terça-feira, 27 de julho de 2021

2.: Uancámina e o Mar

 

Da Cidade de Vidro nas praias prateadas do Mar de Nada, o Jaguar e suas filhas, as Pequenas Deusas da Morte, podiam ver as Ilhas todas. Eles não sabiam, ainda, que as Ilhas eram feitas da poeira que havia se desmanchado do corpo da Estrela. Mas a mais central de todas as Ilhas, ao redor da qual todas as demais flutuavam, brilhava um brilho intenso. Era pálido, dizia o Jaguar, se comparado à beleza do brilho da Estrela, e a maioria de suas filhas acreditavam.

Pálido ou não, era um brilho. Tinham a esperança de que a Estrela houvesse sobrevivido, e lá estivesse combalida, se recuperando naquela Ilha distante no meio do Mar de Nada. Mas o Jaguar não conseguia entrar nas águas de Nada do Mar para nadar até ela. A força repelente, que o havia arrastado e ferido violentamente para até as areias da praia do Mar de Nada, ainda operava de alguma forma, formando um domo imenso por sobre o Mar e as Ilhas, impedindo o Jaguar de atravessar as fronteiras prateadas do fim do mundo. Suas filhas, porque havia nelas algo da Estrela, podiam escolher, porém: quando queriam, eram capazes de escalar pelo domo como se fosse um objeto sólido intransponível; se tinham vontade, no entanto, sabiam perfeitamente atravessá-lo, e entrar nas águas do Mar de Nada.

Foi por isso que o Jaguar encarregou suas filhas de irem até o centro do Mar de nada, para a Ilha luminosa, onde havia de estar sua amiga. Elas já sabiam suficientemente bem sua língua, ainda que tivessem inventado palavras e tempos novos, com os quais ele não concordava muito; mas teria de bastar. Elas eram tão densas quanto o Mar, feitas que eram também de nada, então tiveram que inventar os barcos para poder atravessá-lo. Construíram grandes canoas de vidro, feito da areia da praia, e remos do mesmo material. Mas a travessia do Mar de Nada era traiçoeira, e as filhas do Jaguar estavam ainda inventando a navegação. As primeiras expedições extraviaram-se, incapazes de lidar com as imensas ondas e o vento solar. Perderam-se em pontos remotos da praia do fim do mundo, só retornando muito tempo depois à Cidade de Vidro, ou desapareceram sem vestígio algum.

Uma sombra se apoderou do coração do Jaguar, que amava a Estrela e queria de todo modo revê-la, mas que amava também suas filhas e não queria que mais nenhuma desaparecesse pelo Mar. Ordenou que cancelassem suas expedições e aventuras, e que ficassem com ele na Cidade de Vidro, ouvindo sobre a Estrela e esperando que ela, algum dia, viesse ela mesma até eles, de sua Ilha brilhante no centro do Mar de Nada.

Mas também as Pequenas Deusas da Morte tinham seus amores: amavam o Jaguar, sua mãe, e agora amavam o cintilar dos ventos solares em seus barcos de vidro, e os desafios da navegação, e as criaturas sombrias que viam emergir no meio das ilhotas cinzentas ou das ondas negras de Nada. Uancámina, que os mortais aprenderam depois a chamar de Pancamira, era a capitã de uma das expedições que se havia perdido, mas que regressara à Cidade de Vidro navegando pelas costas da praia prateada, usando o brilho da areia como referência para suas manobras. Quando soube da interdição do Jaguar, resolveu contrariar sua mãe: para curá-lo do peso em seu coração, mas principalmente para poder lançar novamente seus navios ao Mar.

Tinha para isso um plano: em primeiro lugar, precisava ser capaz de perceber a distância que estava da Cidade de Vidro caso se perdesse novamente. Convenceu sua mãe, o Jaguar, da importância de construir uma imensa torre na cidade, um farol, para que a Estrela percebesse seu brilho e pudesse chegar até elas mais facilmente, dizia. Com espelhos e fios da juba do Jaguar, que tinha cor de relâmpago, fizeram uma lâmpada que puseram no alto de sua torre. Uancámina convenceu sua mãe a deixá-la sair com os navios de novo, para que pudesse medir o alcance da luz do farol, sob a condição de levar consigo Incálima, a senhora da Cidade de Vidro e filha mais obediente do Jaguar, para garantir que retornariam assim que sua estimativa estivesse feita.

Mas a precaução era desnecessária: Uancámina sabia que a luz do farol da Cidade de Vidro não seria suficiente para chegar até a Ilha brilhante no centro do Mar de Nada, e não seria suficiente sequer, talvez, para chegar às ilhas que flutuavam mais próximas da praia no fim do mundo. Isto, porém, também estava previsto em seu plano. Ao voltarem à cidade de vidro, a própria Incálima testemunhou a favor da irmã, de que a luz do farol ainda era insuficiente.

Não só isso, disse Uancámina, é insuficiente como permanecerá escondida pelas próprias ondas do Mar de Nada. Assim como as ondas escondem a Ilha brilhante de nossa vista por metade do dia, também elas nos esconderão das vistas da Cidade de Vidro conforme nos afastamos, mesmo que construamos uma lanterna dez vezes mais poderosa.

Me parece, minha filha – o Jaguar conhecia todas as suas filhas profundamente, mas parecia divertido com sua descoberta – me parece que você já sabia desta limitação desde antes, tendo se perdido com sua frota para tão longe da Cidade de Vidro. Por que fazer suas irmãs laborar tanto tempo então, com a construção de um farol inútil?

Não é inútil, minha mãe! Sabemos agora o quão perto temos que trazer sua amiga, a Estrela, para que queira nos visitar. Precisamos agora construir outros faróis, cuja luz seja mais fácil de ser capturada por seus olhos de Estrela. Faróis que a tragam cada vez mais perto, cada vez mais, até que possa ver a luz que brilha da Cidade de Vidro, para que venha a nosso encontro!

Incálima adivinhava o pensamento da mãe: mas minha irmã, as ondas do mar continuarão ondejando não importa em que ponto das praias construamos outros faróis!

Não os construiremos nas praias.

Assim Uancámina ensinou a sua mãe e suas irmãs o seu plano: usariam de seu poder de filhas do Jaguar para subir pelo domo que separava o mundo de sua mãe como se fosse sólido. Misturariam à argamassa gotas da saliva do Jaguar, para que ela também fosse interditada de atravessar o domo. E construiriam no alto do domo uma rede de torres e faróis, todos brilhantes, que pudessem conduzir o olhar da Estrela em sua ilha distante até o ponto certo das praias do fim do mundo. Foi desta forma que Uancámina inventou o que os mortais depois chamaram de estrelas, que serviram mesmo de morada para muitos deles depois que a morte foi inventada.

             Mas no fundo de seu coração, Uancámina não tentava nem inventar moradas para almas nem convites para a Estrela. O que ela fazia era criar uma rede brilhante com a qual pudesse orientar as manobras de seus navios, assim como o brilho da areia prateada a havia orientado no passado.