus detalhes apaixonantes.<br /><span> </span>Mas estas perguntas e especulações são todas, no fim das contas, vazias. Tanto faz se é uma ou mais de uma sereia (ou sereie, ou sereio) quem te ama, como tanto faz saber qual delas te ama com mais intensidade. Todo o povo do mar aprendeu há muito tempo que seres humanos só se amam de vista — e o mais conveniente ainda, ensinam aos cardumes de filhotes de sereia, recém saídos das ovas, e o mais conveniente é que seja uma paixão de mão única. Mirem os humanos, ensinam, suas mãos tão parecidas com as nossas e suas pernas tão diferentes, mas não deixem os humanos mirarem de volta. O máximo que se ganha do amor de um ser humano é uma cantiga triste, ou a sensação de desaparecer na espuma.<br /></span></span></p><p><span style="font-size: xx-small;"><br /></span></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-40544546212740680762022-10-01T09:56:00.000-07:002022-10-01T09:56:44.363-07:00Oração para São Jerônimo<p style="text-align: right;"><span>(para o Leandro D.) </span> <br /></p><p>Meu vô Willy xingava palavras feias:<br />Scheiße!, ele dizia. Verdammt!<br />e talvez outras, importadas da Renânia, que eu não conheço<br /><br />e a vó Emília dizia que não, amuada<br />que não falasse palavrão assim<br />é pecado</p><p>Pecado? Pecado como?<br />Gott kann kein Deutsch</p><p>Talvez seja isso mesmo, vovô<br />mas eu acho que o buraco é mais embaixo<br /><br />Na minha experiência, Deus não se presta a nos atender muito em português tampouco<br />(só se for do jeito d'Ele, lá pelas Suas linhas tortas)<br />Alguma coisa se perde na tradução, <br />no pecado como na graça</p><p>Acho que Deus só fala mesmo é latim<br />Por isso inventou São Jerônimo, para que<br />ele pudesse vir e dar um relato mais preciso<br />do que Seu Filho andou fazendo nos anos que andou<br />de férias entre nós</p><p>Intercedei por nós, São Jerônimo<br />traduza nossas preces, para que cheguem aos ouvidos de Deus<br />num linguajar que Ele entenda</p><p>Intercedei por nós, paizinho Jerônimo<br />verta as respostas de Deus com carinho<br />para que mesmo Seus nãos mais absolutos<br />soem doces aos nossos ouvidos cansados<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-15349871865116175842022-09-04T17:32:00.002-07:002022-09-04T17:32:50.637-07:00Frodo em Imladris<p>Viver pode muito bem ser que seja<br />a sensação de acordar de um sonho triste<br />para outro<br />Sentir no ombro a cicatriz da ferida de ontem<br />Sentir nas mãos o comichão da ferida de amanhã</p><p>Viver pode muito bem ser que seja possível apenas<br />na escolha de seguir marchando<br />de um sonho ruim para outro<br />da ferida de agora até a próxima</p><p>Não devemos nos espantar diante da ignorância<br />nem nos arrepender de não termos memorizado todos os mapas:</p><p>Os que conhecem o caminho<br />não seriam capazes de trilhá-lo<br /></p><p><br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-43910864166230090492022-07-03T23:33:00.000-07:002022-07-03T23:33:08.177-07:00<p>não é preciso ir longe para encontrar o monstro:</p><p>ele está logo aí, mais que teu vizinho</p><p>um inquilino íntimo do teu peito</p><p>quem sabe é ele mesmo que lê</p><p>ele mesmo é quem escreve</p><p> </p><p>tu reconheces o monstro nas passagens mais sutis</p><p>no ponto entre uma faixa e outra da curva</p><p>na esquina da esquina</p><p> </p><p>espelhos são desnecessários, nesse sentido</p><p> </p><p>querer encontrar o monstro com um espelho é um erro que cometem os inexperientes<br /></p><p>sim, o monstro está neles</p><p>além da íris, a sugestão do monstro fica visível em quase todos</p><p>os reflexos de quase todas as pupilas</p><p>mesmo a das crianças</p><p> </p><p>mas, mas!, que deselegante querer assim procurar o monstro</p><p>mais bonito é encontrá-lo no gesto suave</p><p>no virar do rosto</p><p>na mão que segura a faca com</p><p>um pouco mais de força do que é preciso<br /></p><p>no passo que hesita no</p><p>vão entre o trem e a plataforma </p><p>na esquina, enfim, da esquina</p><p><br /></p><p>o monstro, encontrado no fundo dos olhos, no olho d'água de um espelho</p><p>é muito mais assustador</p><p>muito mais difícil de amar</p><p><br /></p><p>mas como não sentir carinho pelo monstro que percebemos</p><p>nos dedos que escavam nossas têmporas</p><p>na boca que toma com muita pressa a bebida quente</p><p>ou gelada demais</p><p><br /></p><p>é preciso amar o monstro</p><p>(da forma oblíqua</p><p>na esquina, veja bem, da esquina) <br /></p><p>para que ele não nos consuma<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-52118624052935877782022-06-17T21:13:00.004-07:002022-06-17T21:13:59.374-07:00Haikai casual (3)<p>segura entre teus <br />dentes: uma flor. ao teu<br />redor: o amor<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-49377489103437790812022-04-21T16:35:00.000-07:002022-04-21T16:35:11.892-07:00sonetralhadora #6<p>mas veja que cristão este país:<br />a todo criminoso, um indulto<br />pode ser salafrário, ou inculto<br />pode enfrentar o mais cruel juiz</p><p>no fim, há de se salvar por um triz<br /> qualquer perpetrador de seu insulto<br />muito além da Justiça mora um vulto<br />pra salvar, na caneta, o infeliz*</p><p>*exceto, é claro, se o infeliz for pobre**<br />ou se, sei lá, fizer muita pergunta,<br />e não topar resposta atravessada.</p><p>**daí, mesmo ele não fazendo nada,<br />a Lei com todo seu vigor lhe cobra.<br />o crime? depois a Justiça inventa... <br /></p><p> <br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-20477375618092390982021-11-22T20:05:00.001-08:002023-05-24T11:15:01.206-07:00Éowyn nos campos de Pelennor<p>um tom cristalino cavalga o vento e alcança </p><p>nossos ouvidos e corações:</p><p>eu creio, meu irmãozinho, nessa promessa de um mundo novo:</p><p>um que surgirá não apesar dos pequeninos</p><p>nem por cima de seus cadáveres;</p><p>mas sim de seu trabalho e de sua canção.</p><p><br /></p><p>a escuridão que ainda há não passa do pânico do velho mundo dos homens<br /></p><p>que estrebucha ferido, </p><p>podre, </p><p>moribundo</p><p><br /></p><p>mas olhe para suas mãos, irmãozinho, e olhe para meu rosto</p><p>já não somos homens</p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-42319313219098717602021-11-02T14:47:00.000-07:002021-11-02T14:47:13.499-07:00heptálogo para o dia de finados<p>1.</p><p>fazer, sim, sempre que possível</p><p>mas só fazer amorosamente</p><p>em cada guardanapo dobrado</p><p>em cada centímetro escavado</p><p>em cada palavra, em cada lavra</p><p>fazer sensível o amor que transborda</p><p><br /></p><p>2.</p><p>nada vale a pena ser feito se não for amando</p><p>nada existe que não valha a pena ser amado</p><p>nada é, no fim, errado o suficiente para o amor</p><p><br /></p><p>3.</p><p>se eu não tivesse o amor, não é que eu não seria nada</p><p>não</p><p>mais importante que isso: não valeria a pena</p><p>as pestes, a guerra, a fome, a morte, os lobos e os homens,<br /></p><p>isso tudo seria demais para meu coração</p><p>que é pequeno como um passarinho, e se machuca tão fácil</p><p><br /></p><p>4.</p><p>o amor não me protege de nenhuma dessas coisas</p><p>que pode um passarinho contra a guerra? </p><p>contra a morte? </p><p>contra os homens?</p><p>mas se eu amo, o que eu sangro é outra coisa</p><p> </p><p>e as lacerações e feridas que me impõem </p><p>as pestes, a fome, os lobos,</p><p>não me esvaziam mais de mim, pois o que transborda de mim</p><p>não é meu sangue, não é meu medo,</p><p>não é nada que seja meu: é o amor</p><p> </p><p>escorre de mim como mel, </p><p>limpa minhas feridas - mesmo que elas continuem doendo</p><p>o amor não faz nada parar de doer</p><p>é vão amar com esse objetivo</p><p>como é vão viver imaginando que não há nada que doa</p><p><br /></p><p>5.</p><p>viver apesar da dor, viver porque dói</p><p>só pode amar genuinamente quem dói</p><p>por suas próprias feridas e pelas dos outros</p><p><br /></p><p>6.</p><p>deixar-se machucar: não para o prazer dos sádicos</p><p>mas em solidariedade aos que estão machucados</p><p>dividir com eles o peso das feridas</p><p>trocar uma cicatriz por outra, pois</p><p>em dois corações uma cicatriz dói menos que em um só</p><p><br /></p><p>7.</p><p>é um século cinzento e eu entendo</p><p>que as pessoas graves queiram vir torcer o nariz para um poema sobre o amor</p><p>(ainda mais um amorzinho assim tão pequeno,</p><p>e que escorre tão devagarinho) <br /></p><p>você é o que? carolas? brega? escritora de autoajuda?</p><p>eu não posso fazer nada, terei que responder</p><p>às vezes disfarço, mas às vezes não</p><p>só posso escrever o que escorre de mim</p><p>e hoje é isso<br /></p><p><br /></p><p><br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-82534642947326663292021-10-01T15:25:00.001-07:002021-10-01T15:25:16.569-07:00Os habitantes do país da noite<p>Os habitantes do país da noite<br />de olhos amarelos e cansados<br />se arrastam por caminhos que não sei<br />nem a origem, menos o destino</p><p>E choram lágrimas por causas que<br />tampouco eu consigo compreender<br />são fontes generosas e constantes<br />seus olhos amarelos e cansados</p><p>Não abro mão de sua companhia<br />jamais! os habitantes do país<br />da noite são ainda minha mais<br />certeira fonte de misericórdia</p><p>Na missa já não peço ao Cordeiro<br />e muito menos a outras liturgias<br />que me concedam sua piedade<br /></p><p>Não, é muito mais certa a que escorre<br />dos habitantes do país da noite<br />de olhos amarelos e cansados</p><p>Só pedem em troca de seu amor<br />que abra de mim também a minha noite<br />que seja generoso em minha fonte<br />que tenha também eu piedade deles<br />os habitantes do país da noite<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-55196227114670948082021-09-30T18:42:00.001-07:002021-09-30T18:42:58.099-07:00lexicologia<p> Não inventamos ainda uma linguagem suficiente para o tanto de amor de que precisamos. Recorremos, então, à metonímia: recolhemos aqui uma violência, ali um silogismo, para lá uma convenção, e essas coisas vão virando nosso vocabulário. </p><p>Há quem recuse essa linguagem torta para o amor.</p><p>Há quem queira amar sempre apenas literalmente. </p><p>Eu talvez esteja entre estes, mas não tenho certeza. Já tive, hoje não tenho mais. Não inventei ainda uma matemática suficiente para o número das minhas incertezas.<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-87479549544339440802021-09-24T16:55:00.000-07:002021-09-24T16:55:12.413-07:00It is not night when I do see your face<p>eu posso pouco, amada, num mundo tão seco<br />sou muito anfíbio pruma época tão árida<br />sou tão quebrável numa cidade tão sólida<br />não me conformo ao mundo, o que há de mim eu perco<br /><br />nesse sítio de mim, nesse estado de cerco<br />que me impõe a sequidão de nossa época<br />me secaria até a forma mais esquálida<br />se não tivesse em ti um tesouro em segredo:<br /><br />que me encoraja, de forma que já não cedo<br />que me desperta, manhã de verão tão cálida<br />sacia minha sede, mesmo a que é mais ávida<br />tu és meu pouso, amada, o fim do meu degredo<br /><br />Por tua luz enxergo, por teus trilhos piso<br />Nunca é a seca quando eu vejo teu sorriso</p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-28956976885888259192021-09-22T09:45:00.000-07:002021-09-22T09:45:09.616-07:00<p>não precisa se consternar, pequenina<br />diante da imensidão desse abismo escuro</p><p>Isso que te dói como se fosse um minúsculo corpo humano é, na verdade</p><p>o elo de uma corrente inquebrável<br />a palavra encantada de um feitiço<br />o fóton de um rastro luminoso</p><p>que se estende infinitamente de desde o início dos tempos<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-22865045520145738452021-09-20T17:09:00.001-07:002021-09-20T17:09:31.014-07:00Faria na Fortaleza de If<p>eu nunca soube ler o coração das pedras;<br />você sabe muito bem, conhece<br />muitos dos subsolos em que já me perdi<br />e há muitos ainda a respeito dos quais nunca lhe falei;<br /><br />nunca soube<br /></p><p>sempre pretendi, isso sim, <br />saber ler o coração dos seres humanos<br />como se fossem livros abertos<br />(também os livros sempre pretendi <br />saber ler muito bem,<br />mas isso não vem ao caso)</p><p>por isso me ferem estes dias em que<br />os corações se embaralham, minhas vistas se embaçam<br />e é difícil saber onde termina o humano<br />e onde começa a pedra<br /> <br /></p><p><br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-19280239394934280782021-09-18T21:55:00.002-07:002021-09-18T21:56:10.531-07:00por ocasião do centenário de Paulo Freire<p>propagam: este é um mundo de vileza<br />mas isso é o natural da vida<br />o desamor é a regra sem saída<br />a humanidade está num ciclo presa.</p><p>respondes: não! não é da natureza<br />humana (ou divina!) que se forma<br /> a aberração, travestida de norma,<br />que nega ao mundo sua boniteza;<br /></p><p>há que se ler o mundo até o tutano,<br />sem ser bancariamente conformado;<br />e ler o mundo junto a toda gente!<br /></p><p>pra constatar que o que há de mais humano<br />é perceber no mundo o inacabado<br />e ainda assim amar profundamente</p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-70311644985416667102021-09-16T16:13:00.001-07:002021-09-16T16:13:14.717-07:00<p>o polido é guardar cada uma das paixões em uma pequena caixa, uma já usada, feita de tábuas velhas, de preferência um tanto suja de areia e lama; depois, pincelar a caixa com gordura, ou óleo, ou vaselina, ou o lubrificante que se tiver à mão; abrir um caminho através do umbigo até logo abaixo ou logo acima do estômago, onde ficar menos cômodo, e colocar a caixa lá dentro. </p><p>suportar então, em silêncio, os arranhões e as fisgadas, a aspereza, a lubrificância se esvaindo e as consequentes úlceras.</p><p>silenciosamente, educadamente, graciosamente.</p><p>vem um dia um mergulhador incauto; nos mata; nos abre a barriga; de dentro de nós retira a pérola.<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-70880630228524445892021-09-12T13:46:00.000-07:002021-09-12T13:46:42.346-07:00Um embrião<p>Você pode querer esculpir na minha testa</p><p>Palavras sagradas</p><p>ou nomes profanos</p><p><br /></p><p>Você pode fazer escorrer a tinta e o sangue</p><p>Até que meus olhos não possam ver mais nada,</p><p>minhas narinas não consigam mais inspirar o sopro da vida,</p><p>e de minha boca só saiam gurgulhos ininteligíveis</p><p><br /></p><p>Ainda assim, continuarei em marcha</p><p>O nome santo da Verdade está gravado em mim</p><p>em camadas mais profundas.<br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-52921299378346994682021-09-10T17:19:00.000-07:002021-09-10T17:19:27.400-07:00Liturgia<p>Não posso prometer aos que me peregrinam</p><p>estradas secas, caminhos planos</p><p>Mas brotam às margens das minhas trilhas</p><p>muitas fontes cristalinas</p><p>(todas elas sagradas)</p><p><br /></p><p>Não há templo suficiente para</p><p>a religião que escorre de mim</p><p>A única liturgia possível é a da água</p><p>que entra e sai da terra</p><p>que escava a terra</p><p>que dela escapa</p><p>que sublima e chove</p><p> </p><p>Sou incapaz de gestar pelo tempo certo</p><p>os rios que há em meus subterrâneos</p><p>(mesmo os que gerei com mais cuidado)</p><p>Sob qualquer chuvisco</p><p>transbordo <br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-82009735849131782352021-08-08T19:41:00.003-07:002021-08-08T19:41:43.668-07:003. Aidaque e as Ilhas do Sono<p class="MsoNormal"> <span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">3.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Por
sobre o domo erguia-se, dessa forma, pouco a pouco, uma rede de faróis que
irradiava da Cidade de Vidro, nas praias do fim do mundo. Com o passar do
tempo, as filhas do Jaguar, que se tornaram depois as Pequenas Deusas da Morte,
desenvolveram sua navegação e sua arquitetura, de forma que hoje, ao olharmos
para cima no céu noturno, ele está todo salpicado de seus faróis. Naqueles
tempos, porém, do início do mundo, as estrelas iam se acendendo pouco a pouco. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Uancámina
tinha o que precisava: com a desculpa de testar o brilho e o alcance dos novos
faróis que suas irmãs erguiam, levava sua frota de barcos de vidro a pontos
cada vez mais distantes da Cidade de sua mãe, o Jaguar. Conforme se aproximava
da Ilha brilhante, porém, se tornava mais poderosa a luz que irradiava dela, e
as estrelas só ficavam visíveis durante o que chamaram de noite, que era quando
as ondas do Mar de Nada escondiam o brilho da Ilha atrás de si. Uancámina teve
que inventar assim de se orientar pelo brilho e movimento da Ilha durante o
dia, e pelo brilho e posição dos faróis de suas irmãs apenas durante a noite.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Logo
mais e mais das filhas do Jaguar estavam empolgadas pela empreitada. A fera
divina viu, assim, sua Cidade de Vidro cada vez mais esvaziada; as filhas que
não queriam passar o tempo todo no Mar de Nada, manobrando seus barcos de
vidro, ficavam por sobre o domo, andando de um lado para o outro construindo
estrelas para suas irmãs se guiarem lá de baixo. O Jaguar era uma mãe paciente,
e não queria impor nova interdição a suas filhas, mas Incálima, a Senhora da
Cidade de Vidro, não iria tolerar o sofrimento de sua mãe em silêncio – mesmo
que ela também ansiasse por saltar num barco de vidro e navegar até o centro
brilhante do Mar de Nada. Assim, às irmãs que retornavam à Cidade de Vidro para
abastecer-se de mantimentos para continuar navegando pela noite ou construindo estrelas,
Incálima impunha diversas tarefas e trabalhos que as prendiam à Cidade de
Vidro. A umas ordenava que desmanchassem uma torre de vidro, a outras que
reerguessem a mesma torre, no mesmo lugar, agora dois andares mais alta; e
pouco a pouco a Cidade de Vidro voltou a se encher de atividade, e da voz das
Pequenas Deusas, todas agora muito exaustas e cheias de trabalhos circulares
para que pudessem se preocupar em sair por aí cintilando o céu ou costurando o
mar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Por
esta época, Uancámina comandava sua expedição mais ousada até então: da última
vez que estivera na Cidade de Vidro pudera conversar com algumas das suas irmãs
que trabalhavam nos faróis por sobre o domo. Com a ajuda das imensas lentes de
vidro que inventaram, elas eram capazes de enxergar as coisas que havia abaixo,
flutuando no Mar de Nada. E uma das coisas que observaram era essa: que ilhas
gêmeas giravam lentamente pelo Mar, flutuando cada vez mais para perto da
Cidade de Vidro. Se fosse equipada com mantimentos suficientes, e se soubesse
se orientar pelos ângulos certos em relação aos faróis que brilhavam à direita
da Cidade de Vidro, Uancámina seria então capaz de alcançar essas imensas
ilhas, e pela primeira vez pisar em algo que não fosse o vidro de um barco, o
vazio de um domo impossível, ou a areia prateada das praias do fim do mundo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Enquanto
Incálima ordenava o desmanche e a reconstrução de torres e pavimentos,
Uancámina se aproximava, embalada por uma brisa solar suave, das praias da
maior das duas ilhas gêmeas. O ancoradouro que encontrou, na verdade, foi uma
pequena enseada no canal de Nada que separava as duas ilhas. Era uma ilha
estranha, de cor crepuscular, e tudo parecia feito de pedra. O primeiro barco que
se encostou à praia de cascalhos ficou cheio de rachaduras, e Uancámina
sinalizou para que as outras naves, que vinham atrás, permanecessem afastadas. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Quando
pisou o chão daquela praia, era tudo mais duro. O ar da ilha era mais pesado, e
Uancámina se dava conta de cada pedra em que seus pés feitos de sombra tocavam.
Não se feria, mas as sensações pareciam fortes demais para seus sentidos
acostumados ao Nada de que era feito o Mar, as estrelas e a Cidade de Vidro.
Suas irmãs diziam: venha, irmã. Volte ao barco, e vamos voltar ao Mar, que é
mais agradável que essa ilha de pedras duras e cores opacas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Não,
ela respondeu. Se vamos navegar até a Ilha Brilhante, no centro do Mar de Nada,
será preciso construir outras cidades de vidro e outros portos para nos refazermos
ao longo do caminho. Não podemos saber se serão agradáveis como as praias de
que viemos, ou se serão duras como estas, ou ainda piores. Preciso aprender a
existir entre as pedras. Fiquem no barco, sim, e afastem-no da praia para que
não se rache mais nestes seixos. Mas me deixem aqui pela noite. Vejam o
horizonte: a Ilha Brilhante desaparece agora por detrás das ondas do Mar de
Nada. Quando ela surgir novamente pela manhã, venham me buscar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Suas
irmãs queriam protestar, mas sabiam que era inútil tentar convencer Uancámina
quando já estava decidida de alguma coisa. Assim, afastaram-se à procura de um
ponto da enseada onde a maré permitiria que seus barcos de vidro ficassem
estacionados. Ao longe, podiam apenas ouvir um grito vindo de sua irmã. Uancámina
se havia deitado sobre os rochedos, para acostumar o corpo à sensação da
dureza. Depois do primeiro grito, controlara a voz, para não espantar as irmãs,
mas a sensação ainda era opressiva. As pedras, como a realidade de que eram
feita, faziam se sentir avassaladoramente pelos músculos, pele e tendões de
Nada de Uancámina. Mesmo seus longos cabelos não eram barreira suficiente para
aliviar a sensação nas costas e na nuca. Mas ela estava determinada a resistir:
olhava fixamente para o céu, na esperança de ver rebrilharem os faróis de suas
irmãs. Estaria alguma delas olhando agora, através de suas lentes imensas, para
baixo, para as ilhas gêmeas? Seriam capazes de perceber a angústia no rosto de
Uancámina? As gotas de suor que brotavam em sua testa e suas mãos?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Mas
Uancámina não sentia sobre si os olhos de suas irmãs, nem vindos das estrelas
nem dos barcos no meio da enseada. A verdade é que provavelmente muitas das
Pequenas Deusas velavam por sua irmã naquele momento, tentando decifrar o que
acontecia na praia escurecida pela noite; no entanto é difícil não se sentir
sozinha quando as costas aprendem a sentir pela primeira vez o áspero de um
chão de pedras, ou a pressa de um vento gelado.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Pouco
a pouco, porém, Uancálima já não sentia a aspereza. Ela tentava não se mexer –
talvez não fosse mesmo capaz, tão exaustos estavam seus sentidos – mas reparava
a mudança na posição das estrelas sobre sua cabeça, conforme as ilhas giravam
vagarosamente pelo Mar de Nada. Da forma como estavam dispostas, sabia que
agora a Cidade de Vidro estava posicionada na direção para que seus pés
apontavam, e essa sabedoria lhe trazia algum consolo. Sim. Não se deu conta de
quando isso aconteceu, mas percebeu, quando a luz da Ilha Brilhante no meio do
Mar de Nada atravessou suas pálpebras na manhã seguinte, que havia mesmo
adormecido.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Apoiou
o braço no chão para se levantar, e constatou que a sensação das pedras
continuava terrível. Não é que suas costas se tivessem acostumado à sensação de
dureza durante noite, mas uma cama de um musgo escuro e macio havia crescido por
sob seu corpo sem que percebesse. Frustrada, Uancámina se pôs de pé, pisando
ainda sobre o musgo – muito mais tolerável que os pedregulhos. Quando olhou em
volta para se orientar, e para procurar o brilho dos barcos de vidro na
enseada, percebeu a presença de ainda outra cama de musgo na praia, e sobre ela
uma pessoa adormecida. Aproximou-se, se esforçando para não se deixar abater
pelo duro das pedras nos pés, e pelo vento que ficava mais forte descendo das
colinas pedregosas além da praia. Percebeu, com espanto, que não se tratava de
uma de suas irmãs – era a primeira vez que encontrava em suas viagens não a
vaga forma de uma criatura misteriosa no meio das ondas, mas um ser de
constituição tão próxima da sua. Era impensável para ela, até agora, que
houvesse no meio do Mar de Nada criaturas tão parecidas com suas irmãs, que não
fossem elas mesmas também filhas do Jaguar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Desperte,
ela pediu.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">A
criatura abriu os olhos. Mas Uancálima não sabia se ela a havia compreendido.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Você
insiste tanto assim que eu não durma?, a criatura respondeu, coçando sua barba,
tirando seu cabelo desgrenhado do rosto. Na noite de ontem, seu grito terrível
me despertou de um sono agradável, que já durava tantos dias! E depois ainda
não parava de tremer, e respirar com o barulho de uma ventania. Se eu não
tivesse te dado uma cama, estaria até agora fazendo uma algazarra no meio das
pedras! Se eu te ajudei a dormir seu sono, por que você não me deixa dormir o
meu?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Como
você aprendeu a falar? Você já conheceu minha mãe, o Jaguar? Ele me ensinou a
falar, mas não sabia que havia ensinado mais ninguém – mesmo que suas palavras
soem um pouco estranhas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Eu não
sei nada sobre nenhum Jaguar! Ou talvez... talvez eu me lembre... Mas não é uma
lembrança minha, e sim de alguma coisa que eu era antes, ou de que eu era só um
pedaço. Só sei que despertei sabendo falar essa língua, e que uso ela quando
meu irmão vem me incomodar em meu sono. E agora tenho que usá-la com outros visitantes
também, pelo visto! Como se meu irmão já não me bastasse. Você também veio me
pedir para navegar o mar escuro contigo? Se Qüenita, que é meu irmão, não me
tirou meu amor pelo sono e pelos sonhos, não é você quem vai tirar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Mas
Aidaque, o deus sonolento, estava errado; pois desde que viu pela primeira vez
Uancámina deitada por sobre os seixos, ou antes, desde que ouviu seu grito
cortando a noite, estava condenado a não dormir nunca mais pacificamente como
antes. Era o tempo em que os deuses iam despertando em suas ilhas; alguns por
influência das Pequenas Deusas da Morte e de suas estrelas, alguns por causa do
brilho da Ilha no centro do Mar de Nada, alguns só não conseguiam achar mais
uma posição confortável para se deitar – uma maldição que transmitiram depois a
muitos mortais.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Não,
respondeu Uancámina. Não estou aqui para te despertar, nem para te levar.
Preciso apenas de um porto para meus navios descansarem durante a travessia do
Mar de Nada, que você chama de mar escuro. Mas suas praias são muito duras,
todo o seu mundo é duro e real, até o ar. Não sei se vou sequer conseguir
construir meu porto aqui, mas se eu conseguir será na ilha pequena, então, para
não incomodar seu sono.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Não!,
redarguiu Aidaque. Você não precisa de um porto nem de navios! E minha ilha
posso fazê-la mais agradável para você, se quiser.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Com um
gesto lento de seu braço, Aidaque fez brotar um tapete do musgo escuro por
sobre as pedras, para proteger os pés de Uancálima de pisar em tanta dureza.
Ela sorriu em agradecimento.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Você é
gentil, estranho da ilha. Mas na Cidade de minha mãe, o Jaguar, é tudo feito do
cristal mais delicado e irreal, e a areia que cobre o chão dos caminhos é
insólita como os pensamentos. Todas as construções são feitas cuidadosamente,
para abrigar a população imensa de filhas que minha mãe, o Jaguar, gerou. Se
fosse conforto e companhia aquilo que busco, eu não teria precisado lançar meus
barcos de vidro ao Mar imenso de Nada que nos cerca.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Uancámina
virou as costas para Aidaque, então, e se voltou para o Mar, de onde chegava à
praia um barco como ela nunca tinha visto. Era uma canoa, menor que os barcos
de vidro que ela e suas irmãs faziam, mas escura, quase tanto quanto o mar,
feita de madeira. Duas das Pequenas Deusas que acompanhavam Uancámina em sua
viagem, Órina e Audólima, vinham sentadas sobre ela, visivelmente
desconfortáveis. Na popa, manejando um grande remo, vinha o outro deus das
ilhas gêmeas, Qüenita.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Ele
era mais magro que seu irmão, mais franzino, mas ao mesmo tempo mais energético.
Ao invés de Aidaque, Qüenita se apressara ao despertar dos deuses, tendo se
enamorado do brilho da Ilha do centro do Mar de Nada desde que ele surgira pela
primeira vez no horizonte. Como o irmão, aprendera a cultivar sua ilha; mas ao
invés de criar tapetes e camas confortáveis para si mesmo, inventou árvores de
que pudesse construir uma canoa, para atravessar o mar. Em suas tentativas
infrutíferas de enfrentar a corrente com sua pequena embarcação, mais de uma
vez encalhara na ilha de seu irmão gêmeo, cuja companhia sempre solicitava em
vão. Aidaque ainda sentia o sono dos deuses, e não ia desperdiçá-lo em um
projeto que parecia inútil, por bonito que fosse o brilho distante da Ilha solar.
</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Naquela
manhã, porém, preparando-se para seus exercícios diários de navegação ao redor
das ilhas, Qüenita percebera incrédulo o faiscar dos barcos de vidro no canal
entre a sua ilha e a do irmão. Aproximara-se cauteloso daquelas formas
elegantes, tão maiores que sua pequena canoa, mas também tão mais frágeis –
como percebera pelas rachaduras em um dos barcos. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">As
Pequenas Deusas da Morte, que naquele momento perguntavam-se como fariam para
ir buscar sua irmã Uancámina sem causar mais estragos em seu navio, ficaram
igualmente espantadas ao ver o deus aproximando-se por sobre o mar. Deixaram-no
subir a bordo de suas embarcações, porém, passado o espanto. Ele ansiava por
saber de sua viagem, e queria saber quão longe tinham conseguido viajar pelo
Mar, e como funcionavam suas velas, e como faziam para se orientar em seus
caminhos. Audólima, porém, preocupada que estava com sua irmã sozinha na praia,
concordou em lhe contar tudo o que pedisse, desde que antes ele as levasse para
encontrar Uancámina.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Assim
ele as transportou até a praia. Ao chegar lá, como prometido, as Pequenas
Deusas contaram a ele e seu irmão sobre suas viagens, sobre o Mar, e sobre os
faróis que haviam construído por sobre o Domo, as estrelas, que as guiavam de
volta para a Cidade de Vidro. Qüenita suplicou que elas as levassem com ele, para
que pudesse ele também conhecer o Mar aberto e a Cidade de Vidro. Aidaque
suplicou a Uancámina que ficasse, pois ele prepararia para ela uma cidade como
a de sua mãe, o Jaguar, onde ela poderia ter seu porto e descansar de suas
viagens. Mas Uancámina só soube dizer, novamente, que ele era um estranho
gentil.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Um
estranho não! Aidaque é meu nome. Você dormiu na minha ilha, na cama que fiz
brotar para você, então já não somos estranhos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">E é
por isso que as Pequenas Deusas da Morte chamam as ilhas gêmeas de Airunê
Ualuta, as Ilhas do Sono. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Aidaque
permaneceu em sua ilha, mas Qüenita, ao transportar de volta as irmãs para seus
barcos de vidro, conseguiu convencer Uancámina a levá-lo com elas para a Cidade
de Vidro, onde ela esperava juntar mais de suas irmãs e material suficiente
para construir seu porto nas Ilhas do Sono. A seu irmão Aidaque, Qüenita
prometeu que estaria de volta quando a terceira estrela mais brilhante – ainda
haviam poucas nessa época, era fácil fazer esse tipo de contagem – estivesse
aparecendo no meio da noite por sobre o cume em que Aidaque tinha sua caverna
favorita. Aidaque disse que não se apressasse, que ia ser bom poder ficar
sozinho para dormir seus sonos divinos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Ele
permaneceu em sua ilha, a maior das Ilhas do Sono, mas seu sono já não vinha
como antes. Por mais que fizesse brotar musgos delicados e frescos, e erguesse
cavernas para se esconder do brilho solar da Ilha no meio do Mar de Nada, não
conseguia mais que dormir algumas horas durante a noite, quando já estava
escuro. Sentia saudades de seu irmão, e gostaria tanto que ele atracasse
afobado sua canoa nos cascalhos, como fizera tantas vezes antes. E sentia
saudades de Uancámina, e ansiava novamente por sua companhia, tão breve, mas
tão delicada. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Precisava
erguer para ela uma cidade, para que ela pudesse ficar mais tempo com ele
quando voltasse. Mas Aidaque só sabia construir leitos e cavernas. Não sabia
nada sobre o que fazia uma cidade, além de ser cheia de pessoas e prédios, conforme
relatara Uancámina. Farei primeiro as pessoas, resolveu Aidaque, e elas depois
hão de me ajudar a construir os prédios da forma certa. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Assim,
o deus esculpiu das pedras de sua Ilha os primeiros mortais – ainda que a morte
não houvesse ainda sido inventada. Ele não era um escultor muito habilidoso nem
muito criativo, mas evocava em sua mente a imagem de Uancámina, Qüenita, e
mesmo de Audólima e Órina, para inventar as formas de suas criaturas. Assim que
uma ficava com os olhos fundos de seu irmão, mas as orelhas de Órina; ou com a
estatura de Uancámina, mas o porte largo e forte de Audólima. Uma a uma
esculpia, modelava e polia a pedra, e quando teve um número que considerou
suficiente de criaturas à sua disposição, esperou o raiar da Ilha Brilhante para
despertá-las, para que elas também sentissem vontade de acordar com seu brilho
solar pela manhã. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Antes
que pudesse fazê-las construir a cidade que queria para Uancámina, percebeu que
teria que alimentá-las, e protegê-las do frio, e ensiná-las a falar. A elas não
bastava o musgo, e ele teve que inventar plantas maiores, como as da ilha de
seu irmão, e animais pequenos e grandes para polinizá-las, ou para servir de
alimento a seus novos companheiros. Não foram muitas as coisas que Aidaque
inventou para habitar sua Ilha, pois ela não era grande como outras que havia
espalhadas pelo imenso Mar de Nada. Mas foi o suficiente para que as criaturas
que havia esculpido pudessem comer e se alimentar, e breve construir uma cidade
para Uancámina. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Agora,
porém, o prazer de Aidaque não residia mais na cidade que viria, e na companhia
futura de Uancámina. Ele se alegrava em compartilhar sua existência com os
mortais, ensinar e aprender palavras novas com eles, e mal percebeu quando o
prazo para o retorno de Uancámina e Qüenita se aproximou, chegou e passou. A
terceira estrela mais brilhante já piscava por sobre as suaves colinas da ilha
de seu irmão quando ele finalmente começou a se preocupar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; mso-ansi-language: PT-BR;">Mas
Qüenita era agora prisioneiro de Incálima na Cidade de Vidro, e Uancámina e
suas irmãs estavam impedidas de lançar seus navios de vidro ao Mar de Nada
novamente.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-82201323524167632862021-07-27T18:19:00.001-07:002021-07-27T18:19:41.987-07:002.: Uancámina e o Mar<p> <!--[if gte mso 9]><xml>
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</p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Da Cidade de Vidro nas praias prateadas do Mar de
Nada, o Jaguar e suas filhas, as Pequenas Deusas da Morte, podiam ver as Ilhas
todas. Eles não sabiam, ainda, que as Ilhas eram feitas da poeira que havia se
desmanchado do corpo da Estrela. Mas a mais central de todas as Ilhas, ao redor
da qual todas as demais flutuavam, brilhava um brilho intenso. Era pálido,
dizia o Jaguar, se comparado à beleza do brilho da Estrela, e a maioria de suas
filhas acreditavam. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Pálido ou não, era um brilho. Tinham a esperança de
que a Estrela houvesse sobrevivido, e lá estivesse combalida, se recuperando
naquela Ilha distante no meio do Mar de Nada. Mas o Jaguar não conseguia entrar
nas águas de Nada do Mar para nadar até ela. A força repelente, que o havia
arrastado e ferido violentamente para até as areias da praia do Mar de Nada,
ainda operava de alguma forma, formando um domo imenso por sobre o Mar e as
Ilhas, impedindo o Jaguar de atravessar as fronteiras prateadas do fim do
mundo. Suas filhas, porque havia nelas algo da Estrela, podiam escolher, porém:
quando queriam, eram capazes de escalar pelo domo como se fosse um objeto
sólido intransponível; se tinham vontade, no entanto, sabiam perfeitamente
atravessá-lo, e entrar nas águas do Mar de Nada. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Foi por isso que o Jaguar encarregou suas filhas de
irem até o centro do Mar de nada, para a Ilha luminosa, onde havia de estar sua
amiga. Elas já sabiam suficientemente bem sua língua, ainda que tivessem
inventado palavras e tempos novos, com os quais ele não concordava muito; mas
teria de bastar. Elas eram tão densas quanto o Mar, feitas que eram também de
nada, então tiveram que inventar os barcos para poder atravessá-lo. Construíram
grandes canoas de vidro, feito da areia da praia, e remos do mesmo material.
Mas a travessia do Mar de Nada era traiçoeira, e as filhas do Jaguar estavam
ainda inventando a navegação. As primeiras expedições extraviaram-se, incapazes
de lidar com as imensas ondas e o vento solar. Perderam-se em pontos remotos da
praia do fim do mundo, só retornando muito tempo depois à Cidade de Vidro, ou
desapareceram sem vestígio algum.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Uma sombra se apoderou do coração do Jaguar, que amava
a Estrela e queria de todo modo revê-la, mas que amava também suas filhas e não
queria que mais nenhuma desaparecesse pelo Mar. Ordenou que cancelassem suas
expedições e aventuras, e que ficassem com ele na Cidade de Vidro, ouvindo
sobre a Estrela e esperando que ela, algum dia, viesse ela mesma até eles, de
sua Ilha brilhante no centro do Mar de Nada.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Mas também as Pequenas Deusas da Morte tinham seus
amores: amavam o Jaguar, sua mãe, e agora amavam o cintilar dos ventos solares
em seus barcos de vidro, e os desafios da navegação, e as criaturas sombrias
que viam emergir no meio das ilhotas cinzentas ou das ondas negras de Nada. Uancámina,
que os mortais aprenderam depois a chamar de Pancamira, era a capitã de uma das
expedições que se havia perdido, mas que regressara à Cidade de Vidro navegando
pelas costas da praia prateada, usando o brilho da areia como referência para suas
manobras. Quando soube da interdição do Jaguar, resolveu contrariar sua mãe:
para curá-lo do peso em seu coração, mas principalmente para poder lançar
novamente seus navios ao Mar. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Tinha para isso um plano: em primeiro lugar, precisava
ser capaz de perceber a distância que estava da Cidade de Vidro caso se
perdesse novamente. Convenceu sua mãe, o Jaguar, da importância de construir
uma imensa torre na cidade, um farol, para que a Estrela percebesse seu brilho
e pudesse chegar até elas mais facilmente, dizia. Com espelhos e fios da juba
do Jaguar, que tinha cor de relâmpago, fizeram uma lâmpada que puseram no alto
de sua torre. Uancámina convenceu sua mãe a deixá-la sair com os navios de
novo, para que pudesse medir o alcance da luz do farol, sob a condição de levar
consigo Incálima, a senhora da Cidade de Vidro e filha mais obediente do
Jaguar, para garantir que retornariam assim que sua estimativa estivesse feita.
</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Mas a precaução era desnecessária: Uancámina sabia que
a luz do farol da Cidade de Vidro não seria suficiente para chegar até a Ilha
brilhante no centro do Mar de Nada, e não seria suficiente sequer, talvez, para
chegar às ilhas que flutuavam mais próximas da praia no fim do mundo. Isto,
porém, também estava previsto em seu plano. Ao voltarem à cidade de vidro, a
própria Incálima testemunhou a favor da irmã, de que a luz do farol ainda era
insuficiente. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Não só isso, disse Uancámina, é insuficiente como
permanecerá escondida pelas próprias ondas do Mar de Nada. Assim como as ondas
escondem a Ilha brilhante de nossa vista por metade do dia, também elas nos
esconderão das vistas da Cidade de Vidro conforme nos afastamos, mesmo que
construamos uma lanterna dez vezes mais poderosa.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Me parece, minha filha – o Jaguar conhecia todas as
suas filhas profundamente, mas parecia divertido com sua descoberta – me parece
que você já sabia desta limitação desde antes, tendo se perdido com sua frota
para tão longe da Cidade de Vidro. Por que fazer suas irmãs laborar tanto tempo
então, com a construção de um farol inútil?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Não é inútil, minha mãe! Sabemos agora o quão perto temos
que trazer sua amiga, a Estrela, para que queira nos visitar. Precisamos agora
construir outros faróis, cuja luz seja mais fácil de ser capturada por seus
olhos de Estrela. Faróis que a tragam cada vez mais perto, cada vez mais, até
que possa ver a luz que brilha da Cidade de Vidro, para que venha a nosso
encontro!</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Incálima adivinhava o pensamento da mãe: mas minha
irmã, as ondas do mar continuarão ondejando não importa em que ponto das praias
construamos outros faróis!</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Não os construiremos nas praias.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Assim Uancámina ensinou a sua mãe e suas irmãs o seu
plano: usariam de seu poder de filhas do Jaguar para subir pelo domo que
separava o mundo de sua mãe como se fosse sólido. Misturariam à argamassa gotas
da saliva do Jaguar, para que ela também fosse interditada de atravessar o
domo. E construiriam no alto do domo uma rede de torres e faróis, todos
brilhantes, que pudessem conduzir o olhar da Estrela em sua ilha distante até o
ponto certo das praias do fim do mundo. Foi desta forma que Uancámina inventou
o que os mortais depois chamaram de estrelas, que serviram mesmo de morada para
muitos deles depois que a morte foi inventada.</span></p><p>
<span lang="PT-BR" style="font-family: "Georgia","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 11.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;"><span> </span><span> </span><span> </span> Mas
no fundo de seu coração, Uancámina não tentava nem inventar moradas para almas
nem convites para a Estrela. O que ela fazia era criar uma rede brilhante com a
qual pudesse orientar as manobras de seus navios, assim como o brilho da areia
prateada a havia orientado no passado.</span></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4247386193070377746.post-45294877129327299512021-06-21T19:55:00.002-07:002021-06-21T19:55:44.411-07:00Não há mapa para esta noite de estrelas<p> Veja só, meu irmão, o tamanho desta noite que se abre diante de nós: precisamos de um mapa para navegar por tanta estrela, e ainda assim nem tudo se revelará, mesmo diante deste brilho todo; nem um mapa cobre essa noite toda, nada cobre; nada pode contar a estória inteira. No entanto, é isso o que fazemos: navegamos insistentemente a noite imensa, numa casca frágil que chamamos de barco, numa folha de papel seda que chamamos de vela, seminus apesar do frio; o frio das estrelas não nos dói mais, ou dói bem pouco, mas seria melhor navegar sem ele.</p><p>Cada porto constelado que atravessamos, porém, cada cidade de cristal que nosso barco alcança justifica todos nossos percalços; é uma vida de distâncias, mas não vazia de alegrias. Eu não posso dizer com certeza se a bússola que usamos nos levará aonde é preciso, mas que alternativa temos? Não há um mapa que cubra essa noite toda, nada cobre; nossa bússola é só uma analogia pra esse mar imenso de noite, mas funciona, em alguma medida.</p><p>Aqui e ali achamos os restos dos navios dos nossos antepassados, e isso nos dá esperança: talvez haja um caminho, e talvez seja ele o que estamos percorrendo agora. Observamos mais de perto porém: aqui um um casco de trezentos anos, ali um farrapo de vela de um tecido sintético, inventado há pouco tempo, adiante uma tora petrificada, de um tempo onde ninguém da nossa família sabia esculpir direito. Estaremos seguindo em círculo? Redescobrindo um mundo que já se sabe?</p><p>Mas a boniteza da nossa humanidade é essa, nossa dádiva: não importa quantas vezes os olhos dos nossos pais e avós tenham pousado sobre as cidades de vidro e os palácios de cristal, que nossas retinas os encontrem pela primeira vez é em si um milagre. Que nossos avós já tenham engolido milhares de litros do mar negro e salpicado de estrelas não diminui nosso engasgo quando as tempestades também nos jogam para a água agitada.</p><p>Talvez eu creia nisto, meu irmão: que cada vida humana é um presente, cada barco; que seja o dever e o privilégio de todo ser humano traçar por si mesmo um mapa das estrelas que visitou no mar imenso; que seja seu dever e privilégio inventar músicas novas e aprender músicas antigas sobre o mar, inventar desenhos novos e aprender desenhos antigos dos palácios de cristal, inventar línguas novas e aprender línguas antigas para conversar sobre os mortos.</p><p>Não há um mapa que cubra essa noite toda, nada cobre; nenhuma música, nemhum desenho, nenhuma língua. Mas aí está também o milagre triste de nossa raça, a insistência em traçar mapas, músicas, desenhos e línguas; a invenção de bússolas, astrolábios e outras parábolas; a crença em praias brancas que nos aguardam, mesmo no limite da calmaria, no meio da noite mais escura, em que todas as estrelas se escondem.</p><p>Escolhemos navegar, meu irmão, e todas as noites temos que escolher de novo; e outra vez; e outra vez. As estrelas deste mar imenso nos esperam. <br /></p>Yurihttp://www.blogger.com/profile/05746149467694540671noreply@blogger.com2