segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A pergunta que fica da vida

Como de costume em qualquer outra vida ou ocasião, a vida do ser humano era uma coisa difícil. 

Na verdade, verdade mesmo, não era que a vida era uma coisa difícil, mas é qua a palavra "difícil" foi inventada para falar de como se levava a vida.

A vida era um equilíbrio muito sensível, instável e frágil provavelmente por ser ao mesmo tempo específica mas complexa demais. 

Precisava disso e daquilo e daquele outro, uma série de condições sem fim num universo que também era um infinito de caos.

Justamente por isso, a vida que se mantinha era a vida que não parava de trabalhar. Não é que era bom e não é que era o certo, nem tinha essas coisas, e também não é porque era preciso, era simplesmente por acaso, e aquele acaso laboroso diferenciava a vida do que não era vida. 

A vida era muito egoísta, foi ela mesma que inventou isso de que ela era de alguma forma especial, foi ela que ao categorizar tudo, sem querer, por acaso de novo, por via do tempo que passou e de muitas outras vidas que não duraram, categorizou a si mesma: a vida. Isso foi inevitável, e inevitavelmente e ao mesmo tempo também, nomeou para si mesma seus deuses que eram seus algozes: o desequilíbrio, o trabalho, a morte.
(Inventou também, mas não antes disso, o livre arbítrio, e ainda mais, sem juízo de valor nenhum, se ajuntou nessa hora a inventar também o bom e mau.)

Vendo-se enlameada de desiquílibrio e afundando, emboscada pelos olhos frios da morte e sustentada pelos ombros sádicos do trabalho, a vida decidiu, pedaço a pedaço, que a única forma de alcançar um pouco de ar era devorando-os. 

Como imortais, a lama subia, a brisa era dura e gelava, e o movimento feria.

Então a vida se deparou com o que não esparava: sua razão era a de devorar o universo sem parar.

Mas como tudo não lhe cabia na boca, afinal era de tudo que a vida fazia parte, tudo era dos deusas deuses e ela uma mortal, a vida, sem entender nada, foi dando ritmos às mastigadas, intensidade às mordidas, misturas, e harmonias às bocadas.

Criou a música, as palavras, a pintura e a matemática. Criou a biologia, a justiça, o esporte, a filosofia, aprendeu a cozinhar, a costurar, a correr, a andar de bicicleta e tudo mais o que há, pois afinal de contas só hão por a que a vida há de havê-los.

E assim a vida segue, e a pergunta que fica é a pergunta da boniteza, como um sussurro irônico dos tais deuses: será, onde, como, e por quê?