domingo, 29 de novembro de 2020

Canção de Advento

ainda que a noite pareça escura, ainda 

que pareça imperecível a secura,

que pareça imutável a estrutura,

não haverá madeira suficiente;

nem que se desmanche todas as caravelas,

nem que se desprenda todas as molduras dos museus,

nem que se desmonte todas as catapultas,

nem que se desencave todas as cercas,

nem que se desenterre todos os caixões,

nem que se desempilhe todos os altares,

nem que se desarme todos os fortes,

nem que se debulhe os genuflexórios todos,

até a última ripa,

não haverá madeira suficiente

para o tanto de cruzes que eles terão que construir.

Todos os povos da Terra gestam em si

o Reino de Deus.


sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Um vento de sul a sul

 Meu coração é uma ventania que parte de alguma campina na Mongólia, sussurrando na direção de Xangai; atravessa cordilheiras escarpadas para se espalhar por Bangladesh; meu coração são partículas de ar que se agitam com a tensão das cordas de uma cítara desafinada; descansa tomando carona na motoneta de uma moça da Cidade de Ho Chi Min, que vai visitar sua tia; mergulha, empurrado por um tufão, para visitar outras ventanias em Kuala Lumpur, em Manila, em Taraua; meu coração é o sol batendo nos olhos de um leão em Uchiná, dança de um lado para o outro e os faz parecer vivos; deixa-se levar pelas correntezas índicas; passeia pelos Urais, nas fronteiras do mundo que ainda pode ter esperança em alguma coisa. Meu coração é uma chuva que cai nas montanhas do Curdistão para abastecer fontes subterrâneas e umedecer metralhadoras; é o vento que derruba o lenço de um vendedor de frutas de Jerusalém, desconhece suas muralhas; é a tempestade que cai inesperadamente num dia de sol no Cairo. Meu coração ama o Rio Nilo. Meu coração é o Rio Nilo, é o espelho d'água que viu queimar o rosto de Aton, a biblioteca, os carros de um milionário inglês. Meu coração é a brisa que afaga o rosto de um professor de matemática em Nairobi, feliz pela aula que deu aquela manhã; meu coração é a poeira que descansa no túmulo de um santo em Adis Abeba. é o rumor da chuva estalando nas folhas no Mayombe; é o tende cantado por moças tuaregues. Meu coração é a espuma no cabo das tormentas, e ama muito mais os gigantes que as caravelas. Meu coração é o assovio dos pastores nas ilhas do Atlântico, é um sonho galaico; meu coração é Luanda; meu coração é uma ventania que varre plantações de cana de açúcar em Cuba, que afaga os cabelos das crianças cubanas indo pra escola; meu coração é uma música que eu não entendo embalando a madrugada de uma escritora em Porto Príncipe; meu coração é o sol na cabeça de um vendedor de sorvetes guatemalteca; voa para o norte para tentar escutar em vales desconhecidos os hinos dos zapatistas, e as canções de Chavela Vargas. Meu coração são as flores de um cemitério, que quando o vento as move, parece que estão chorando; meu coração é a chuva lavando o rosto de um jovem venezuelano, empurrando sua bicicleta ladeira acima; é o sol batendo no rio Madeira, no fim do dia. Meu coração mora no sol batendo no Madeira, no fim do dia, como em nenhum outro lugar. mora num monte de terra onde mataram São Camilo Torres; mora no sargaço, na água quente do mar em João Pessoa. Meu coração passeia pelos Andes como se houvesse sempre morado lá; da neve ao sal ao sol; meu coração é a terra fendida por gruas e petroleiros, é o entulho que sobrou ao redor de minas de prata desertas. Meu coração é o ar aquecido que sai cheiroso da chaminé de uma padaria em Assunção; é o orvalho molhando o pé de uma menina tucumana, que gosta de ouvir o avô cantar aquela música do Atahualpa sobre a lua. Meu coração é um tamborzinho calchaquí. É a brisa que refresca um velho cansado trabalhando na recepção de um hotel barato na Rua Tucumán, em Buenos Aires, com saudades do filho que veio morar no Brasil. Meu coração é a sujeira nas sandálias de uma pessoa tocando violão e bebendo mate em um feriado cívico qualquer de Montevidéu. é o cheiro de chuva que faz sorrir a atendente de uma lojinha de conveniência de um posto de gasolina em Uruguaiana. Meu coração são nuvens pesadas que viajam de Casca a Delfim Moreira, carregadas por ventos árticos, mas que não chovem. São tempestades que prometem alagar cidadezinhas e virar o barco de pescadores, mas que não fazem nada disso. É um coração cansado. Meu coração é uma ventania que tenta esparramar o cheiro de urina na Rua Galvão Bueno, nem sempre com sucesso. É o que resta do ar depois que passam os ônibus queimando seus motores pela Pires do Rio. Meu coração é a chuva caindo num cemitério na estrada do Campo Limpo; meu coração chove em tantos cemitérios diferentes, tem uma relação incerta com eles. É o sol que faz brilhar os cabelos coloridos da moça que entrou na faculdade, e que faz brilhar os piercings da mulher que conseguiu um emprego novo, depois de ter que lidar três anos com um patrão murrinha e sem respeito nenhum pelas pessoas, meu Deus do céu. Meu coração é o sol que aquece as pombas da praça da Sé, e as pombas da praça da Matriz, em Guaratinguetá. Meu coração é a chuva batendo, em sinal de protesto, sobre a abóbada esverdeada da Basílica de Aparecida. Meu coração é o cheiro do café quente que embala uma motorista de ônibus que faz a linha para Lorena. É o som brilhante de uma viola, é o som seco e triste de uma corda de viola arrebentando no meio de uma música. É a chuva batendo no rio Paraíba. Faz a piracema e do Paraíba sobe o ribeirão Guaratinguetá, e sobe o ribeirão das Pedrinhas, e sobe o ribeirão do Taquaral. Meu coração é o vale do Taquaral, é o sol que brilha e é principalmente a chuva que cai no vale do Taquaral. Meu coração escolhe bem o pedaço de terra onde meus avós resolveram construir sua casa e mergulha por dentro dessa terra, a procura de uma mina qualquer. Mas ele erra seu caminho; é preciso atravessar camadas de minerais, e o manto, e mesmo o núcleo da Terra, e escapar novamente em alguma campina na Mongólia. E depois fazer seu caminho de volta, pelo mundo todo novamente.
Meu coração é um vento de sul a sul.
Dói o tempo todo.
Mas precisa continuar ventando.

Gestação de um mundo

sou prenhe de um mundo novo: imenso, novo, imenso mundo; mas é mundo em feto, precisando gestação; fica preso no meu peito, imenso, novo, imenso mundo; um peso de mundo que só um mundo imenso pode pesar; e, enquanto gesto em mim esse imenso, novo, imenso mundo, eu sinto que é um gestar do qual participa todo o mundo; o mundo gesta em mim um mundo novo, imenso mundo; e eu sei que sou esse mundo, imenso, novo, imenso mundo; e mesmo escavando em mim, perfurando em mim, escavando fundo; encontro esse mundo enfim, imenso, novo, imenso mundo; um mundo feito de mim, mas não por isso imenso ou mundo; um mundo que é mundo sim porque bebe o mundo de todo o mundo; e torna o mundo em mim o mundo que é de todo mundo; e todo mundo é em mim um mundo imenso, novo mundo; e mesmo eu estando assim, peregrinando e moribundo, encontro dentro de mim o mundo novo, imenso mundo: um mundo de que estou prenhe: imenso, novo, imenso mundo; que mora dentro de mim, da superfície até o fundo; misturando com quem sou umbilicalmente me fundo no mundo que mora em mim, no mundo em que eu moro: o mundo.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Um sonho

     Estou sentada na beira de um lago, os pés dentro da água. Tudo tem tons dourados, de um sol que se põe à minha esquerda. O lago brilha dourado e marrom, o céu brilha uma cor de cobre, o capim alto brilha um amarelo suave. 

    O capim não tem medo do lago; se aproxima de suas margens; cobre suas margens; mesmo o fundo do lago, intuo, talvez esteja coberto daquele capim grosseiro, porém agradável ao toque. O capim não tem medo de mim; acomoda meu corpo sentado como se fosse um ninho, se enrosca em meus artelhos e nos meus pés - talvez seja mesmo da planta dos meus pés que saiam as raízes deste capim todo; talvez eu seja só um talo de capim com forma de gente, e roupas de gente.

    Além de mim, porém, há gente de verdade. Os vejo vindo em grandes filas indianas, quando olho para a direita. Sobem o morro coberto de capim amarelo que leva até o lago. Mas sua meta não é o lago; passam por trás de mim e seguem andando em direção ao cume, onde o sol se congelou num ocaso amarelo, quase branco. 

    Um vento desce desde o cume, fazendo o capim dançar e chacoalhando a roupa das pessoas. Mas nem aquela luz impossível, nem o vento, nem o capim na altura de suas cinturas, nem a inclinação cada vez mais íngreme demovem-nas de sua peregrinação. O que as detém de vez em quando é a curiosidade pelo que acontece no lago.

    Talvez sejam os reflexos do próprio por do sol na água. Talvez seja outra coisa. Mas logo perdem o interesse e retomam seu caminho. Ao contrário de mim, elas não parecem perceber que há muito mais reflexos de pessoas na água que pessoas de fato subindo o monte. Mesmo quando uma delas se interrompe para olhar, há três ou quatro reflexos no lago, parados, olhando de volta. Mas elas não percebem. Talvez não percebam reflexo nenhum.

    A peregrinação continua. Só o som do capim se movendo, do vento, e o gelado da água nos meus pés, completamente envoltos pelo capim submerso, decididamente raízes de mim. Outra pessoa se destaca entre os peregrinos, indo em direção ao lago. Usa um casaco vermelho, tem olhos e cabelos escuros.

    Ela olha para o lago, e também não percebe os reflexos. Mas sente que há algo errado. Ela olha para mim. Ela me percebe. Por alguns instantes me estuda, como outros peregrinos estudavam o brilho do por do sol no lago. Depois, tira seus sapatos, põe os pés dentro da água, e se senta ao meu lado.

    Vira o rosto para me dizer alguma coisa.

    Eu desperto.

domingo, 4 de outubro de 2020

Sem título

Desaprendo o dia inteiro, e também aprendo o inútil a todo momento. Isso não é muito minha escolha, um peixe mesmo morto às vezes sobe a correnteza, e isso é consequência de seu corpo. Contudo não quero falar sobre a natureza e nem extrapolar demais com hipóteses de quem tenta enxergar o todo do tempo, que é supremo. Também não quero apenas existir me forçando a alcançar o silêncio, separando dele o barulho. Quero arrumar a gaveta, beber um suco doce, sentir a madeira de que foram feitos os móveis e também ver o clima mudando - quero ver a chuva vindo e indo. Viver é difícil quando a gente tenta entender mas é preciso para continuar vivendo. A gente separa as coisas pra ficar mais fácil, essa é a nossa brincadeira e a gente se diverte. Mas é que na verdade é tudo junto, na verdade é a gente que não tem tamanho suficiente para enfrentar a beleza de todo o resto, e disfarça. Pode ser que seja fácil de se engrandecer do ruim, mas eu acho mesmo é que a gente que vem sendo ensinado por aí a apontar só o que é mau. Namoro as coisas boas, manejo as ruins e sou feliz com quem me tornei.


 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

coivara

mesmo que dessa chama um mundo venha
será não mundo novo, mas miragem
um feto natimorto de vergonha

um pássaro nu de qualquer penugem

não há esquema, senha ou contrassenha
ou contrafogo pra abrir passagem
agora que ele queima, que ele venha

mas passe logo, não traga bagagem

um mundo além do fogo exige sanha
de coisa mais que chama ou que fuligem
portarmos nós em mãos a terra prenha

um passarinho trêmulo em vertigem

pra um dia, essa terra virar casa
pra um dia, o passarinho abrir a asa

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

sonetralhadora #5

Como é que pode um homem tão honesto,
pai de família (três), valores claros
sofrer ataques os mais ignaros
sofrer infâmias e o que há mais funesto

em tudo um cristão (menos em Cristo)
de roupas pobres (mas de carros caros)
ao amigos tudo dá Bolsonaro
(e pro centrão dá o que tiver de resto)

Não cremos nesses papos vigaristas
eu nem outros robôs deste Brasil
cobertos por ti de gozo e orgulho

(só trava meus circuitos um bagulho:
por que Queiroz, o vosso motorista,
deu pra Michelle oitenta e nove mil?)

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Flor da cristandade (ou: veneno de rato)

 

que pode um rato dar se não veneno,
um fermentado em ódio e em tortura?
disfarça-se de santo ou de cura
mas rato era, e continua sendo

às vezes, quer passar por rato ameno
e cita mesmo versos da Escritura
mas logo se revela sua impostura
e volta então a ser um rato pleno

se há pedras, é o que atira a primeira
enquanto lambe os pés da tirania
e não há outra coisa que não queira:

roer os lábios virgens de Maria
mascar de João Batista a caveira
cuspir em Cristo enquanto lhe anuncia

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

sonetralhadora #4

Guedinho: nem todo livro é o Mankiw
nem todo livro é de economia
neoclássica – ou outra mais sombria
nem todo livro é ruim nesse tanto

sei que eu teria o mesmo desencanto
e da literatura raiva fria
se como você, tudo o que eu leria
fosse manual ruim, manchete e ponto

mas tu não é o Brasil, graças a Deus
e teu governo não é nossa terra
inda que nela espalhe sua teia.

os nossos são os que inventam saraus
e slams e literatura de guerra
e muito mais, mesmo que tu não leia

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

sonetralhadora #3

Mateus, esse indivíduo rascunhado
que tu teve o azar de encontrar
é o ápice do que há de mais cagado
não vale nem o ar que tu peidar

se olha no espelho e se acha um potentado
ninguém mais da família quer olhar
faz dívida pra comprar porsche usado
almoça frango, arrota caviar

Mateus, repare bem a imensa falha
de caráter, repare o erro profundo
que cometeu o pequeno encrenqueiro:

Esqueceu-se que cada um que trabalha
que bota a cara pra girar o mundo
vale bem mais que um condomínio inteiro


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

sonetralhadora #2

filósofos e outros luminares –
a cara do brasil; mais que a pobreza –
têm sobre o deus mercado, essa beleza,
uma fé tal, das mais peculiares:

o deus mercado e a sua realeza,
insistem, hão de ser sempre exemplares
os restringir é a raiz dos males
o laissez faire é do bem a certeza.

exceto quando, em repentino acesso
de consciência de classe mal formada
sofre seu credo súbito avacalho:

repare como tem robô possesso
que o deus mercado cortou a mesada
do pulha do Olavo de Carvalho

segunda-feira, 27 de julho de 2020

sonetralhadora #1


o gringo bilionário ele nos pisa
em nome de um futuro imaginário
e já mais nada nos escandaliza
é corriqueiro viver no calvário
 
o rico nacional contemporiza
o dono da TV fica no armário
solta matéria ou outra, sempre lisa,
contando com que a gente seja otário

longe de Deus e dos gringos tão perto  
no nosso continente não é novo
que a vida torne em estado de sítio

mas há de tudo ir pro lugar certo:
o Evo vai de volta pra seu povo
E o musk pra uma guilhotina a lítio

domingo, 19 de julho de 2020

A guerra II


Bota a viola no ombro, camará                    Bota a viola no ombro, camará
Mas leva a espada do lado                            Mas não bote qualquer preço
Porque o tempo do tempo já passou          Pelo avesso do avesso do avesso
Está dessincronizado                                     Nos dão o avesso do avesso

Bota a viola no ombro, camará                   Bota a viola no ombro, camará
Mas deixa o escudo por perto                     Antes que o ombro te pese
Porque o tempo da certeza já passou        Não tem cantiga que cure a escravidão
E duvidar é que é certo                                 Nem teoria, nem tese

Bota a viola no ombro, camará                   Bota a viola no ombro, camará
Mas com o olhar vigilante                            Mas não bote seu receio
Venderam o dia de hoje, outra vez             A hora é de derrubar o furacão
Ele se foi lá pra adiante                                E ir pro meio do meio do meio

Bota a viola no ombro, camará                   Bota a viola no ombro, camará
Mas com o ouvido aguçado                         Torna o arado em espada
Dizem que o tempo da guerra já passou   Dizem que o tempo da guerra já passou
E que lutar é passado                                    E que a guerra é por nada



Mas o sangue dos nossos ainda escorre na terra

A guerra I


1.
Vento com cheiro de noite
Travestido de lua e de sangue
Permita a irmãs e irmãos celebrar esse instante

Dança no tom da viola
No sussurro da chuva que finda
Não foi criada canção mais bonita ainda

2.
Morte, irmã velha e sem rosto
Tão sozinha no meio da festa
Quem te escolheu pra ser musa de ainda outra gesta?

Mãe da seca que me assola
E da chuva que mata meu povo
Em meio aos raios de sol recomeça de novo

3.
Dispenso sela e arreio
Minha mão pesa mais uma espada
Mas contra o vento da noite, nada pesa nada

Por mais que a lua lhe esconda
E o tom da viola nos convença
É outra vida que cai pela mesma doença



Eu, que sou filha de um povo
Que se esconde no alto da serra
Já me cansei de lutar nessa guerra