segunda-feira, 23 de julho de 2012

Mayhew Boys, Attaway Girls – Pt. 2

2 – Onde conhecemos as irmãs Attaway e os eventos se desenrolam.

Alphonse Maria Mucha - B_n_dictineÉ de conhecimento geral o papel que se delega às mulheres – e mais especificamente, às filhas – nesse longo reinado de Sua Majestade Victoria. Não é muito diferente daquele papel que lhes era imposto já antes disso, e que certamente ainda perdurará por muitos anos, mas nunca foi algo tão extremado assim. Talvez nem mesmo na idade média. Todos sabemos como nossa Rainha e Imperatriz preza pelos valores, pela moral, e como é importante para ela que todos seus súditos e súditas vivam uma vida de retidão e contrição. Tendência essa que, claramente, apenas se acentuou com a viuvez da matrona, que finalmente achou uma desculpa para usar preto pelo resto da vida. St. James era a lei.

Uma família inexplicavelmente abastada como os Attaway certamente não esperariam menos de suas filhas – duas flores cândidas, primores de comportamento e temperamento – do que casamentos que enlaçassem-las com famílias ainda mais abastadas.  E, de preferência, de forma bastante explicável e palpável. Foi, portanto, uma grande surpresa quando foi anunciado o noivado de não apenas uma das Senhoritas Attaway, mas de ambas, e logo com os jovens senhores Mayhew. Não que alguém tivesse algo a dizer sobre os Mayhew, de forma alguma, sempre foram rapazes muito bem-quistos, muito asseados, mas que nunca tiveram muito destaque na sociedade. E, principalmente, que não tinham onde caírem mortos – até onde se sabia – a não ser, talvez, o colo de sua mãe. Mãe essa que nunca havia sido bem aceita pela sociedade, pelo menos não como os filhos, desde que Victória sentara seu traseiro gordo – não, sejamos honestos, quando jovem Sua Alteza tinha um traseiro devidamente irretocável – no trono.

Os boatos, é claro, foram muitos. a primeira coisa levantada pelos de pouca imaginação, foi que teria ocorrido algum fato vergonhoso, algo que obrigara o digníssimo Mr. Attaway a ceder a mão de suas duas adoradas filhas. Falou-se que a belíssima Flora havia sido ludibriada, conspurcada por Lucas Mayhew, com aqueles olhos sempre perdidos em alguma lugar, certamente planejando as mais perversas perversões. Falou-se até mesmo que a espirituosa Laura – inteligente demais para ser tão bem-quista quanto a irmã – estaria grávida de David Mayhew, aquele homenzinho que só pensava em coisas ruins, e que, portanto, deveria ser ele mesmo um grande bandido e libertino. Jovens apaixonados clamaram por duelos, no calor do momento, para libertar uma ou outra Miss Attaway do jugo do malvado Mayhew respectivo. Tal falatório, no entanto, não durou muito. Alguém de bom-senso apontou que uma das irmãs poderia haver caído nas garras dos perversos, mas duas? Era maldade demais para ser verdade. Além do mais, os Mayhew eram verdadeiros cavalheiros, nunca haviam demonstrado qualquer grau de libertinagem ou amoralidade, e já cortejavam as respectivas Attaway a muito tempo, sempre de forma muito educada. Mas o que levaria cortejos tão duradouros a finalmente chegarem a algum lugar se não infâmia? Oras, se Mr. Attaway concedera a mão de suas duas filhas, isso só poderia significar que os Mayhew não eram tão pobretões quanto se pensava! Talvez a velha bruxa Mayhew estivesse para morrer e fosse deixar uma herança colossal, como por vezes o fazem os grandes pães-duros das histórias de Mr. Dickens. Sim, devia ser isso, os garotos Mayhew não eram, de forma alguma, pés-rapados, isso se podia ver claramente, como eram ambos distintos cavalheiros, ou pelo menos foi isso que todos se adiantaram a defender assim que tal teoria veio à baila. Os Mayhew deveriam ter adquirido uma grande soma de dinheiro, e isso fizera com que Mr. Attaway visse as vantagens de unir sua família àquela. Uma soma tão considerável que não importava se o sobrenome Mayhew era nobre, se tinha história. Surgiu então a dúvida de como Mr. Attaway ficara sabendo disso, e qual era a real origem de tanto dinheiro. Questão essa que não ficou no ar por muito tempo. Muitos foram os que apareceram dizendo saber de tal a muito tempo, muitas também foram as origens que deram para o dinheiro, alguns mais exaltados se atreveram até mesmo a dizer com autoridade: “Eu vi os jovens Mayhew cortejando as Attaway com tanta paixão que me vi na obrigação de contar a Mr. Attaway a verdade sobre a condição financeira dos rapazes, para que fossem finalmente aceitos.” Como era de se esperar, portanto, os Mayhew passaram a ser convidados para todos os bailes, todos os eventos dignos de nota que aconteciam na capital do Império (além de alguns fora de lá, e muitos que sequer eram dignos de nota). Com, o tempo e a aproximação do casamento, no entanto, a estória de que os Mayhew eram secretamente ricos se esfacelou aos poucos. Os preparativos do casamento, claro, eram organizados por Mr. & Mrs. Attaway, mas o que viria depois disso seria completamente por conta dos irmãos Mayhew, e não se via nada demais, nem mesmo nada que fosse além do que deveriam estar ganhando de dote. Rumores surgiram que o alfaiate tivera de ser convencido a aceitar o dinheiro pelas vestes de casamento dos irmãos apenas após realizada a cerimônia. Foi então que alguém muito sensível percebeu que não fazia sentido essa estória toda, que devia ter algo muito errado para que os casamentos fossem arranjados, e tudo assim tão às pressas! Mas então já era tarde demais para duelos, e poucas pessoas conseguem se interessar por uma história que não envolve nem libertinagem nem heranças exorbitantes, então acabaram deixando tudo de lado. Algumas senhoritas muito jovens e inocentes chegaram até a pensar que tudo se tratava de uma história do triunfo do amor sobre o dinheiro e a sociedade, mas tais devaneios obviamente não foram levados a sério.

Enquanto tudo isso acontecia no mundo lá fora, Flora e Laura Attaway corriam com os preparativos de seu casamento. Laura era mais velha que Flora, mas ambas eram, obviamente, muito mais jovens que os ainda jovens irmãos Mayhew. Ambas eram cortejadas pelos irmãos já ha alguns anos, e seria insensível de minha parte dizer que não estavam apaixonadas. Mas, considerando o fato de que ambas estavam apaixonadas, eram elas as provas vivas de que a paixão pode acontecer de diversas formas, por diversos motivos. O que não era nada além do que poderia se esperar, afinal, se existia uma dupla de irmãos mais discrepante que os irmãos Mayhew, essa dupla eram as irmãs Attaway. Basta que olhemos para como cada uma se comportou no período entre a aceitação do pedido de casamento e a consumação do ato. Ambas ficaram surpresas, mas isso era de se esperar, qualquer pessoa ficaria, toda a sociedade londrina ficou, como eu bem já expliquei. Mas, para além disso, as duas passaram a agir completamente diferente. Ao sair do estado de choque inicial, Flora passou a um semelhante de extrema felicidade, o que fez com que sua irmã pensasse em como ela era perfeita para Lucas, ambos em seu tedioso otimismo e seu romantismo quase patológico. Enquanto a irmã se perdia em devaneios, Laura definiu toda a base do casamento. Ela que definiu que seria uma única cerimônia – o que deixaria toda a sociedade de queixo caído, mas era bastante racional, e talvez por sua própria racionalidade, deixasse todos assim abismados –, onde ela aconteceria, a data, o quanto poderiam gastar, e até mesmo alguns detalhes do que viria depois; Laura fez questão de tirar Lucas da sua letargia para que tivesse respostas claras sobre como ele planejava sustentar sua irmã, coisa com a qual seu pai surpreendentemente não havia se preocupado, e, apesar de não ficar completamente satisfeita com a resposta, teve de se contentar. A vida que teria com David não seria tão diferente, é verdade, mas ela era mais independente que Flora. Ou melhor, ela se importava menos com determinadas frescuras, e certamente poderia apoiar David, talvez até mesmo se responsabilizando por uma parte dos rendimentos familiares, nos últimos anos isso não era tão incomum, para desgosto dos conservadores e da Rainha. Mas Laura não se importava tanto com esse tipo de coisa. Na verdade, Laura era o tipo de pessoa que se importa muito pouco com o que for, era inteligente – ou ao menos se assegurava disso – o suficiente para não cair nas maquinações e enganações que vinham acompanhadas de bailes e ceias elegantes. Laura era uma ótima pianista, mas como o piano era visto como nada mais do que um passatempo, deixava que parte de seu tempo se ocupasse também com a literatura. Gostava muito de algumas das obras mais recentes, que tanto escandalizavam os literatos. Não só os livros de Wilde que David sempre levava debaixo do braço, mas mesmo aquelas coisas mais complicadas, para as quais ele não tinha tanta paciência mas para as quais se dedicava para deixá-la feliz.

Depois de definidos esses primeiros detalhes, Laura simplesmente deixou tudo de lado. Isso coincidiu com a época em que Flora percebeu a aproximação da data definida pela irmã, e começou a ficar completamente obcecada com os detalhes – aquele tipo de detalhe para o qual a irmã nunca daria a devida importância – e teve de arregaçar as mangas. Com base nos orçamentos pré-definições feitas por Laura, Flora fez com que o casamento fosse realmente um evento que chamasse a atenção de toda a sociedade. A decoração, os ritos, os votos, a festa. Flora, assim como a irmã, gostava de literatura. O gosto, porém, era bastante diverso, Flora gostava daqueles autores franceses, seus poemas cheios de sentimento, se entediava demasiado com a prosa que a irmã lia como se não tivesse mais com o que se preocupar. No piano, não era nem de longe tão boa quanto Laura, mas tocava com uma frequência muito maior, mesmo que apenas para ouvir os elogios de como era uma moça prendada. Sabia falar línguas que a irmã mal sabia paintings-by-pino-daeni-3-159590-530-664existir, e se fascinava com tudo que tinha relação com o oriente. Fizera questão de usar tecidos da pérsia ou ainda de mais longe, incensos e coisas do tipo para deixar a cerimônia com um ar mais exótico. Isso tudo sob os preceitos de St. James, é claro, pois isso era o mais importante.

Uma semana antes do casamento, a casa dos Attaway era um verdadeiro caos. Enquanto Flora experimentava e reclamava para conseguir os últimos ajustes de seu vestido, tão violentamente descabelada que a visão chegava a ser cômica – um vestido branco esvoaçante encimado por fundas olheiras e fios de cabelos despontando para todos os lado – enquanto isso Laura estava num canto, completamente quieta, o cabelo preso num coque – o que não impedia que lhe caísse frente às orelhas, quase que emoldurando o rosto, de uma forma esquisita – vestindo apenas sua roupa de baixo – o que já significava uns bons quilos de tecido – e fumando um cigarro de maconha que lhe fora recomendado pelo médico da família para aliviar a cãibra menstrual, mesmo tratamento que era recomendado à própria Rainha Victoria. Laura, nesses dias, tinha de ficar o mais afasta de sua irmã o possível, já que Flora sentia muito mais os efeitos de tal remédio que a própria medicada. Mas nesse caso era inevitável, Laura tinha que estar lá durante os testes de vestido, assim como tinha que estar na maior parte das preparações do casamento, agradasse ou não a Flora. Laura, por sua vez, pensava na Rainha. Se os ciclos delas fossem sincronizados, ela poderia estar fumando agora mesmo. Será que Victoria seria como ela, que mal ficava de olhos vermelhos? Ou seria como Flora, extremamente sensível sobre isso? Laura gostava de pensar que a Rainha vivia um dilema moral por conta disso. Mas não tinha certeza se existia motivo para tal. Ela não deveria dar importância para isso.

Laura simplesmente acenava para tudo que a irmã dizia. Percebeu que havia alguém à porta do casarão apenas quando a pesada porta se abriu no andar abaixo. Saiu do quarto, em direção à entrada, para ver quem era, sem se importar em deixar a irmã mais nova sozinha. Foi só quando viu o visitante, um homem alto e magro vestindo roupas chamativas e listradas, que lembrou que não estava propriamente vestida. Escondeu-se, tendo certeza de que não havia sido vista. Ela nunca tinha visto aquele homem, fosse em casa, fosse nos eventos que os Attaway costumavam atender. No entanto, o estranho andava pela casa plenamente livre, como se a conhecesse muito bem, e foi direto para a sala onde Mr. Attaway costumava receber parceiros de negócios, e onde havia concedido a mão de suas filhas para os irmãos Mayhew. Laura não conseguiu conter a curiosidade, teve de seguir o homem estranho, sempre tomando cuidado para não ser vista. Depois de que entrou na sala, fechando a porta atrás de si. Laura foi até lá, cuidadosamente, e pôs-se a escutar através da porta.

De início, o que lhe chamou a atenção foi o silêncio. Nada de cumprimentos, nada de educação. No entanto, não parecia ser um silêncio tenso. Mas ela sabia que seu pai estava ali com o estranho. O que lhe chamou a atenção em seguida foi ouvir Paganini. Não fazia ideia do que, naquela sala poderia estar fazendo aquele som. Seria o estranho um violinista? Mas não havia nenhum violino naquela casa, e o homem não trouxera nenhum consigo. Mais estranho ainda foi quando o violino parou abruptamente e seu pai falou, como se respondesse a ele. Ao que se seguiu uma nova peça de Paganini, e então uma resposta de seu pai, e assim consecutivamente. Era como ouvir apenas uma metade da conversa. Ainda assim, ficava claro que os dois – Mr. Attaway e o violino, já que não se ouvia outra voz – discutiam o casamento. Por algum motivo Mr. Attaway parecia agressivo, assim como o violino, afinal era Paganini. O violino era tocado com maestria, parecia ser o próprio Paganini a tocar, e Laura se sentiu fortemente tentada a abrir a porta e ver quem tocava. Foi então que ouviu passos se aproximando da porta. Correu e se escondeu num lugar que pudesse ver quem sairia pela porta. O homem alto e vestindo listras saiu, com um sorriso sardônico. Só agora ela percebeu que mesmo o cabelo dele parecia ser listrado: fios ruivos entrelaçados por fios grisalhos. O estranho parecia muito satisfeito consigo mesmo, e se dirigiu diretamente à saída do casarão. Laura, no entanto, ficou escondida mesmo depois de ouvir a porta principal ser fechada. Quando finalmente saiu de lá e foi até a sala do pai, encontrou-o calado, lívido. Com uma real cara de susto. Não conseguiu fazer nada que não balbuciar frente as perguntas da filha. Parecia muito assustado. Quando finalmente se deu conta das coisas que a filha lhe perguntava, mandou-a se calar e saiu. Se aquilo tinha algo relacionado com seu casamento, precisava falar com David, juntos conseguiriam entender melhor do que aquilo se tratava. Talvez o homem listrado tivesse alguma relação com os Mayhew. Se não se enganava, Mrs. Mayhew fora ruiva antes de ter seu cabelo embranquecido pelo tempo.

Os preparativos do casamento, no entanto, a consumiram mais do que esperava, e Flora cobrou demais sua participação, não teve chance de conversar com David até a noite do casamento, e ainda assim, tinham muito mais com que se preocupar. Tudo parecia ter corrido bem, e sabia como David gostava de se preocupar com tudo que aparecia pela frente, tudo era, para ele, um problema que precisava ser resolvido. Durante a cerimônia, obviamente, não poderia trazer isso à tona, e mesmo depois, na noite de núpcias, tinham mais sobre o que conversar.

Mal sabia ela que, naquela noite, quando finalmente experimentava um pouco de paz ao lado de David, o homem listrado movia os cordões de seu teatro de marionetes. Na noite seguinte à noite de núpcias, Mr. Attaway e Mrs. Mayhew ambos amanheceram mortos.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Mayhew Boys, Attaway Girls – Pt. 1

Já faz um tempo que não escrevo aqui. Grande parte da culpa por isso é do semestre, da falta de tempo e dessas coisas. Uma pequena parte, no entanto, se deve a estar envolvido com um outro projeto. Alguns meses atrás algumas pessoas de RI tiveram a ideia de criar um jornal, e eu claramente faço parte dele. Já saíram da prensa internética três edições, que você pode conferir aqui. Todas as edições tem mais de um texto meu, então acabei me concentrando lá, e deixando aqui um pouco de lado. O Yuri também faz falta como estímulo. Mas o importante é que agora estou com um tempinho e vou tentar escrever pelo menos algumas vezes antes que a ampulheta volte a girar e o pêndulo se aproxime da minha garganta querendo cortá-la.

Percebi que essa estória vai ser mais longa do que imaginara inicialmente, então será cortada. Inicialmente em três partes. Todas serão postadas aqui ainda esse mês, espero.

***

1 – Onde conhecemos os Mayhew, e nosso nêmesis.

Alphonse Maria Mucha - Flirt _calendar_Lisonjeados, os irmãos Mayhew saíram do grande salão. A arquitetura do lugar deixava claro sua importância, dava importância para tudo de acontecia ali, de uma forma bastante soturna. Devia ter sido construído em algum momento do reinado de Charles II, logo depois de Cromwell. Os irmãos ficavam um tanto atônitos ao imaginar como uma família com um sobrenome de origem tão comunal como Attaway podia ter posse de um casarão como aquele, de um salão de tanta gravidade histórica. Ou melhor, isso passava pela cabeça de apenas um dos irmãos, David. Era o mais racional dos irmãos, o único que conseguia pensar em diversas coisas ao mesmo tempo. Lucas era diferente, era fácil perceber, enquanto o vemos subir à carruagem de aluguel, que tudo que ele viu ou ouviu naquele lugar não deve ter causado nenhuma impressão em sua memória, estava com o exato mesmo ar avoado que tinha ao chegar.   Era uma espécie de humilhação, para eles, ter ido fazer um pedido de casamento em um Hansom, um taxi comum, e não num Ladeau, como a situação – e as pretendentes – exigiam. Mas estavam apaixonados e não tinham dinheiro. E, no fim das contas, tinham até mesmo sido lisonjeados. Lucas não conseguia pensar direito nisso, era claro, não conseguia pensar em outra coisa que não sua amada Flora já a meses. David, no entanto, achava tudo aquilo muito estranho. Mr. Attaway os havia recebido cordialmente, mas de forma alguma havia sido caloroso. David achava mesmo que alguns dos tramites normais da situação provavelmente haviam sido deixados de lado: nada de serviçais servindo bebidas, nem como aperitivo nem como comemoração, nenhuma das filhas por perto. Tudo muito estranho. É claro que David também estava tão embriagado de paixão quanto seu irmão. E estava imensamente feliz por ter conseguido a mão de Laura. Mas fora muito rápido, muito frio. Não haveriam dotes nem nada do gênero, isso era de se esperar, mas Mr. Attaway também não demonstrara nenhum interesse em garantir que as filhas teriam uma vida decente, mesmo que não no mesmo nível de elegância ao qual estavam habituadas.

Era de se esperar que Mr. Attaway já houvesse se inteirado por completo da situação financeira dos irmãos, mas ainda assim era incomum que não tivesse feito qualquer pergunta, qualquer ressalva. Se atendo completamente aos fatos, David não acreditava que Mr. Attaway fosse permitir que não apenas uma de suas preciosas filhas, mas sim duas delas, se casassem com os Mayhew. Eles era, bem-apessoados, e tinham muito cuidado de passar a impressão de jovens promissores e estáveis, mas não era difícil saber que isso não era exatamente verdadeiro. Quando Mr. Mayhew falecera, quase dez anos antes, deixara uma herança que poderia sustentar apenas um filho, numa vida confortável mas desprovida de luxos. Os dois irmãos Mayhew, no entanto, dividiram o recebido igualmente, como gêmeos. Sempre foram muito afeitos um ao outro, e nenhum deles teria coragem de reclamar a herança inteira, com medo de perder tal cumplicidade. Ao chegarem em casa – que parecia ter o dobro da idade da dos Attaway, dado seu desgaste, mas que na verdade não devia ter nem mesmo um terço disso – os irmãos foram diretamente contar as boas novas à matrona. Mrs. Mayhew lembrava a Rainha Victoria. Ambas estavam por volta dos 60 anos, e embora Mrs. Mayhew parecesse bem mais velha, a semelhança era inegável. A gorda matrona recebeu as notícias calada. Sentada na poltrona velha ouviu os filhos narrando todos os detalhes, ouviu Lucas falar e repetir centenas de vezes elogios a Flora, o rapaz divagava, tinha planos idílicos e parecia ainda não perceber que casamentos naquela época eram muito menos românticos do que imaginava, que a vida de casado não tinha uma proteção mágica que impedia o acontecimento de coisas ruins. David estava mais calado, perdido em pensamentos. Foram assim desde pequenos, Lucas era muito otimista e David nunca conseguia realmente aproveitar as conquistas que obtinha, simplesmente criava algo em sua mente que dizia que algo de ruim deveria vir com aquilo. Podia ser cautela, mas era exagerada. No entanto, dessa vez o olhar de Mrs. Mayhew se prendeu em David, que não percebeu isso por estar muito perdido nas suas preocupações precedentes.

Diante da euforia de Lucas, os medos de David acabaram se colocando de lado. No fim da noite os irmãos já estavam ambos tranquilos e alegres. Se não na mesma medida, em uma bem semelhante. E foi com esse espírito que cada qual foi para sua casa. Casas essas ainda menores e mais envelhecidas pelo tempo, pela chuva e pela fumaça que a casa de seus pais, perto da qual pareciam dois ovos sob a galinha. A verdade é que tais casas serviam para pouco mais que dormir, a maior parte do tempo os irmãos Mayhew ainda passavam na casa onde haviam sido criados: as refeições, as confabulações, até mesmo encontros de negócios. Mas, à noite, com a parca criadagem dormindo no anexo e os filhos longe, a casa era unicamente de Mrs. Mayhew e do fantasma de Mr. Mayhew.

Tarde da noite, Mrs. Mayhew foi até a porta do casarão. A abriu como se soubesse que alguém se encontrava ali. E, realmente, alguém ali estava. Um homem alto e magro, os cabelos de um ruivo não-natural, não daquele ruivo fogo que é fácil de se encontrar, mas de um vermelho sangue, completado com verdadeiras listras de cabelos grisalhos. O homem vestia trajes justos, o casaco, a calça e a gravata eram pretas, com listras vermelhas, o colete, ainda mais chamativo era de um tom de vermelho muito próximo do da cor do cabelo, com listras amarelas. Apenas a camisa branca era realmente adequada. Como um todo, o modelo era antiquado, impróprio para um cavalheiro. Mas o homem não era um cavalheiro: é de conhecimento geral que um cavalheiro não usa listras, listras são a vestimenta do diabo. De longe, tal figura já chamaria bastante atenção, mas os que se aproximassem iriam se assustar ao ver os olhos de cores diferentes. Não era uma combinação comum, nada de um olho verde e outro azul ou castanho, não. Um dos olhos era esbranquiçado, talvez cego, mas imóvel como um olho de vidro e o outro, de longe poderia disfarçar-se como sendo castanho, mas de perto era claramente vermelho. Nenhuma carruagem se encontrava ali, o homem parecia ter chegado a pé e exibia um sorriso sarcástico e de dentes tortos.

Sem nenhum palavra, Mrs. Mayhew fez um sinal para que o homem entrasse. E ele obedeceu, ainda com o sorriso no rosto, girando a bengala de ébano no ar. Ambos seguiram silenciosamente para o grande salão, onde Mrs. Mayhew se sentou na sua poltrona, sob o retrato do falecido marido – um homem gordo e careca, com o rosto tão completamente ocupado por um sorriso de orelha a orelha e por um nariz aterradoramente grande que os olhos pareciam dois pequenos pontos perdidos no rosto – e encarou o visitante, que ficou a caminhar em círculos pela casa.

“Eu sei porquê você veio, mas ainda é cedo, Old Nick.” Disse Mrs. Mayhew para quebrar o silêncio. “Se é que ainda posso chamar de Old Nick alguém que é visivelmente mais jovem do que eu.”

“Ah, bruxa velha, você não passa de uma criança para mim.” Disse o homem, num tom leve, sem se desfazer do sorriso. Sua voz era suave e aveludada. “Mas você sabe qual o acordo. Você tinha três desejos, todos eles se realizaram, agora não há nada que te prenda a este lugar.”

“Hum, aprendi com você a ser cautelosa nos negócios. Nada me garante que minha última solicitação foi atendida.”

“Ah, como ousa! Por acaso não cumpri devidamente nossos dois acordos anteriores? Se me lembro bem, ha quase 50 anos uma jovem foi até o bosque pedir minha ajuda para fazer com que seu amado retribuísse seu amor. Que criança tola era aquela, se embrenhou dentre as árvores pois achou que eu não poderia ir até a casa dela!” E aí o homem soltou uma gargalhada assustadora e alta, que poderia acordar todos os criados, e mesmo os vizinhos, não fosse também uma gargalhada enfeitiçada. “E ainda mais tola de ter ido até lá por um homem como esse, que poderia ser seu com um simples abrir de pernas." A bengala de ébano apontava para o retrato de Mr. Mayhew. “Quarenta anos depois, a mesma criança, embora agora estivesse com os cabelos embranquecidos e não fosse mais burra o suficiente para ir me procurar nos bosques, essa criança me fez um segundo pedido. Ela não queria se separar do homem que amava, o homem que morria enquanto ela falava comigo. Ainda assim, apesar de todas as dificuldades, eu cumpri minha parte do contrato, a menina casou-se com o homem e, quando ele morreu, não se separou dele.”  E então o homem apontou para o fantasma de Mr. Mayhew, encolhido em um dos cantos do salão, até agora despercebido. “E ainda assim você duvida que vou cumprir com a última parte do contrato, criança tola?”

“Cale a boca, você não está aqui para se vangloriar das suas capacidades ou dos acordos que cumpriu no passado. A última parte do acordo dizia que meus filhos iam se casar com mulheres ricas, que iam ter suas vidas garantidas por isso. Hoje eles receberam as mãos dessas mulheres, mas ainda é cedo para que eu lhe pague por seus trabalhos, o casamento ainda não foi realizado.”

“Que seja, então, velha. Voltarei na noite de núpcias de seus rebentos para tomar o pagamento que é meu por direito. E então você não terá mais formas de protelar, que fique bem claro.” Irritado, o homem chamado Old Nick foi até a lareira e lá se desfez em labaredas do mais intenso dos vermelhos, sem esperar respostas.

O fantasma de Mr. Mayhew se aproximou de sua esposa. O próprio andar do fantasma demonstrava como ele se sentia humilhado da condição na qual se encontrava. O olhar que lançava a Mrs. Mayhew era de pura reprovação. Mas ainda assim tentou abraçar a mulher enquanto essa chorava lágrimas silenciosas. Em vida, Mr. Mayhew fora um homem muito querido por todos, o sorriso e o nariz, ambos enormes, que apareciam no seu retrato tinham uma parte considerável da culpa por isso, mas era também espirituoso e muito afetuoso com todos. Compreensivo e progressista. Mrs. Mayhew quando jovem era uma mulher livre, e se encantara por Mr. Mayhew exatamente por encontrar nele um homem que não desprezava as mulheres, como muito se fazia naqueles tempos. Com o andar do reinado de Vitória as coisas apenas pioraram nesse sentido. No entanto, Mrs. Mayhew acreditava que seus filhos haviam absorvido bem o exemplo que lhes passara o pai. Desde que Mr. Mayhew falecera, cerca de dez anos antes, seu fantasma passara a ocupar a casa. Cuidadosamente educado nas artes de ser um fantasma, pelos conhecimentos da esposa, Mr. Mayhew era visto apenas por ela.  Não era do tipo de fantasma que assombra casarões, era do tipo de fantasma que vive pela metade. Mas isso pode já ser dito de muitas das pessoas vivas.

domingo, 15 de abril de 2012

Crianças e cemitérios

Cemitérios são ótimos lugares para crianças brincarem. Não qualquer cemitério, claro. Nada desses cemitérios contemporâneos que não tem espaço entre uma tumba e outra, e certamente não esses cemitérios de luxo, que mais parecem country clubs, onde você praticamente precisa de uma carteirinha para homenagear seus mortos. Não, existe aquele tipo ideal de cemitério, algo mais antigo, com muito espaço e campos abertos, algo vitoriano, que não seja mais usado, mas seja praticamente aberto a público como museus a céu aberto, mas que ainda assim não haverá ninguém para se sentir magoado se a criança quebrar uma daquelas cruzes de pedra antiga por acidente.
Como todas as ideias, essa não veio espontaneamente, sempre é necessária uma centelha – no meu caso, duas – e, como algumas pessoas tendem a reafirmar, nenhuma ideia é realmente original. Os dois fatores que me levaram a isso foram simples: eu precisava cuidar de uma criança – minha filha de cerca de três anos – mas não queria problemas, queria levá-la para um lugar arejado, onde pudesse brincar, coisa que não podia fazer no meu apartamento de solteiro, ao mesmo tempo que eu poderia ter paz e tranquilidade, sem ter de me preocupar com outras crianças com as quais ela pudesse brigar ou de adultos com os quais eu tivesse que conversar – especialmente mães que ainda hoje se impressionavam com o pai de uma menina levando-a para brincar –, já que eu estava numa tentativa interminável de concentração, seja para ler, seja para escrever. Todas as vezes que minha filha aparecia e eu tinha que cuidar dela, essa paz era de certa forma quebrada. Não me entendam mal, é claro que amo minha filha, e, quando ela ler isso, tenho certeza que sequer questionará tais sentimentos – espero – mas a verdade é que, por mais que fossem agradáveis os dias que passava com ela, em determinado momento, tinha que levá-la para fora do apartamento e com ela brincando e descobrindo o mundo ao redor, eu muitas vezes ficava com a sensação de que aquele tempo com ela seria perfeito se utilizado corretamente, ela poderia me inspirar muito, por exemplo. E, de fato, costumava ter ótimas ideias nesses momentos, ideias que obviamente desapareciam no caminho para casa. Por algum tempo pensei em acompanhá-la mais de perto, ficar respondendo seus por-quês e coisas do gênero. Mas ela parecia querer deixar bem claro que aqueles momentos eram para ela, que ela precisava ficar só, e que me perguntaria tudo que tinha para perguntar quando estivesse de volta ao apartamento e entediada. Pedi conselhos para a mãe dela, o que provou não ser de muita ajuda para mim, tínhamos formas muito diferentes de encarar esse tipo de coisa.
Mas foi então que me veio a segunda centelha. Que veio na forma de livro, e da ideia de outro. Era a estória de um menino criado pelos fantasmas de um cemitério vitoriano, de forma parecida com a que Mogli, o menino-lobo, fora criado pelos animais da selva. Era um livro para crianças, ao menos em teoria, que tinha comprado exatamente pela analogia com Mogli, estória que minha filha gostava bastante. Pode ter sido um pouco perverso da minha parte me aproveitar da curiosidade de minha filha, surgida a partir da estória que eu lhe lia daquele livro, para por em prática meu plano de levá-la ao cemitério. Mas foi inevitável, a ideia me parecera ótima, e, sem dúvida, se ela não gostasse do lugar, se sentisse assustada ou entediada ou algo assim, eu a traria de volta sem titubear.
Procurei um lugar que pudesse lembrá-la do cemitério do livro, o que por si só não foi algo muito fácil, mas não impossível. E devo admitir que o próprio trajeto já era algo divertido de se fazer, da primeira vez, ela estava apreensiva, fazendo milhares de perguntas, a maioria querendo relacionar o livro ao lugar para onde estávamos indo, e que eu portanto não sabia responder. Das vezes seguintes isso não estava mais presente, mas ainda assim era divertido dirigir com ela no carro, cantando as letras erradas por cima das músicas e contando como estavam as coisas na escola. Mas, antes de colocar o carro à frente dos bois, deixem-me voltar à primeira vez que a levei lá.
O lugar era realmente agradável. Muito verde, e muitos lugares onde sequer se poderia saber se haviam sido utilizados. Grama alta, muito espaço, clima agradável. Um ótimo lugar para se descansar, sem dúvida. Consegui sem muita dificuldade um lugar onde pudesse sentar-me à sombra e ler. De lá podia ver a extensão inteira do cemitério, que não era tão grande quanto os modernos, e portanto poderia manter um olho em milha filha onde quer que ela fosse. Devo admitir também que a forma que ela se portou frente a isso me impressionou bastante – e foi bem diferente da que a mãe dela teria quando soubesse e me desse uma bronca por telefone –. Ela não teve medo, se divertiu bastante correndo sob o Sol, entre a grama. Não se entediou, sempre ficava olhando coisas: as estátuas, as fotos e palavras nas lápides, os mausoléus, as coisas que lembravam as estórias que eu contava, mas também descobrindo coisas novas. Em determinado momento se escondeu na grama alta, para me assustar quando não a visse, mas de forma geral se comportou bem. Acho que as crianças nessa idade não estão manchadas pelas concepções e medos que adquirimos no decorrer da vida, da solenidade com a qual a morte – e os mortos – passa a se relacionar na mente adulta. Ao menos na nossa sociedade.
Eu, portanto, não vi motivos para não continuar levando-a lá. Mesmo as reclamações da mãe dela diminuíram com o tempo. E eu realmente acho que isso foi algo importante para a formação dela, que quando adulta ela vai saber lidar com determinadas coisas melhor do que a maioria das pessoas. Melhor do que eu, sem sombra de dúvida. Continuamos indo lá por meses, talvez anos. Mesmo depois do afeto dela pelo livro que tinha motivado aquilo ter diminuído consideravelmente. Meio que se tornara uma coisa nossa, que só acabou de fato quando sumiu a necessidade de levá-la para brincar em alguma lugar. Ela nunca deu mostras de se entediar, pelo contrário, sempre vinha com perguntas novas. E, especialmente conforme ela foi crescendo, eu tinha a possibilidade de me concentrar nos meus afazeres, mesmo nos menos sérios.
Com o tempo ela passou a entender as letras nas lápides, a perceber que eram nomes, e a intuir que as pessoas que apareciam nas fotos estavam ali enterradas e, portanto, mortas. Foi aí que as perguntas começaram a ficar difíceis. Não por serem aquelas que os pais não sabem as respostas, mas por serem aquelas que não sabemos se devemos responder, como devemos responder.
“Papai, por que todas essas pessoas estão aqui?”
“Porque, minha filha, a muito tempo atrás, todas essas pessoas morreram, e elas foram trazidas para cá para que as famílias e os amigos delas pudessem visitá-las sempre que quisessem, para que pudessem lembrar delas, e, talvez, quando chegasse a horas delas, elas pudessem se juntar e descasar ao lado das pessoas que elas amavam num lugar bonito e tranquilo como esse.”
“Mas por que nós nunca vemos ninguém visitando então?”
“Porque esse lugar é muito antigo, as pessoas que estão aqui viveram a muito tempo, e as pessoas que vinham visitá-las também já estão descansando em algum lugar.”
“Mas então quer dizer que todas essas pessoas já estiveram vivas? Quer dizer que todas as pessoas um dia vão morrer?”
“Sim, minha filha, todas essas pessoas um dia estiveram vivas como eu, todas elas foram crianças como você que gostavam de brincar e se esconder na grama. E sim, todas as pessoas uma hora morrem, até mesmo eu, ou a mamãe, e até mesmo você, um dia, mas esse dia ainda está muito longe.”
Eram visíveis as lágrimas que se formaram nos olhos dela quando eu lhe disse essa última parte. Mas se fez de forte, não queria chorar, queria continuar perguntando, saber mais.
“Mas e o que acontece quando as pessoas morrem?”
“Bem, quando as pessoas morrem, os corpos delas são levadas para um lugar como esse, onde as pessoas vão poder visitá-las, onde elas vão poder descansar, mas mais do que isso, quando as pessoas morrem elas continuam existindo dentro das pessoas que a amavam, nos reflexos das coisas que ela fez em vida…”
“Mas isso eu já sei!” Disse ela atingindo uma nota aguda num gritinho. “O que eu quero saber é o que acontece com as pessoas de verdade! Mamãe diz que quando as pessoas morrem elas vão para o céu, e encontram com as famílias delas que já morreram, e esperam os que estão vivos chegarem…”
O que dizer frente a isso? Eu não consegui articular nada, todas as minhas respostas foram coisas que não a acalmaram, que não foram suficientes para combater a dúvida que eu mesmo implantara nela. Depois disso, continuamos a ir para o cemitério, mas com menor frequência, não era mais exatamente um lugar aconchegante, pelo menos não para os meus pensamentos. Eu sei, no entanto, que ainda assim foi importante para ela, que depois de ter ouvido minhas respostas ela mesma começou a pensar nesse tipo de coisa, e a pensar de fato com alguma profundidade, da forma que fazemos conforme vamos crescendo.
***
Bem, queridas pessoas que leem o blog, o Yuri está longe, muito longe, e passará um bom tempo sem postar nada por aqui, mas espero que quando ele voltar das terras que está aventurando, tenha muitas estórias para contar e vontade de fazê-lo aqui.
A “produção” do blog, até lá, no entanto, cai pelo menos pela metade, já que agora só eu estarei postando coisas aqui, mas ainda assim, espero que vocês continuem visitando, e comentem, deem ideias de coisas que possa fazer enquanto meu companheiro de empreitada está longe, coisas que vocês possam querer ver por aqui.
Pretendo não ficar mais tanto tempo sem escrever aqui, até mesmo para dar uma certa preenchida nas lacunas, então até logo!

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Soneto do Até Logo

Um ano passa logo, velho amigo
Tão logo que, no estalar de um dedo,
Nosso pesar se tornará brinquedo
E outra vez eu estarei consigo.

Um ano passa logo, ouça o que eu digo:
Um ano passa logo, leve, ledo
Não há feiticaria, nem segredo
O longe, pra nós dois, não é castigo.

Não temo o tempo em que não nos veremos
Pois nossos laços são dos mais profundos
Irmãos nós somos, irmãos seguiremos.

Eu temo outra saudade, mais sofrida:
Se, para amigos, anos são segundos
Para os amantes, horas são uma vida.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Hemingway


O copo está pela metade. O quarto está sujo, sujo demais, acho que nunca esteve tão sujo, o que de certa forma me surpreende – de onde virá toda essa sujeira? Não abro as janelas a dias, e, por mais de uma semana, os lugares mais distantes nos quais me aventurei foram a cozinha e o banheiro – e me assustaria se me importasse.
Enchi o copo – com gim, claro – no começo do dia, sabia que ia terminar meu trabalho hoje, metade dele foi o que precisei como pequenas gustações de incentivo, agora o resto serviria para comemorar. Tento convencer a cadeira giratória a se curvar frente aos meus desejos no sentido anti-horário, e ela relutantemente deixa a posição na qual se encontrou por dias. Engraçado ter escolhido esse lado para me virar: não o lado da janela fechada, que poderia abrir, mas o lado do espelho. Foi inconsciente, foi puro acaso, pode-se dizer, mas ainda assim me surpreendi ao finalmente rever meu rosto refletido ali naquele espelho manchado, grande parte da sua superfície estava corroída, opaca, mas era um espelho barato e velho, que por algum motivo tinha colocado ali, posicionado de forma a me possibilitar ler as lombadas dos livros – invertidas – e ver a mim mesmo quando sentado à minha escrivaninha de trabalho.
Peguei o copo em minha mão, movimentando-o como uma taça de vinho, mais por efeito enquanto encarava meu próprio rosto que qualquer outra coisa. Era também o copo barato, assim como o gim que estava dentro dele, barato e ruim. Ainda não bebi, encarava aquela imagem que tinha me feito esquecer temporariamente a celebração forçada. A barba estava maior e mais selvagem do que conseguia me lembrar de ter estado em algum momento de minha vida. O cabelo bagunçado era de praxe, mas agora parecia também um tanto seboso, assim como a camisa branca meio desabotoada. Por algum motivo me lembrava Hemingway. Não que eu já tenha visto alguma foto dele ou algo parecido, mas o homem no espelho não parecia comigo – diabos, ele tinha um copo de bebida na mão e parecia sujo – e por algum motivo era como se ele me representasse Hemingway. Não sou o tipo de pessoa que vai atrás de curiosidades biográficas dos autores, ou de suas fotos, mas com esse era impossível não saber ao menos alguns detalhes superficiais. Não era apreciador dos trabalhos dele, na verdade, pouco li, e tudo que sabia era que retratou a guerra como poucos, o que nunca quis dizer muita coisa para mim. Em determinado momento pensei que ele fosse me dizer algo do mundo atrás do espelho. Por um momento pensei que pudesse ouvi-lo.
Finalmente bebi o conteúdo do maldito copo, fechando os olhos e provavelmente fazendo uma careta. Aquilo cortava por dentro, matava. É impressionante como as pessoas tentam encontrar a felicidade em lugares e coisas, como elas valorizam a sua aparência, a sua personalidade, como elas imaginam que encontrarão as respostas para tudo que querem saber em um punhado de linhas, em algumas palavras – faladas, escritas, declamadas, em forma de pedido, confissão, grito -, no fundo de um copo, num espelho, em montes de livros, na imaginação, na morte, no amor, num abrir de janelas que vai mudar o curso de tudo, num ponto final.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Momentos - entreatos

Meus dias parecem estar se resumindo aos momentos em que falo com você, aos momentos em que sinto sua presença. O resto do tempo não passa de pensamentos, também sobre você, e o tédio de ver as horas se arrastarem lentamente.

A culpa é do momento, provavelmente. A culpa é da minha incapacidade de lidar com isso, e de como tudo agora me parece novo e belo, tudo que me lembre você. A culpa é das minhas décadas de solidão e de nunca ter alguém com quem pudesse falar como falo com você, falar as coisas que falo para você. É culpa da minha antiga dificuldade de me dedicar e de me envolver com as coisas, é culpa da lacuna que deixaram e que agora pareço querer preencher. É culpa da distância e do tempo, que não ajudam e não passam.

Nunca tive tanto medo. Já tive medo de falar, mas nunca medo de machucar, de perder, de estar sozinho, de voltar a ser o que um dia já fui, pouco mais que uma criança. E é nos momentos em que esse medo, junto de sua amiga e amante, a dúvida, é nos momentos em que me afligem que fecho os olhos pedindo para ter os poderes de dirigir minha vida como se dirige um filme, e fazer cortes temporais, suprimir os tempos-mortos (que existem, por mais que tentemos viver sem eles, sempre vão estar lá para nos assombrar, ainda mais alguém que já é assombrado pelo tempo e pela distancia e pela saudade). E tento pular até a próxima vez que vou te ver, ou ao menos até a próxima vez que suas palavras vão tirar de mim todo meu medo, o medo do passado, das coisas que me assombram, e 0 medo do futuro incerto.

Pois é nesses momentos que tudo parece certo, tudo parece mágico, e até mesmo eu me torno um tipo de otimista. E nessas horas tento te abraçar, mesmo que só com palavras, e nesse momento vejo o brilho dos seus olhos, mesmo os meus estando fechados. E é você, você, eternamente você, que me faz sentir melhor. E é você que me faz tentar responder, das formas que não sei se são certas, que não sei se te agradam. Você me faz sentir toda a certeza do mundo, ao mesmo tempo que me faz nada além de um menino. E todas as coisas inalcançáveis, tudo aquilo que pensei que não houvesse para mim, que cogitei até não existir, não passar de uma farsa, tudo isso parece mais próximo, tudo parece mais fácil, tudo parece possível.

Mas é rápido, rápido demais, não importa o quanto durasse, ainda assim seria rápido demais. E volto a olhar o ponteiro se mover, volto a ouvir a música de fundo, a tentar escrever e a fechar meus olhos desejando que a próxima vez chegue logo. A próxima vez que suas palavras vão me fazer sentir bem, a próxima vez que vou olhar em seus olhos. E enquanto isso tenho medo, se te machuquei, se exagerei, ou se vou fazer essas coisas da próxima vez. E enquanto isso, penso em você, penso e espero e anseio e te quero.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Bandeja Prata e Branca

Lhe sirvo em tabuleiro prata e branco
Meus versos de saudade e de sossego
Em moldes, que, por lhe desagradarem,
Os trago hoje aqui brancos, disfarçados.

Desvirtuado o cadenciar sonoro
Qual pede o verso vindo branco e preto
Prossigo a lida e marco como posso
As vãs beiradas de minha bandeja.

Sendo o versejo reto corriqueiro
(ou, pelo menos, tido como pouco)
Pergunto a mim se existe, enfim, motivo

Pra lhe servir em tábua branca e prata
Espúrios pensamentos que me atacam
E que, no fim, são só inconsequências.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Distração 1


Bem, como vocês provavelmente já sabem, estou tentando escrever um livro, mas nas horas em que não consigo me concentrar o suficiente, saem coisas como essas, distrações. Desculpem a emotividade.

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Eu preciso de um retrato seu para garantir que não vou te esquecer. Não me entenda mal, não é como se eu estivesse falando que vai ser fácil te esquecer, mas com o tempo, mesmo que pouco, mesmo que lutemos contra o esquecimento, o tempo faz com que nossas memórias mudem, que elas signifiquem para nós alguma coisa diferente da que realmente significavam para nós quando estavam próximos, quando eram reais.
Não poderia ser uma foto. Uma foto mostraria você como é de verdade, e não o que quero lembrar, como quero lembrar.
Não gosto de pensar que nunca mais vamos nos ver, até porque acredito no destino, e é impossível que o destino nos separe assim para sempre, sem nenhuma possibilidade de consolo à vista.
Ao fundo, a vastidão negra do rio, se confundindo com a noite, em tons dos mais profundos. As luzes da cidade estão lá, ao fundo, assim como as estrelas. São de um contraste lindo. Tento ao máximo captar bem aqueles detalhes, talvez evitando dar muita atenção a você, talvez simplesmente para não me embriagar, me derreter em seus olhos.
Estou muito emotivo, não posso evitar. Gostaria de dizer não saber o porque, mas talvez eu saiba. Talvez seja por sua causa. Mas não, me recuso a aceitar isso, se fosse apenas isso, não me emocionaria com coisas tão alheias a você, com coisas pequenas, com coisas tão...
Ah, não me controlo, quase sinto lágrimas nos meus olhos, coisa que dias atrás acreditaria impossível.
Mas a verdade é que medimos a relevância das coisas pelas sensações que elas nos fazem descobrir, ou redescobrir, não é mesmo?
Você está olhando para o lado, de perfil, como se ignorasse minha presença. Coisa que pode ser refutada pelo seu sorriso, pelos seus olhos.
Ah, como poderia eu captar os seus olhos? De uma forma diferente das câmeras, claro, da forma que eu os vejo, da forma que eles olham para mim. Aquelas pupilas dilatadas, enormes; e as íris, margens de suas cores, íris nas quais parecem estar escritas todas as estórias, contidas todas as estrelas, mas numa língua que não consigo entender, numa com que me ofusca.
As constelações em sua pele me dizem mais do que as que estão no céu. E enquanto estou perdido em retratá-las, você ri.
Ri do jeito que eu nunca conseguiria confundir com o de outra pessoa. É cristalino sincero, quase inocente, mas é difícil dizer, você é completo mistério. E o riso me desarma, me chama de volta de um mundo no qual estava profundamente emerso.
Deixei de lado todas as minhas outras obras, toda a arte do mundo, e agora você me choca com a realidade. Não, não a realidade. Falamos muitas besteiras, é verdade.
Volto a me concentrar, naquele momento não existo eu, não existe você, estamos distantes, só existe o que significa para mim, existe apenas uma chance, lentamente alimentada,
Seu nariz desafiador vai para a tela, e de repente, sinto que não sei mais o que fazer. Está viva, ali, como eu a imaginava.
Olho para o rio. As águas mais como um som ao fundo do que uma imagem, ondas perdidas nas sombras.
Olho a outra margem, as luzes e as estrelas. Estou só, eu e as lembranças de você, transformadas em quadro. Não sei se foi alucinação, presença ou saudade. Seria a saudade assim tão fácil, questão de tão poucos dias?