Ela deve estar em alguma sarjeta
Esperando a alvorada e os metrôs
Meio bêbada; tentando esquecer,
Não pensar que em algum lugar
Eu estou a esperar a morte,
Cuspindo saliva e sangue
No assoalho do banheiro,
Carcomido por inteiro,
Rogando a deus pra que ela venha,
Que me salve a vida e me foda,
Como só ela pode.
***
A função de quem escreve é a de dar sentido a algo que, por
princípio, não tem sentido algum, a vida. Nada mais natural, portanto, que o
começo das carreiras literárias – embora eu tenha algumas ressalvas a utilizar
uma palavra tão não-literária quanto carreira numa situação como essa – seja
uma tentativa de dar ordem à própria vida de quem escreve. Disso decorrem as
centenas de primeiras obras que são ao menos em parte autobiográficas, e também
o número ainda maior de estórias de amor. Talvez seja algo comum à categoria
que acaba se dedicando à escrita, afinal, não raro é ouvir comentários que
ressaltam a necessidade de uma sensibilidade desenvolvida, de capacidade de
observação e de solidão. Não é difícil ver como essas características geram
pessoas emocionalmente disfuncionais, e com grandes dificuldades de
relacionamento, que precisam ser exorcizadas na escrita, que pode ser também
uma forma de prática ou memória do fato real, pois as coisas parecem muito mais
verdadeiras e passíveis de compreensão quando estão no papel. A vida real é
algo muito mais complexo que a mais surrealista das novelas, ou mesmo do que o
Finnegan’s Wake. Eu mesmo poderia dizer que, na minha experiência, tento fazer
algo assim, poderia mentir que foi mesmo isso que me aproximou da literatura,
mas isso seria só uma forma de tentar parecer especial, seja como indivíduo ou
como classe. A busca por sentido não é especial a quem escreve, e quando
procuramos o sentido da nossa, sejamos nós quem formos, o primeiro passo é
olhar para quem está perto, para as pessoas com quem nos relacionamos. Eu acho
uma forma de pobreza a literatura que foca no romantismo e esquece a amizade.
Mas a relação amorosa sem dúvida é onde o sentido parece – e pode ser apenas
uma aparência ou não – mais forte, mais claro. Talvez por isso seja tão
valorizada. O amor é a busca do nosso sentido no outro. E quanto mais incerto
parece o mundo, maior se faz a dependência. A diferença é que algumas pessoas o
fazem na vida real, procuram um amor material, enquanto outros se dedicam
outras coisas, procuram um amor metafísico, na literatura ou na religião ou na
política ou no que for. E é tão mais fácil essa segunda opção, é tão mais
difícil que alguma dessas coisas nos decepcione quando comparamos isso a algo
tão carnal e falível quanto um ser humano, que também tem suas vontades e
fraquezas e, principalmente, a sua própria busca de sentido.
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