segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Éowyn nos campos de Pelennor

um tom cristalino cavalga o vento e alcança 

nossos ouvidos e corações:

eu creio, meu irmãozinho, nessa promessa de um mundo novo:

um que surgirá não apesar dos pequeninos

nem por cima de seus cadáveres;

mas sim de seu trabalho e de sua canção.


a escuridão que ainda há não passa do pânico do velho mundo dos homens

que estrebucha ferido, 

podre, 

moribundo


mas olhe para suas mãos, irmãozinho, e olhe para meu rosto

já não somos homens

terça-feira, 2 de novembro de 2021

heptálogo para o dia de finados

1.

fazer, sim, sempre que possível

mas só fazer amorosamente

em cada guardanapo dobrado

em cada centímetro escavado

em cada palavra, em cada lavra

fazer sensível o amor que transborda


2.

nada vale a pena ser feito se não for amando

nada existe que não valha a pena ser amado

nada é, no fim, errado o suficiente para o amor


3.

se eu não tivesse o amor, não é que eu não seria nada

não

mais importante que isso: não valeria a pena

as pestes, a guerra, a fome, a morte, os lobos e os homens,

isso tudo seria demais para meu coração

que é pequeno como um passarinho, e se machuca tão fácil


4.

o amor não me protege de nenhuma dessas coisas

que pode um passarinho contra a guerra? 

contra a morte? 

contra os homens?

mas se eu amo, o que eu sangro é outra coisa

 

e as lacerações e feridas que me impõem 

as pestes, a fome, os lobos,

não me esvaziam mais de mim, pois o que transborda de mim

não é meu sangue, não é meu medo,

não é nada que seja meu: é o amor

 

escorre de mim como mel, 

limpa minhas feridas - mesmo que elas continuem doendo

o amor não faz nada parar de doer

é vão amar com esse objetivo

como é vão viver imaginando que não há nada que doa


5.

viver apesar da dor, viver porque dói

só pode amar genuinamente quem dói

por suas próprias feridas e pelas dos outros


6.

deixar-se machucar: não para o prazer dos sádicos

mas em solidariedade aos que estão machucados

dividir com eles o peso das feridas

trocar uma cicatriz por outra, pois

em dois corações uma cicatriz dói menos que em um só


7.

é um século cinzento e eu entendo

que as pessoas graves queiram vir torcer o nariz para um poema sobre o amor

(ainda mais um amorzinho assim tão pequeno,

e que escorre tão devagarinho)

você é o que? carolas? brega? escritora de autoajuda?

eu não posso fazer nada, terei que responder

às vezes disfarço, mas às vezes não

só posso escrever o que escorre de mim

e hoje é isso



sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Os habitantes do país da noite

Os habitantes do país da noite
de olhos amarelos e cansados
se arrastam por caminhos que não sei
nem a origem, menos o destino

E choram lágrimas por causas que
tampouco eu consigo compreender
são fontes generosas e constantes
seus olhos amarelos e cansados

Não abro mão de sua companhia
jamais! os habitantes do país
da noite são ainda minha mais
certeira fonte de misericórdia

Na missa já não peço ao Cordeiro
e muito menos a outras liturgias
que me concedam sua piedade

Não, é muito mais certa a que escorre
dos habitantes do país da noite
de olhos amarelos e cansados

Só pedem em troca de seu amor
que abra de mim também a minha noite
que seja generoso em minha fonte
que tenha também eu piedade deles
os habitantes do país da noite

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

lexicologia

 Não inventamos ainda uma linguagem suficiente para o tanto de amor de que precisamos. Recorremos, então, à metonímia: recolhemos aqui uma violência, ali um silogismo, para lá uma convenção, e essas coisas vão virando nosso vocabulário. 

Há quem recuse essa linguagem torta para o amor.

Há quem queira amar sempre apenas literalmente. 

Eu talvez esteja entre estes, mas não tenho certeza. Já tive, hoje não tenho mais. Não inventei ainda uma matemática suficiente para o número das minhas incertezas.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

It is not night when I do see your face

eu posso pouco, amada, num mundo tão seco
sou muito anfíbio pruma época tão árida
sou tão quebrável numa cidade tão sólida
não me conformo ao mundo, o que há de mim eu perco

nesse sítio de mim, nesse estado de cerco
que me impõe a sequidão de nossa época
me secaria até a forma mais esquálida
se não tivesse em ti um tesouro em segredo:

que me encoraja, de forma que já não cedo
que me desperta, manhã de verão tão cálida
sacia minha sede, mesmo a que é mais ávida
tu és meu pouso, amada, o fim do meu degredo

Por tua luz enxergo, por teus trilhos piso
Nunca é a seca quando eu vejo teu sorriso

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

não precisa se consternar, pequenina
diante da imensidão desse abismo escuro

Isso que te dói como se fosse um minúsculo corpo humano é, na verdade

o elo de uma corrente inquebrável
a palavra encantada de um feitiço
o fóton de um rastro luminoso

que se estende infinitamente de desde o início dos tempos

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Faria na Fortaleza de If

eu nunca soube ler o coração das pedras;
você sabe muito bem, conhece
muitos dos subsolos em que já me perdi
e há muitos ainda a respeito dos quais nunca lhe falei;

nunca soube

sempre pretendi, isso sim,
saber ler o coração dos seres humanos
como se fossem livros abertos
(também os livros sempre pretendi
saber ler muito bem,
mas isso não vem ao caso)

por isso me ferem estes dias em que
os corações se embaralham, minhas vistas se embaçam
e é difícil saber onde termina o humano
e onde começa a pedra


sábado, 18 de setembro de 2021

por ocasião do centenário de Paulo Freire

propagam: este é um mundo de vileza
mas isso é o natural da vida
o desamor é a regra sem saída
a humanidade está num ciclo presa.

respondes: não! não é da natureza
humana (ou divina!) que se forma
a aberração, travestida de norma,
que nega ao mundo sua boniteza;

há que se ler o mundo até o tutano,
sem ser bancariamente conformado;
e ler o mundo junto a toda gente!

pra constatar que o que há de mais humano
é perceber no mundo o inacabado
e ainda assim amar profundamente

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

o polido é guardar cada uma das paixões em uma pequena caixa, uma já usada, feita de tábuas velhas, de preferência um tanto suja de areia e lama; depois, pincelar a caixa com gordura, ou óleo, ou vaselina, ou o lubrificante que se tiver à mão; abrir um caminho através do umbigo até logo abaixo ou logo acima do estômago, onde ficar menos cômodo, e colocar a caixa lá dentro. 

suportar então, em silêncio, os arranhões e as fisgadas, a aspereza, a lubrificância se esvaindo e as consequentes úlceras.

silenciosamente, educadamente, graciosamente.

vem um dia um mergulhador incauto; nos mata; nos abre a barriga; de dentro de nós retira a pérola.

domingo, 12 de setembro de 2021

Um embrião

Você pode querer esculpir na minha testa

Palavras sagradas

ou nomes profanos


Você pode fazer escorrer a tinta e o sangue

Até que meus olhos não possam ver mais nada,

minhas narinas não consigam mais inspirar o sopro da vida,

e de minha boca só saiam gurgulhos ininteligíveis


Ainda assim, continuarei em marcha

O nome santo da Verdade está gravado em mim

em camadas mais profundas.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Liturgia

Não posso prometer aos que me peregrinam

estradas secas, caminhos planos

Mas brotam às margens das minhas trilhas

muitas fontes cristalinas

(todas elas sagradas)


Não há templo suficiente para

a religião que escorre de mim

A única liturgia possível é a da água

que entra e sai da terra

que escava a terra

que dela escapa

que sublima e chove

 

Sou incapaz de gestar pelo tempo certo

os rios que há em meus subterrâneos

(mesmo os que gerei com mais cuidado)

Sob qualquer chuvisco

transbordo

domingo, 8 de agosto de 2021

3. Aidaque e as Ilhas do Sono

 3.

Por sobre o domo erguia-se, dessa forma, pouco a pouco, uma rede de faróis que irradiava da Cidade de Vidro, nas praias do fim do mundo. Com o passar do tempo, as filhas do Jaguar, que se tornaram depois as Pequenas Deusas da Morte, desenvolveram sua navegação e sua arquitetura, de forma que hoje, ao olharmos para cima no céu noturno, ele está todo salpicado de seus faróis. Naqueles tempos, porém, do início do mundo, as estrelas iam se acendendo pouco a pouco.

Uancámina tinha o que precisava: com a desculpa de testar o brilho e o alcance dos novos faróis que suas irmãs erguiam, levava sua frota de barcos de vidro a pontos cada vez mais distantes da Cidade de sua mãe, o Jaguar. Conforme se aproximava da Ilha brilhante, porém, se tornava mais poderosa a luz que irradiava dela, e as estrelas só ficavam visíveis durante o que chamaram de noite, que era quando as ondas do Mar de Nada escondiam o brilho da Ilha atrás de si. Uancámina teve que inventar assim de se orientar pelo brilho e movimento da Ilha durante o dia, e pelo brilho e posição dos faróis de suas irmãs apenas durante a noite.

Logo mais e mais das filhas do Jaguar estavam empolgadas pela empreitada. A fera divina viu, assim, sua Cidade de Vidro cada vez mais esvaziada; as filhas que não queriam passar o tempo todo no Mar de Nada, manobrando seus barcos de vidro, ficavam por sobre o domo, andando de um lado para o outro construindo estrelas para suas irmãs se guiarem lá de baixo. O Jaguar era uma mãe paciente, e não queria impor nova interdição a suas filhas, mas Incálima, a Senhora da Cidade de Vidro, não iria tolerar o sofrimento de sua mãe em silêncio – mesmo que ela também ansiasse por saltar num barco de vidro e navegar até o centro brilhante do Mar de Nada. Assim, às irmãs que retornavam à Cidade de Vidro para abastecer-se de mantimentos para continuar navegando pela noite ou construindo estrelas, Incálima impunha diversas tarefas e trabalhos que as prendiam à Cidade de Vidro. A umas ordenava que desmanchassem uma torre de vidro, a outras que reerguessem a mesma torre, no mesmo lugar, agora dois andares mais alta; e pouco a pouco a Cidade de Vidro voltou a se encher de atividade, e da voz das Pequenas Deusas, todas agora muito exaustas e cheias de trabalhos circulares para que pudessem se preocupar em sair por aí cintilando o céu ou costurando o mar.

Por esta época, Uancámina comandava sua expedição mais ousada até então: da última vez que estivera na Cidade de Vidro pudera conversar com algumas das suas irmãs que trabalhavam nos faróis por sobre o domo. Com a ajuda das imensas lentes de vidro que inventaram, elas eram capazes de enxergar as coisas que havia abaixo, flutuando no Mar de Nada. E uma das coisas que observaram era essa: que ilhas gêmeas giravam lentamente pelo Mar, flutuando cada vez mais para perto da Cidade de Vidro. Se fosse equipada com mantimentos suficientes, e se soubesse se orientar pelos ângulos certos em relação aos faróis que brilhavam à direita da Cidade de Vidro, Uancámina seria então capaz de alcançar essas imensas ilhas, e pela primeira vez pisar em algo que não fosse o vidro de um barco, o vazio de um domo impossível, ou a areia prateada das praias do fim do mundo.

Enquanto Incálima ordenava o desmanche e a reconstrução de torres e pavimentos, Uancámina se aproximava, embalada por uma brisa solar suave, das praias da maior das duas ilhas gêmeas. O ancoradouro que encontrou, na verdade, foi uma pequena enseada no canal de Nada que separava as duas ilhas. Era uma ilha estranha, de cor crepuscular, e tudo parecia feito de pedra. O primeiro barco que se encostou à praia de cascalhos ficou cheio de rachaduras, e Uancámina sinalizou para que as outras naves, que vinham atrás, permanecessem afastadas.

Quando pisou o chão daquela praia, era tudo mais duro. O ar da ilha era mais pesado, e Uancámina se dava conta de cada pedra em que seus pés feitos de sombra tocavam. Não se feria, mas as sensações pareciam fortes demais para seus sentidos acostumados ao Nada de que era feito o Mar, as estrelas e a Cidade de Vidro. Suas irmãs diziam: venha, irmã. Volte ao barco, e vamos voltar ao Mar, que é mais agradável que essa ilha de pedras duras e cores opacas.

Não, ela respondeu. Se vamos navegar até a Ilha Brilhante, no centro do Mar de Nada, será preciso construir outras cidades de vidro e outros portos para nos refazermos ao longo do caminho. Não podemos saber se serão agradáveis como as praias de que viemos, ou se serão duras como estas, ou ainda piores. Preciso aprender a existir entre as pedras. Fiquem no barco, sim, e afastem-no da praia para que não se rache mais nestes seixos. Mas me deixem aqui pela noite. Vejam o horizonte: a Ilha Brilhante desaparece agora por detrás das ondas do Mar de Nada. Quando ela surgir novamente pela manhã, venham me buscar.

Suas irmãs queriam protestar, mas sabiam que era inútil tentar convencer Uancámina quando já estava decidida de alguma coisa. Assim, afastaram-se à procura de um ponto da enseada onde a maré permitiria que seus barcos de vidro ficassem estacionados. Ao longe, podiam apenas ouvir um grito vindo de sua irmã. Uancámina se havia deitado sobre os rochedos, para acostumar o corpo à sensação da dureza. Depois do primeiro grito, controlara a voz, para não espantar as irmãs, mas a sensação ainda era opressiva. As pedras, como a realidade de que eram feita, faziam se sentir avassaladoramente pelos músculos, pele e tendões de Nada de Uancámina. Mesmo seus longos cabelos não eram barreira suficiente para aliviar a sensação nas costas e na nuca. Mas ela estava determinada a resistir: olhava fixamente para o céu, na esperança de ver rebrilharem os faróis de suas irmãs. Estaria alguma delas olhando agora, através de suas lentes imensas, para baixo, para as ilhas gêmeas? Seriam capazes de perceber a angústia no rosto de Uancámina? As gotas de suor que brotavam em sua testa e suas mãos?

Mas Uancámina não sentia sobre si os olhos de suas irmãs, nem vindos das estrelas nem dos barcos no meio da enseada. A verdade é que provavelmente muitas das Pequenas Deusas velavam por sua irmã naquele momento, tentando decifrar o que acontecia na praia escurecida pela noite; no entanto é difícil não se sentir sozinha quando as costas aprendem a sentir pela primeira vez o áspero de um chão de pedras, ou a pressa de um vento gelado.

Pouco a pouco, porém, Uancálima já não sentia a aspereza. Ela tentava não se mexer – talvez não fosse mesmo capaz, tão exaustos estavam seus sentidos – mas reparava a mudança na posição das estrelas sobre sua cabeça, conforme as ilhas giravam vagarosamente pelo Mar de Nada. Da forma como estavam dispostas, sabia que agora a Cidade de Vidro estava posicionada na direção para que seus pés apontavam, e essa sabedoria lhe trazia algum consolo. Sim. Não se deu conta de quando isso aconteceu, mas percebeu, quando a luz da Ilha Brilhante no meio do Mar de Nada atravessou suas pálpebras na manhã seguinte, que havia mesmo adormecido.

Apoiou o braço no chão para se levantar, e constatou que a sensação das pedras continuava terrível. Não é que suas costas se tivessem acostumado à sensação de dureza durante noite, mas uma cama de um musgo escuro e macio havia crescido por sob seu corpo sem que percebesse. Frustrada, Uancámina se pôs de pé, pisando ainda sobre o musgo – muito mais tolerável que os pedregulhos. Quando olhou em volta para se orientar, e para procurar o brilho dos barcos de vidro na enseada, percebeu a presença de ainda outra cama de musgo na praia, e sobre ela uma pessoa adormecida. Aproximou-se, se esforçando para não se deixar abater pelo duro das pedras nos pés, e pelo vento que ficava mais forte descendo das colinas pedregosas além da praia. Percebeu, com espanto, que não se tratava de uma de suas irmãs – era a primeira vez que encontrava em suas viagens não a vaga forma de uma criatura misteriosa no meio das ondas, mas um ser de constituição tão próxima da sua. Era impensável para ela, até agora, que houvesse no meio do Mar de Nada criaturas tão parecidas com suas irmãs, que não fossem elas mesmas também filhas do Jaguar.

Desperte, ela pediu.

A criatura abriu os olhos. Mas Uancálima não sabia se ela a havia compreendido.

Você insiste tanto assim que eu não durma?, a criatura respondeu, coçando sua barba, tirando seu cabelo desgrenhado do rosto. Na noite de ontem, seu grito terrível me despertou de um sono agradável, que já durava tantos dias! E depois ainda não parava de tremer, e respirar com o barulho de uma ventania. Se eu não tivesse te dado uma cama, estaria até agora fazendo uma algazarra no meio das pedras! Se eu te ajudei a dormir seu sono, por que você não me deixa dormir o meu?

Como você aprendeu a falar? Você já conheceu minha mãe, o Jaguar? Ele me ensinou a falar, mas não sabia que havia ensinado mais ninguém – mesmo que suas palavras soem um pouco estranhas.

Eu não sei nada sobre nenhum Jaguar! Ou talvez... talvez eu me lembre... Mas não é uma lembrança minha, e sim de alguma coisa que eu era antes, ou de que eu era só um pedaço. Só sei que despertei sabendo falar essa língua, e que uso ela quando meu irmão vem me incomodar em meu sono. E agora tenho que usá-la com outros visitantes também, pelo visto! Como se meu irmão já não me bastasse. Você também veio me pedir para navegar o mar escuro contigo? Se Qüenita, que é meu irmão, não me tirou meu amor pelo sono e pelos sonhos, não é você quem vai tirar.

Mas Aidaque, o deus sonolento, estava errado; pois desde que viu pela primeira vez Uancámina deitada por sobre os seixos, ou antes, desde que ouviu seu grito cortando a noite, estava condenado a não dormir nunca mais pacificamente como antes. Era o tempo em que os deuses iam despertando em suas ilhas; alguns por influência das Pequenas Deusas da Morte e de suas estrelas, alguns por causa do brilho da Ilha no centro do Mar de Nada, alguns só não conseguiam achar mais uma posição confortável para se deitar – uma maldição que transmitiram depois a muitos mortais.

Não, respondeu Uancámina. Não estou aqui para te despertar, nem para te levar. Preciso apenas de um porto para meus navios descansarem durante a travessia do Mar de Nada, que você chama de mar escuro. Mas suas praias são muito duras, todo o seu mundo é duro e real, até o ar. Não sei se vou sequer conseguir construir meu porto aqui, mas se eu conseguir será na ilha pequena, então, para não incomodar seu sono.

Não!, redarguiu Aidaque. Você não precisa de um porto nem de navios! E minha ilha posso fazê-la mais agradável para você, se quiser.

Com um gesto lento de seu braço, Aidaque fez brotar um tapete do musgo escuro por sobre as pedras, para proteger os pés de Uancálima de pisar em tanta dureza. Ela sorriu em agradecimento.

Você é gentil, estranho da ilha. Mas na Cidade de minha mãe, o Jaguar, é tudo feito do cristal mais delicado e irreal, e a areia que cobre o chão dos caminhos é insólita como os pensamentos. Todas as construções são feitas cuidadosamente, para abrigar a população imensa de filhas que minha mãe, o Jaguar, gerou. Se fosse conforto e companhia aquilo que busco, eu não teria precisado lançar meus barcos de vidro ao Mar imenso de Nada que nos cerca.

Uancámina virou as costas para Aidaque, então, e se voltou para o Mar, de onde chegava à praia um barco como ela nunca tinha visto. Era uma canoa, menor que os barcos de vidro que ela e suas irmãs faziam, mas escura, quase tanto quanto o mar, feita de madeira. Duas das Pequenas Deusas que acompanhavam Uancámina em sua viagem, Órina e Audólima, vinham sentadas sobre ela, visivelmente desconfortáveis. Na popa, manejando um grande remo, vinha o outro deus das ilhas gêmeas, Qüenita.

Ele era mais magro que seu irmão, mais franzino, mas ao mesmo tempo mais energético. Ao invés de Aidaque, Qüenita se apressara ao despertar dos deuses, tendo se enamorado do brilho da Ilha do centro do Mar de Nada desde que ele surgira pela primeira vez no horizonte. Como o irmão, aprendera a cultivar sua ilha; mas ao invés de criar tapetes e camas confortáveis para si mesmo, inventou árvores de que pudesse construir uma canoa, para atravessar o mar. Em suas tentativas infrutíferas de enfrentar a corrente com sua pequena embarcação, mais de uma vez encalhara na ilha de seu irmão gêmeo, cuja companhia sempre solicitava em vão. Aidaque ainda sentia o sono dos deuses, e não ia desperdiçá-lo em um projeto que parecia inútil, por bonito que fosse o brilho distante da Ilha solar.

Naquela manhã, porém, preparando-se para seus exercícios diários de navegação ao redor das ilhas, Qüenita percebera incrédulo o faiscar dos barcos de vidro no canal entre a sua ilha e a do irmão. Aproximara-se cauteloso daquelas formas elegantes, tão maiores que sua pequena canoa, mas também tão mais frágeis – como percebera pelas rachaduras em um dos barcos.

As Pequenas Deusas da Morte, que naquele momento perguntavam-se como fariam para ir buscar sua irmã Uancámina sem causar mais estragos em seu navio, ficaram igualmente espantadas ao ver o deus aproximando-se por sobre o mar. Deixaram-no subir a bordo de suas embarcações, porém, passado o espanto. Ele ansiava por saber de sua viagem, e queria saber quão longe tinham conseguido viajar pelo Mar, e como funcionavam suas velas, e como faziam para se orientar em seus caminhos. Audólima, porém, preocupada que estava com sua irmã sozinha na praia, concordou em lhe contar tudo o que pedisse, desde que antes ele as levasse para encontrar Uancámina.

Assim ele as transportou até a praia. Ao chegar lá, como prometido, as Pequenas Deusas contaram a ele e seu irmão sobre suas viagens, sobre o Mar, e sobre os faróis que haviam construído por sobre o Domo, as estrelas, que as guiavam de volta para a Cidade de Vidro. Qüenita suplicou que elas as levassem com ele, para que pudesse ele também conhecer o Mar aberto e a Cidade de Vidro. Aidaque suplicou a Uancámina que ficasse, pois ele prepararia para ela uma cidade como a de sua mãe, o Jaguar, onde ela poderia ter seu porto e descansar de suas viagens. Mas Uancámina só soube dizer, novamente, que ele era um estranho gentil.

Um estranho não! Aidaque é meu nome. Você dormiu na minha ilha, na cama que fiz brotar para você, então já não somos estranhos.

E é por isso que as Pequenas Deusas da Morte chamam as ilhas gêmeas de Airunê Ualuta, as Ilhas do Sono.

Aidaque permaneceu em sua ilha, mas Qüenita, ao transportar de volta as irmãs para seus barcos de vidro, conseguiu convencer Uancámina a levá-lo com elas para a Cidade de Vidro, onde ela esperava juntar mais de suas irmãs e material suficiente para construir seu porto nas Ilhas do Sono. A seu irmão Aidaque, Qüenita prometeu que estaria de volta quando a terceira estrela mais brilhante – ainda haviam poucas nessa época, era fácil fazer esse tipo de contagem – estivesse aparecendo no meio da noite por sobre o cume em que Aidaque tinha sua caverna favorita. Aidaque disse que não se apressasse, que ia ser bom poder ficar sozinho para dormir seus sonos divinos.

Ele permaneceu em sua ilha, a maior das Ilhas do Sono, mas seu sono já não vinha como antes. Por mais que fizesse brotar musgos delicados e frescos, e erguesse cavernas para se esconder do brilho solar da Ilha no meio do Mar de Nada, não conseguia mais que dormir algumas horas durante a noite, quando já estava escuro. Sentia saudades de seu irmão, e gostaria tanto que ele atracasse afobado sua canoa nos cascalhos, como fizera tantas vezes antes. E sentia saudades de Uancámina, e ansiava novamente por sua companhia, tão breve, mas tão delicada.

Precisava erguer para ela uma cidade, para que ela pudesse ficar mais tempo com ele quando voltasse. Mas Aidaque só sabia construir leitos e cavernas. Não sabia nada sobre o que fazia uma cidade, além de ser cheia de pessoas e prédios, conforme relatara Uancámina. Farei primeiro as pessoas, resolveu Aidaque, e elas depois hão de me ajudar a construir os prédios da forma certa.

Assim, o deus esculpiu das pedras de sua Ilha os primeiros mortais – ainda que a morte não houvesse ainda sido inventada. Ele não era um escultor muito habilidoso nem muito criativo, mas evocava em sua mente a imagem de Uancámina, Qüenita, e mesmo de Audólima e Órina, para inventar as formas de suas criaturas. Assim que uma ficava com os olhos fundos de seu irmão, mas as orelhas de Órina; ou com a estatura de Uancámina, mas o porte largo e forte de Audólima. Uma a uma esculpia, modelava e polia a pedra, e quando teve um número que considerou suficiente de criaturas à sua disposição, esperou o raiar da Ilha Brilhante para despertá-las, para que elas também sentissem vontade de acordar com seu brilho solar pela manhã.

Antes que pudesse fazê-las construir a cidade que queria para Uancámina, percebeu que teria que alimentá-las, e protegê-las do frio, e ensiná-las a falar. A elas não bastava o musgo, e ele teve que inventar plantas maiores, como as da ilha de seu irmão, e animais pequenos e grandes para polinizá-las, ou para servir de alimento a seus novos companheiros. Não foram muitas as coisas que Aidaque inventou para habitar sua Ilha, pois ela não era grande como outras que havia espalhadas pelo imenso Mar de Nada. Mas foi o suficiente para que as criaturas que havia esculpido pudessem comer e se alimentar, e breve construir uma cidade para Uancámina.

Agora, porém, o prazer de Aidaque não residia mais na cidade que viria, e na companhia futura de Uancámina. Ele se alegrava em compartilhar sua existência com os mortais, ensinar e aprender palavras novas com eles, e mal percebeu quando o prazo para o retorno de Uancámina e Qüenita se aproximou, chegou e passou. A terceira estrela mais brilhante já piscava por sobre as suaves colinas da ilha de seu irmão quando ele finalmente começou a se preocupar.

Mas Qüenita era agora prisioneiro de Incálima na Cidade de Vidro, e Uancámina e suas irmãs estavam impedidas de lançar seus navios de vidro ao Mar de Nada novamente. 

terça-feira, 27 de julho de 2021

2.: Uancámina e o Mar

 

Da Cidade de Vidro nas praias prateadas do Mar de Nada, o Jaguar e suas filhas, as Pequenas Deusas da Morte, podiam ver as Ilhas todas. Eles não sabiam, ainda, que as Ilhas eram feitas da poeira que havia se desmanchado do corpo da Estrela. Mas a mais central de todas as Ilhas, ao redor da qual todas as demais flutuavam, brilhava um brilho intenso. Era pálido, dizia o Jaguar, se comparado à beleza do brilho da Estrela, e a maioria de suas filhas acreditavam.

Pálido ou não, era um brilho. Tinham a esperança de que a Estrela houvesse sobrevivido, e lá estivesse combalida, se recuperando naquela Ilha distante no meio do Mar de Nada. Mas o Jaguar não conseguia entrar nas águas de Nada do Mar para nadar até ela. A força repelente, que o havia arrastado e ferido violentamente para até as areias da praia do Mar de Nada, ainda operava de alguma forma, formando um domo imenso por sobre o Mar e as Ilhas, impedindo o Jaguar de atravessar as fronteiras prateadas do fim do mundo. Suas filhas, porque havia nelas algo da Estrela, podiam escolher, porém: quando queriam, eram capazes de escalar pelo domo como se fosse um objeto sólido intransponível; se tinham vontade, no entanto, sabiam perfeitamente atravessá-lo, e entrar nas águas do Mar de Nada.

Foi por isso que o Jaguar encarregou suas filhas de irem até o centro do Mar de nada, para a Ilha luminosa, onde havia de estar sua amiga. Elas já sabiam suficientemente bem sua língua, ainda que tivessem inventado palavras e tempos novos, com os quais ele não concordava muito; mas teria de bastar. Elas eram tão densas quanto o Mar, feitas que eram também de nada, então tiveram que inventar os barcos para poder atravessá-lo. Construíram grandes canoas de vidro, feito da areia da praia, e remos do mesmo material. Mas a travessia do Mar de Nada era traiçoeira, e as filhas do Jaguar estavam ainda inventando a navegação. As primeiras expedições extraviaram-se, incapazes de lidar com as imensas ondas e o vento solar. Perderam-se em pontos remotos da praia do fim do mundo, só retornando muito tempo depois à Cidade de Vidro, ou desapareceram sem vestígio algum.

Uma sombra se apoderou do coração do Jaguar, que amava a Estrela e queria de todo modo revê-la, mas que amava também suas filhas e não queria que mais nenhuma desaparecesse pelo Mar. Ordenou que cancelassem suas expedições e aventuras, e que ficassem com ele na Cidade de Vidro, ouvindo sobre a Estrela e esperando que ela, algum dia, viesse ela mesma até eles, de sua Ilha brilhante no centro do Mar de Nada.

Mas também as Pequenas Deusas da Morte tinham seus amores: amavam o Jaguar, sua mãe, e agora amavam o cintilar dos ventos solares em seus barcos de vidro, e os desafios da navegação, e as criaturas sombrias que viam emergir no meio das ilhotas cinzentas ou das ondas negras de Nada. Uancámina, que os mortais aprenderam depois a chamar de Pancamira, era a capitã de uma das expedições que se havia perdido, mas que regressara à Cidade de Vidro navegando pelas costas da praia prateada, usando o brilho da areia como referência para suas manobras. Quando soube da interdição do Jaguar, resolveu contrariar sua mãe: para curá-lo do peso em seu coração, mas principalmente para poder lançar novamente seus navios ao Mar.

Tinha para isso um plano: em primeiro lugar, precisava ser capaz de perceber a distância que estava da Cidade de Vidro caso se perdesse novamente. Convenceu sua mãe, o Jaguar, da importância de construir uma imensa torre na cidade, um farol, para que a Estrela percebesse seu brilho e pudesse chegar até elas mais facilmente, dizia. Com espelhos e fios da juba do Jaguar, que tinha cor de relâmpago, fizeram uma lâmpada que puseram no alto de sua torre. Uancámina convenceu sua mãe a deixá-la sair com os navios de novo, para que pudesse medir o alcance da luz do farol, sob a condição de levar consigo Incálima, a senhora da Cidade de Vidro e filha mais obediente do Jaguar, para garantir que retornariam assim que sua estimativa estivesse feita.

Mas a precaução era desnecessária: Uancámina sabia que a luz do farol da Cidade de Vidro não seria suficiente para chegar até a Ilha brilhante no centro do Mar de Nada, e não seria suficiente sequer, talvez, para chegar às ilhas que flutuavam mais próximas da praia no fim do mundo. Isto, porém, também estava previsto em seu plano. Ao voltarem à cidade de vidro, a própria Incálima testemunhou a favor da irmã, de que a luz do farol ainda era insuficiente.

Não só isso, disse Uancámina, é insuficiente como permanecerá escondida pelas próprias ondas do Mar de Nada. Assim como as ondas escondem a Ilha brilhante de nossa vista por metade do dia, também elas nos esconderão das vistas da Cidade de Vidro conforme nos afastamos, mesmo que construamos uma lanterna dez vezes mais poderosa.

Me parece, minha filha – o Jaguar conhecia todas as suas filhas profundamente, mas parecia divertido com sua descoberta – me parece que você já sabia desta limitação desde antes, tendo se perdido com sua frota para tão longe da Cidade de Vidro. Por que fazer suas irmãs laborar tanto tempo então, com a construção de um farol inútil?

Não é inútil, minha mãe! Sabemos agora o quão perto temos que trazer sua amiga, a Estrela, para que queira nos visitar. Precisamos agora construir outros faróis, cuja luz seja mais fácil de ser capturada por seus olhos de Estrela. Faróis que a tragam cada vez mais perto, cada vez mais, até que possa ver a luz que brilha da Cidade de Vidro, para que venha a nosso encontro!

Incálima adivinhava o pensamento da mãe: mas minha irmã, as ondas do mar continuarão ondejando não importa em que ponto das praias construamos outros faróis!

Não os construiremos nas praias.

Assim Uancámina ensinou a sua mãe e suas irmãs o seu plano: usariam de seu poder de filhas do Jaguar para subir pelo domo que separava o mundo de sua mãe como se fosse sólido. Misturariam à argamassa gotas da saliva do Jaguar, para que ela também fosse interditada de atravessar o domo. E construiriam no alto do domo uma rede de torres e faróis, todos brilhantes, que pudessem conduzir o olhar da Estrela em sua ilha distante até o ponto certo das praias do fim do mundo. Foi desta forma que Uancámina inventou o que os mortais depois chamaram de estrelas, que serviram mesmo de morada para muitos deles depois que a morte foi inventada.

             Mas no fundo de seu coração, Uancámina não tentava nem inventar moradas para almas nem convites para a Estrela. O que ela fazia era criar uma rede brilhante com a qual pudesse orientar as manobras de seus navios, assim como o brilho da areia prateada a havia orientado no passado.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Não há mapa para esta noite de estrelas

 Veja só, meu irmão, o tamanho desta noite que se abre diante de nós: precisamos de um mapa para navegar por tanta estrela, e ainda assim nem tudo se revelará, mesmo diante deste brilho todo; nem um mapa cobre essa noite toda, nada cobre; nada pode contar a estória inteira. No entanto, é isso o que fazemos: navegamos insistentemente a noite imensa, numa casca frágil que chamamos de barco, numa folha de papel seda que chamamos de vela, seminus apesar do frio; o frio das estrelas não nos dói mais, ou dói bem pouco, mas seria melhor navegar sem ele.

Cada porto constelado que atravessamos, porém, cada cidade de cristal que nosso barco alcança justifica todos nossos percalços; é uma vida de distâncias, mas não vazia de alegrias. Eu não posso dizer com certeza se a bússola que usamos nos levará aonde é preciso, mas que alternativa temos? Não há um mapa que cubra essa noite toda, nada cobre; nossa bússola é só uma analogia pra esse mar imenso de noite, mas funciona, em alguma medida.

Aqui e ali achamos os restos dos navios dos nossos antepassados, e isso nos dá esperança: talvez haja um caminho, e talvez seja ele o que estamos percorrendo agora. Observamos mais de perto porém: aqui um um casco de trezentos anos, ali um farrapo de vela de um tecido sintético, inventado há pouco tempo, adiante uma tora petrificada, de um tempo onde ninguém da nossa família sabia esculpir direito. Estaremos seguindo em círculo? Redescobrindo um mundo que já se sabe?

Mas a boniteza da nossa humanidade é essa, nossa dádiva: não importa quantas vezes os olhos dos nossos pais e avós tenham pousado sobre as cidades de vidro e os palácios de cristal, que nossas retinas os encontrem pela primeira vez é em si um milagre. Que nossos avós já tenham engolido milhares de litros do mar negro e salpicado de estrelas não diminui nosso engasgo quando as tempestades também nos jogam para a água agitada.

Talvez eu creia nisto, meu irmão: que cada vida humana é um presente, cada barco; que seja o dever e o privilégio de todo ser humano traçar por si mesmo um mapa das estrelas que visitou no mar imenso; que seja seu dever e privilégio inventar músicas novas e aprender músicas antigas sobre o mar, inventar desenhos novos e aprender desenhos antigos dos palácios de cristal, inventar línguas novas e aprender línguas antigas para conversar sobre os mortos.

Não há um mapa que cubra essa noite toda, nada cobre; nenhuma música, nemhum desenho, nenhuma língua. Mas aí está também o milagre triste de nossa raça, a insistência em traçar mapas, músicas, desenhos e línguas; a invenção de bússolas, astrolábios e outras parábolas; a crença em praias brancas que nos aguardam, mesmo no limite da calmaria, no meio da noite mais escura, em que todas as estrelas se escondem.

Escolhemos navegar, meu irmão, e todas as noites temos que escolher de novo; e outra vez; e outra vez. As estrelas deste mar imenso nos esperam.

domingo, 9 de maio de 2021

1.: O Jaguar e a Estrela

 

É pouco prudente – dizia algum ditado tortuoso dos bores, ou que se atribui a eles – é pouco prudente mastigar a folha de uma raiz que não se conhece. Mas eu não sou um bor, e já não há mais nenhum País dos Bores para sustentar que seu método de prudência tenha sido eficaz. Não há. Isso dado, posso me arriscar a tentar contar uma estória como essa: a de antes mesmo de haver um mundo.

E aí é que aparecem as folhas sem raiz visível: antes de haver o mundo, não havia a humanidade, nem ninguém disposto a ficar com as nádegas e as córneas doloridas, escarafunchando registros antigos e organizando cronologias discrepantes para rabiscar em rolos de pergaminho bem catalogados uma História do que quer que fosse. Nem havia rodas onde os mais velhos cantavam canções sobre os feitos passados; nem havia pedras para se empilhar umas ao lado das outras, à maneira dos povos da serra, com estórias codificadas em padrões intrincados; nem havia quem inventasse canções, polisse pedras ou fabricasse tintas e pergaminhos.

Aos súditos respeitáveis de Sua Majestade Imperial resta ir a um templo do Sol para ouvir histórias desse tempo remoto, mas elas são incompletas: são contadas conforme a tradição dos pequenos deuses que vieram do Sol e das Luas, e de outros deuses ainda menores, nossos conterrâneos. Mas esses pequenos deuses não estavam lá, antes do início do mundo. Tampouco estavam lá os grandes deuses, que lhes sopraram a vida e essas histórias do começo do mundo em suas orelhas. E mesmo os grandes deuses contavam histórias contraditórias entre si, e os ecos de sua contradição permanecem, mesmo que os deuses mesmos estejam agora desaparecidos.

Além de toda contradição, sabemos apenas que os maiores entre os grandes deuses despertaram sozinhos, cada um em uma Ilha no imenso Mar de Nada. E ao olharem ao seu redor, tinham apenas consciência de sua solidão, e um desejo por encontrar o que quer que houvesse nas Ilhas distantes que seus olhos divinos sondavam. E ao olharem para dentro de si, sabiam apenas de uma saudade de ser o que havia antes de seu despertar. No fundo de sua mente havia um brilho primeiro, a consciência de uma Estrela.

Cada um dos grandes deuses inventou para si o que significava essa Estrela, essa Deusa Velha anterior a todos eles. E a história de suas invenções contaremos depois. Mas há uma invenção mais antiga que qualquer uma dessas, uma que se inventou antes mesmo do início do mundo, quando ainda havia a Deusa Velha Primeira, a Estrela.

Para conhecê-la, é preciso bater nas portas certas das noites da Cidade dos Homens, onde templos domésticos se improvisam à luz de velas amareladas. Lá se compartilha a tradição das pequenas deusas da morte, que vêm carregar o espírito dos mortos para além do Mar de Nada, até as mansões de seus ancestrais nas estrelas distantes. Elas nasceram do Jaguar, que habita nas praias extremas do Mar de Nada, mas que é anterior ao Mar e suas praias. Ele é, das coisas que há, a única que conheceu a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. De sua mãe, o Jaguar, as pequenas deusas da morte contam essa história:

Quando o Jaguar abriu os olhos pela primeira vez, só havia ao seu redor a névoa, no qual boiava. O Jaguar sabia, de alguma forma, que ele era ele mesmo, como a névoa, feito de nada, mas havia alguma coisa em seu núcleo, misteriosa e feita de não-nada. Essa coisa regia às partículas de nada que o compunham, a elas impunham ordem e forma: A cabeça do Jaguar era comprida, como a de um tapir ou um dragão - que eram bichos que não havia ainda; seus olhos eram dois pontos vermelhos e reluzentes como rubis - que também não havia. Sua juba flutuava sem ordem, arrastando atrás de si ondas cinzentas da névoa. Seu corpo era longo e esguio, e mal se percebia onde terminava e onde começava sua longa cauda. Ele era todo cor de relâmpago - os quais também ainda não havia - desde a ponta dos chifres à ponta das garras, desde o focinho até a cauda, ainda que em tons variados de relâmpago: relâmpago claro no focinho; relâmpago elétrico na juba; relâmpago tempestade na cauda, cujas escamas o iam tornando progressivamente um tom de relâmpago submerso.

    Naquele tempo, o Jaguar não entendia exatamente que havia um limite para si mesmo no mundo: ele olhava para todos os lados e só via o cinzento escurecido que era a névoa, e o relâmpago de sua cauda e da ponta do seu focinho, mas não pensava nessas coisas como separadas. Se ele tinha vontade de esticar sua pata, ela se esticava. Se ele tinha vontade de que a névoa de nada ao seu redor se agitasse, bastava chacoalhar sua cauda. Ele era ele, e era também a névoa, e não percebia que havia qualquer distinção entre as duas coisas, pois sua vontade nunca era contrariada.

    Então o Jaguar se sentiu só, e entediado, mas como ainda não tinha inventado palavras para isso, nem para mais nada, ele só sabia de um mal-estar dentro de si, nas suas divinas entranhas de Jaguar: sua vontade pela primeira vez foi contrariada, mas não de um jeito que lhe deixasse menos só: pois eram suas entranhas que insistiam em sentir aquilo, e ele de alguma forma sabia que aquelas entranhas eram definitivamente ainda ele. A fera divina tentou então fechar os olhos e voltar a dormir, mas isso de pouco serviu: não lhe fora dado escolher quando dormia ou quando acordava; e mesmo quando dormia, era perseguido por um sonho terrível, em que ele era o Jaguar, flutuando solitário pelas névoas feitas de nada.

Ocorreu a ele que talvez não fosse parte da névoa, mas apenas uma coisa separada, boiando nessa bruma, e que talvez houvesse outras coisas boiando como ele. Primeiro, ele ficou parado por algum tempo – não que ele tivesse qualquer ideia de tempo – imaginando se desejaria encontrar alguma outra coisa no meio da neblina, e se pegou pensando sobre o que aconteceria se ele desejasse que ela erguesse a cauda ou esticasse as patas. Imaginou depois o que aconteceria se essa coisa, por sua vez, desejasse que ele erguesse sua cauda ou esticasse as próprias patas, ou balançasse seu longo focinho. Um arrepio percorreu seu corpo comprido, desde a juba até a ponta mesmo de sua terrível cauda; mas a solidão era maior do que o temor, e o Jaguar começou a nadar.

Como a língua primitiva dos deuses não tem palavras para designar a passagem do tempo, as pequenas deusas da morte nunca souberam a duração dessa busca de sua mãe por companhia; sabem apenas que ele nadava, e então dormia, e sonhava que estava nadando, e então acordava e nadava novamente. Até que, durante um de seus sonhos, o Jaguar começou a sentir uma sensação que nunca sentira antes, que era calor. Não havia encontrado antes nada quente ou frio na névoa, suas ondas cinzentas tinham a mesma temperatura em toda parte, que era a mesma temperatura do corpo da fera divina, mãe das deusas da morte.

O calor despertou o Jaguar de seu sono, e seus olhos contemplaram à distância um minúsculoo ponto de luz, de onde o calor parecia emanar. Ele experimentou desejar que a luz se movesse, ou que o calor aumentasse de intensidade, mas nada aconteceu. O que quer que fosse aquilo, estava além da sua vontade, e não era ele mesmo. Deslocando-se vagarosamente, serpenteando seu corpo pelas ondas cinzentas, o Jaguar começou sua longa jornada em direção àquela luz.

Conforme o ponto de luz aumentava de tamanho, e o calor de intensidade, o Jaguar percebeu que a névoa também se agitava. Ela fluía cada vez mais rápido, como se fugindo da fonte daquele brilho, e o Jaguar se viu obrigado a nadar com mais intensidade, e fazia o possível para não adormecer, pois cada vez que acordava havia sido levado pela correnteza para mais longe de sua meta. Por um tempo que não se pode calcular a fera nadou contra a corrente, até que as brumas se dissiparam, e ele pode chegar perto o suficiente da fonte de luz para perceber do que se tratava:

Era Ela: a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. O Jaguar nunca fora hábil para nomear o que seus olhos viam, e por isso não conseguiu nunca fixar um nome adequado para a fonte daquela luz. E tampouco sabia fazer as palavras o obedecerem para descrever as formas das coisas, por isso tudo o que as pequenas deusas da morte sabem é que de alguma forma a fonte de luz era quente e linda, e tinha olhos que atraíam tudo para sua órbita e davam ao Jaguar a sensação de que a vida despertaria de dentro de seu corpo feito de nada e explodiria em mistérios além de sua compreensão.

As línguas do mundo seriam talvez diferentes se a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, tivesse ela sobrevivido, ao invés do Jaguar. Porque ela precisou dar apenas um nome à fera divina, mãe das deusas da morte, e era um nome tão preciso; não há nada mais Jaguar que seu focinho de tapir e seus olhos de rubi, nada mais Jaguar que seu corpo de relâmpago e sua fome do tamanho de uma tempestade. O Jaguar, no entanto, só nomeava por metonímias e aproximações: e percebia o que havia de Estrela, e de Menina Leoa, e de Deusa Velha primeira em sua contraparte; e lhe deu esses múltiplos nomes, todos espelhando ou sombreando aspectos incompletos de seu existir. Mas a Deusa escolheu entregar-se à própria destruição, ao contrário do Jaguar, então as línguas do mundo são todas sombras e espelhos com que tentamos agarrar alguma coisa do que existe em meio a tantas coisas que parecem só existir enquanto colocamos palavras nelas.

Por um tempo incontável, o Jaguar e a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, encararam-se admirados da existência um do outro, e de si próprios, por consequência. O Jaguar desejou levantar e baixar sua própria pata, e a pata obedeceu; quando desejou, porém, que os dedos das mãos da Deusa se retraíssem, ou que os olhos d’Ela se fechassem, foi em vão. Mas conforme ele baixou e levantou sua própria pata ela, em resposta, baixou e levantou sua mão direita, e o Jaguar imaginou que ela fosse pelo menos como as ondas da neblina, que respondiam aos movimentos de sua juba.

Até que uma palavra saiu da boca da Deusa. ‘Jaguar’. E ele percebeu que ela era mais que as ondas do Mar, porque elas nunca faziam nada antes que ele movesse a própria juba. E aqueles olhos dela tinham com certeza uma vontade que não era dele, e o Jaguar imaginava se ele próprio também teria olhos, e se eles também arrastariam tanto para dentro de si. E por um tempo incontável, porque eles nunca se preocuparam em inventar palavras para contar o tempo, o Jaguar e a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, inventaram palavras e gestos para tentar entender o que eram, o onde terminava um e começava outro, e se havia alguma coisa além deles dois.

Concluíram que sim, nos dizem as pequenas deusas da morte, cuja mãe é o Jaguar. Segundo elas, inventaram os dois a ideia de que havia, por um lado, a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela; por outro lado, o Jaguar; e entre eles dois, e ao redor deles, a névoa, que ia se espessando conforme se afastava. Nunca conseguiram se decidir se a luz que emanava da Estrela era parte mesma da Estrela, ou outra coisa. Não sabiam dizer, tampouco, se a força de seus olhos, de arrastar tudo para si, ou a força de sua voz, que emanava para além de si, significava que seu olhar ou sua fala estendiam seus eus para mais além deles mesmos – mas intuíam que sim. Por muito tempo também, tentativamente, debateram se poderia haver na névoa alguma coisa além de névoa: alguma outra coisa que tivesse talvez olhos, ou talvez voz, ou que emanasse de si luz e calor, ou que soubesse nadar pelas ondas da bruma. Até que sentiram nascer em si uma sensação que resolveram chamar de uma vontade: era a vontade de mais do que derramar uma luz que seria arrastada para dentro dos olhos do outro, ou de falar uma voz que entraria por seu ouvido. Eles nunca haviam tocado qualquer coisa além da névoa, que era feita de um nada bem tênue, ralo. Mas sentiam no formigamento da ponta de seus dedos, ou de suas garras, que poderia haver ali outra forma de sentir. Disseram isso um ao outro, quase ao mesmo tempo.

Ficaram em silêncio, por algum tempo.

Então, o Jaguar começou a torcer seu corpo para fazer vibrar a névoa ao seu redor, ao mesmo momento em que a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, ensaiava dar uma braçada e bater suas pernas na bruma. Os dois nadaram pela névoa, vagarosamente, incertos de tudo, exceto do chamado que exerciam um sob o outro. Pararam a uma distância tal um do outro que sabiam que, se estendessem os braços, a ponta da unha da Deusa encontraria a ponta da garra do Jaguar. Mas nenhum dos dois estendeu o braço ainda.

Os deuses primordiais eram muito mais cuidadosos, você veja, que os deuses que vieram depois. Ainda não tinha sido inventada a morte, então não tinham consciência de sua imortalidade. O que faziam era não falar palavra nenhuma, e saltar seus olhos dos olhos da outra divindade para a ponta de seus próprios dedos, e para a ponta dos dedos do outro, e de volta aos olhos, e de volta aos dedos, vagarosos como só quem não inventou o tempo pode ser.

Imperceptível como uma onda de nada, o Jaguar movimentou sua garra, quase ao mesmo tempo em que a Menina Leoa, a Deusa Velha, moveu a sua. Aproximaram-se. Sentiram medo, pois à medida que se aproximavam as mãos, aumentava a vontade de se encostarem, como aumentava também a força secreta da maré de nada, repelindo-os um do outro. Mas o que podia a maré contra sua divina vontade?

A cada infinitesimal milhar de quilômetro que atravessava sua mão em direção a seu amigo, a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, sorria – apesar do vento e da maré revoltos arremessarem seus cabelos para todos os lados, e fazerem sua pele sentir pela primeira vez a pressão de algo que poderia destruí-la. Mas essa luta entre o medo e a vontade era muito mais difícil para o Jaguar. Seus olhos vermelhos agarravam-se aos da Deusa, sabiam que se hesitassem, se se voltassem para qualquer outra direção, o Jaguar nadaria apavorado para longe, e talvez nunca mais pudesse se aproximar do calor de sua companheira. Ainda assim, avançava em velocidade cada vez menor – temia que, tanto quanto sua fuga, o contato entre eles dois significaria que nunca mais se veriam. Notou, enfim, que a Menina Leoa não se aproximava mais.

Ela teve que inventar uma nova palavra para perguntar algo como:

Você tem medo?

Ele, por sua vez, pensou por um tempo que não se pode contar, para entender o que a nova palavra significava:

Sim.

O que te causa o medo? O mar? O vento?

A sensação em minhas escamas, no meu couro, que o mar e o vento causam. Quanto mais me aproximo de ti, mais me agridem. Sinto que vou deixar de ser. Eu não quero deixar de ser, para poder continuar te vendo, e para poder continuar conversando contigo.

O Jaguar percebeu que fazia a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, encontrar essa ideia em seus pensamentos pela primeira vez. Mas depois de passear com seus olhos dourados de um lado para o outro, ela respondeu:

Não acho que possamos deixar de ser. Talvez, só passemos a ser uma coisa nova. E o que quer que seja a coisa nova, vai ser como a primeira vez que te vi, nadando contra a correnteza da bruma. Eu não era a mesma coisa que sou antes de te ver – ela tropeçava na própria voz conforme inventava o pretérito, mas o Jaguar a compreendia, porque suas palavras eram sempre precisas – eu não inventava palavras, e não sabia de nada que pudesse refletir a minha luz, ou reconhecer o meu calor. E eu não tinha vontade de tocar em nada, e eu não tinha medo de deixar de ser. Então eu já não sou o que eu era, Jaguar, nem você.

Eu tenho medo de não saber que sou seu amigo, o Jaguar, o que nada pela bruma. Eu acho que já não sei mais como era antes disso.

Pode ser que você se esqueça que é o Jaguar, como você esqueceu o que era vagar sozinho na bruma. Pode ser que você se esqueça de que é meu amigo, e que eu me esqueça de que sou sua amiga. Mas isso não faz deixar de ser verdade que você nadava sozinho pela bruma, Jaguar. Olhe como sua cauda controla a neblina a seu redor, olhe como até os bigodes do seu focinho atentam-se à corrente instante a instante. O que quer que aconteça depois que minha mão encontrar a tua, tudo o que aconteceu antes ainda se fará sentir. E o que quer que sejamos, então, se lembrará de alguma forma, e poderemos estar juntos de novo, de uma forma diferente, talvez ainda mais bonita.

A Deusa Velha inventou então o gesto do convite, girando a palma de sua mão pra cima, mas sem se aproximar. O Jaguar sentia medo; mas apesar do medo, voltou a estender suas garras na direção da Estrela, e mais rápido dessa vez: tinha que nadar contra a correnteza cada vez mais forte da bruma, contra a força imensa, além da vontade deles dois, que seus divinos corpos não se tocassem nunca. Quando já estavam ao alcance um do outro, quando a Menina Leoa conseguia sentir em sua pata o frio que emanava da pata do Jaguar, tanto quanto ele sentia o calor que emanava dela, hesitaram novamente. Percebiam que a força que os separava um do outro se tornava mais forte. Não sabiam se seriam capazes de resistir a ela quando finalmente se tocassem.

Mas o formigamento que atravessava suas mãos, e subia por seus cotovelos e pescoços, era agora também uma força irresistível. A vida no sozinho infinito da bruma era insuportável, e se tornava insuportável também a ideia de uma vida em que não tocassem suas mãos uma na outra, entrelaçassem seus dedos, sentissem o choque entre o frio e o calor e pele, e músculos, e tendões, e ossos. De repente, em algum lugar dos olhos do Jaguar, a Estrela encontrou um sorriso. Era a si mesma que ela via ali refletida. Mas também via o Jaguar refletido no reflexo do reflexo de seus olhos. E dentro de cada um dos reflexos de reflexos, ela viu o que poderia ser o mundo das coisas vivas, e ali encontrou o sorriso. Era a fagulha que faltava: o Jaguar entrelaçou suas garras nos dedos da Deusa Velha, resistindo à violência da maré, encostou mesmo a almofada de sua pata na palma da mão da Deusa. Toda a força de sua vontade se concentrava em segurar a mão de sua amiga, e em impedir que seu divino corpo fosse esfacelado pelo furação de nada que surgia de seu contato.

Mas a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, lutando também contra o furacão, percebia que abrir mão do toque de seu amigo era também esfacelar-se. Dobrou o próprio cotovelo para puxar para si o corpo do Jaguar. Seus cabelos, como a Juba de seu amigo, voavam para todas as direções possíveis, e alguns fios mais frágeis começavam mesmo a se arrebentar e voar em direção ao infinito. Mas o braço que ainda tinha livre a Menina Leoa fez enfrentar o tufão e alcançar as costas de seu amigo. E puxando-o ainda mais para perto de si, inventou o abraço.

Puderam sentir então, por um instante, apenas o toque um do outro. No pescoço, nos ombros, no peito, e o Jaguar também esticou como pode sua pata para retribuir a sensação do braço da Estrela segurando suas costas. Sabiam que a maré queria arrastá-los um para longe do outro, mas ela já não cabia entre eles, e se contentava em lufar furiosa ao seu redor. Aprenderam muitas coisas nessa época: a diferenciar o bater de seus corações, e a se maravilhar quando as batidas coincidiam; a escutar sua respiração, a sincronizá-la, embaralhá-la, acelerá-la; a vibração engraçada que ouviam quando tentavam conversar com o ouvido encostado no outro. Perceberam todo um mundo que havia dentro de si mesmos como nunca antes, e como talvez nunca pudessem ter percebido à distância. A Deusa Velha, que era sempre certeira em palavras e ideias, não sabia mais dizer se gostava mais que tivessem inventado as palavras ou o abraço.

Meu amigo, ela disse, já não tenho forças para resistir à maré.

Então nos soltamos?, sugeriu o Jaguar. bem, bem devagar?

Não! Se eu simplesmente te solto, serei arremessada tão longe que não terei forças para te encontrar de novo; nem brilho para que você me encontre. E sinto seu coração se esvaindo, e sua respiração ficando mais fraca. Você tampouco vai ser capaz de me procurar.

Então o que podemos fazer, minha Estrela, minha amiga?

Vamos nos segurar um ao outro tão forte como pudermos – e depois, vamos nos deixar desmanchar. como não podia ainda convencer o amigo, continuou: você quer enxergar em mim agora apenas a Menina Leoa, a Estrela, mas a verdade é que só me sinto como a Deusa Velha. Estivemos juntos por eras que nem podemos contar, porque não inventamos palavras pra isso. Por eras nos olhamos, depois nos conversamos, depois nos abraçamos. E eu vi nos seus olhos, meu Jaguar, meu amigo. ela sorriu: no reflexo do reflexo do reflexo, dentro de seus olhos, eu vi o mundo que virá de nós dois. Não inventamos palavras para tudo o que existirá nele ainda, porque só tivemos a bruma para ver, e um ao outro; mas haverá coisas nele, coisas nossas filhas de alguma forma, ou parte de nós de um jeito que ainda não entendo; e essas coisas também serão lindas de olhar, e inventarão palavras para falar de si mesmas, e para tudo mais que houver no mundo, e saberão dar abraços, e segurar as mãos, e sentir o cheiro das respirações umas das outras.

Mas, para isso, teremos que deixar de ser, teremos que morrer.

Meu Jaguar, meu amigo, nós teremos que morrer. Mas eu não acho que isso seja o mesmo que deixar de ser. E se não nos deixarmos morrer, o que teremos? A bruma e a solidão. Eu prefiro morrer ao seu redor, e permitir que o mundo novo seja. Eu não amo a bruma, mas eu te amo, e amo o mundo que virá de nós dois.

Eu te amo, mas eu não quero morrer.

Eu também não quero, não sei se estou pronta. Mas ouça como a maré ruge. E ouça como meu coração falha. Nós não temos mais... ela inventou enfim: nós não temos mais tempo.

É verdade.

O Jaguar inventou então o choro, e as suas filhas, as pequenas deusas da morte, acreditam muito firmemente que é de suas lágrimas que se formaram depois os cometas. Mas mal concluía sua invenção, percebeu que a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, o abraçava de repente com mais força. Ela também chorava, mas parecia um choro de um tipo mais quente, e seu coração se acelerava.

Eu estou feliz que estejamos juntos agora. Gostaria apenas que eu pudesse ter brilhado mais forte, para que eu encontrasse seus olhos mais cedo na bruma.

O Jaguar percebia que o corpo de sua amiga estava cada vez mais quente, e cada vez mais insólito. Não percebia mais em seu pescoço, em seu peito e em seus braços as formas do corpo da Deusa; cada vez mais era como se abraçasse uma nuvem quente. Sentiu então o formigamento em suas próprias patas, e em seus chifres, e na ponta de sua longa cauda cor de relâmpago: bastava se permitir, e seu corpo se desmancharia aos poucos, como o de sua amiga agora se desmanchava, e da mistura de sua poeira e do turbilhão da bruma surgiria o mundo que a Estrela enxergou dentro de seus olhos, num reflexo de um reflexo de um reflexo.

O Jaguar, porém, teve medo. A Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, pode sentir ainda o salto em seu coração, e a hesitação de seu amigo, antes de se desmanchar completamente. Ela tentou então ela mesma resistir por mais um momento, para poder consolá-lo de sua tristeza, mas isso já não era possível. Sem ter mais o abraço sólido de sua amiga em que se segurar, o Jaguar foi arremessado para longe pelo turbilhão da bruma, feito agora de uma mistura do nada com o brilho intenso de poeira cósmica em que a Estrela se tinha tornado.

 

Quando acordou, enfim, seu pesado corpo estava deitado desconfortavelmente sobre uma areia cinzenta. Estava nas praias do Mar de Nada. Sua visão estava embaçada, mas pensou ver ao longe, no meio do mar escuro, algo reluzindo. Seria a Estrela? Tentou se levantar, mas suas pernas não podiam sustentá-lo, e sua cabeça doía intensamente. Seu corpo divino estava coberto de feridas provocadas pela explosão da bruma. Um de seus chifres tinha sido mesmo arrancado de sua cabeça. O sangue que escorria dele não tinha sua cor de trovão, mas era preto como o Mar de Nada.

No entanto, conforme escorriam e pingavam na areia prateada, as gotas negras de sangue do Jaguar não se contentavam em formar poças por aí. Não, elas se engruvinhavam, e ondulavam, e aos poucos começavam a se arrastar de um lado para o outro, e depois em direção às ondas na beira da praia. Primeiro eram apenas sangue encaroçado, mas logo de um caroço começava a surgir uma perna que saltava, um braço que arrastava, mesmo uma cabeça que olhava de um lado para o outro, tentando sentir o cheiro de nada do Mar, tentando saciar a sede em um gole de seu nada.

O Jaguar não sabia se podia confiar em suas próprias vistas embaçadas, mas já milhares dessas minúsculas criaturas se formavam ao seu redor. E apesar de não brilharem, apenas refletiam com pouca vontade as cores que havia a sua volta, apesar de não brilharem ele percebia que elas tinham em si muito mais o formato da Estrela do que o dele. Tinham dois braços, pernas maiores que o tronco, mãos ao invés de patas e nenhum sinal de chifre ou de cauda. Chamou-as de seu sangue, suas criaturas e suas filhas; mas como era inábil com as palavras, e não sabia precisar as coisas por nome, percebeu ainda que precisaria depois inventar um nome para cada uma delas, talvez mais de um nome para cada uma. E elas, por sua vez, teriam que aprender sobre os nomes e as palavras, para que pudessem ser chamadas.

Assim, por um tempo que a princípio não pode ser contado, mas que as Pequenas Deusas da Morte tentaram estimar depois, o Jaguar ensinou às suas filhas a língua que tinha inventado junto com a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. Enquanto isso, elas em troca cuidavam de sua mãe, lavando suas feridas com nada, ouvindo-o e alimentando-o, e construíam uma cidade de vidro e areia para habitar a sua volta.