quinta-feira, 17 de agosto de 2023

O Espelho de Madiã

Na primeira versão da fábula, havia dois Espelhos: um juiz chamado Madiã desejava saber o que sua esposa sentia quando se deitavam juntos, e recorreu a um espírito do fogo para ajudá-lo. O gênio deu a Madiã dois espelhos quase idênticos, engolido cada um pela moldura de um leão dourado, um caolho da vista esquerda, outro da direita. Era preciso que Madiã e sua mulher olhassem simultaneamente seu respectivo espelho, desejando sinceramente ser o outro, para funcionar o feitiço. A esposa de Madiã — para qual os fabulistas nunca deram um nome, como às vezes acontece — olhou para o espelho dentro da boca do leão canhoto de olho: quando deu por si, o rosto que a mirava era o de seu marido, e o leão da moldura de seu espelho só tinha aberto o olho direito. Mas ainda que perceber seu próprio corpo nu à luz da lua lhe encantasse de alguma forma, ela não suportou estar dentro do corpo de Madiã, que parecia, visto por detrás do nariz, subitamente muito feio. Madiã — ou sua esposa, ocupando seu corpo — teria então escondido os espelhos no fundo de uma gruta, para não serem mais encontrados.

Ainda assim, algumas centenas de anos depois surgiu a história de um paxá com um par maravilhoso de espelhos de propriedades similares. O paxá era tido como o homem mais culto de seu tempo, por conta, dizia-se, do seguinte artifício: sempre se informava de antemão sobre qual era o grande interesse de qualquer dignatário estrangeiro que viesse visitá-lo — se as ciências naturais, a história, a criação de cavalos, a poesia etc. — e usava seu par de espelhos encantados para trocar de corpo com algum de seus secretários ou amantes que gostasse de se ocupar daquele tema em particular. Ao mesmo tempo em que escapava, deste modo, das inconveniências do trato maçante com estrangeiros e diplomatas para fumar e jogar gamão, sua fama de polímata e conversador versátil se espalhava pelo mundo. A boa vida do sábio paxá foi interrompida, porém, quando um de seus generais mais ambiciosos se recusou a desfazer a última troca, aproveitando-se da iminência de um conflito nas fronteiras para convencer os secretários mais importantes a manter o truque em sigilo. O paxá, no corpo do general, foi condenado ao exílio, e a ter seu olho direito vazado. Os espelhos foram entregues a um dervixe que fazia a Haje, para que fossem destruídos ou purificados, conforme ele melhor entendesse. Por precaução, furaram-lhe o olho esquerdo.

Quaisquer que tenham sido as preces purificantes do dervixe, os espelhos desaparecem aí, e reaparecem em um convento um par de séculos adiante. Uma das irmãs enclausuradas, filha mais moça de uma família abastada de cristãos novos, se apiedou do esforço que suportava o jardineiro do convento, um velhinho curvado e barbudo, que mancava por conta de um ferimento de guerra. Ela apanhou de um baú trancado no quarto da superiora o par de espelhos mágicos — que diziam ter vindo do túmulo de um santo em Jerusalém — e convenceu o velhinho, pelas grades da clausura, a trocar de corpo com ela nos dias de maior calor. Com o tempo, outras irmãzinhas se juntaram à troca secreta, e o jardineiro, que antes não conseguia dormir de noite por conta dos reumatismos, aproveitava as horas ajoelhado em oração para descansar o espírito naqueles corpos jovens e sem dores.

As irmãs por sua vez aproveitavam o corpo do velho para se esgueirar para além do claustro; e toda a cidade se espantava com o velho jardineiro que saía por aí oferecendo pão fresco do convento para mendigos, passeando descalço pelo riacho, fazendo coroas de flores para dar de presente aos doentes e sozinhos. Mas não é do feitio do diabo permitir que um instrumento seu seja usado para o que é bonito: o coisarruim se encarnou então na forma de um inquisidor que visitou o convento por ordem do bispo, e lá constatou sinais claros de feitiçaria. Pisoteou com seu pé cascudo o espelho do leão destro de olho até reduzi-lo a areia, e fez uma a uma as irmãzinhas olharem no espelho que sobrou, o leão com o olho esquerdo:

Agora, porém, o efeito era outro. Quem quer que olhasse o Espelho de Madiã sobrevivente era lançado para fora de si, e tinha o espírito trocado por uma pessoa que, desesperadamente, já não desejava mais estar em si mesma. As almas das enclausuradas foram espalhadas para todos os lados do mundo, trancadas para dentro dos corpos de loucos, suicidas, perdidos e infelizes. As almas destes, por sua vez, vieram parar dentro do claustro, que se tornou agora mais sombrio que antes, e cujo jardim não sobreviveu ao próximo inverno. Feliz com o trabalho bem feito, o diabo jogou no rio a areia do espelho destro, mandou o espelho canhoto para ser usado nas missões do Novo Mundo, e tirou sua roupa de inquisidor, que já estava ficando esgarçada.

Depois de muito esforço, encontrei o rastro do Espelho de Madiã que sobrava: não me lembro quantas pessoas subornei ou chantageei, quantas trocas fiz, quanto dinheiro gastei… Foram anos árduos para que eu o tivesse em minhas mãos: cuidadosamente embrulhado, a moldura, tão linda, acobreada, aquele olho verde e leonino me encarando, o vidro completamente coberto com papel pardo… Até que percebi um dia um brilho diferente. Não sei o que pode ter rasgado o papel daquela forma, um rasgo tão fininho, mas suficiente para que eu visse meus próprios olhos; e então já não eram mais meus olhos olhando para seu reflexo no espelho, eram estes olhos que não conheço, olhando para seu reflexo nesta faca. Eu não sei de quem são estes olhos, eu não sei o que é esta faca, e eu não sei por que você está aí onde você está. Só sei que a pessoa que segurava esta faca desejava desesperadamente não estar aqui, e é o que eu também desejo.