sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Véspera


Juntos choramos e juntos morremos. Juntos crescemos e juntos envelhecemos. Juntos sorrimos.
E se é verdade que a história foi cheia de brigas, e que os caminhos se separam muito mais facilmente do que voltam a se encontrar. E se é verdade que tudo muda, e que não temos como deter aquilo que é novo, e que não podemos considerá-lo ruim só por não ser o que sonhamos. E se é verdade que nossas inocências não podem nos ser devolvidas.
Então tudo que temos que fazer são pazes. Então tudo que temos que fazer é lidar, rir, aceitar, acostumar e esperar mudar, mudando. Então tudo que temos que fazer é dizer adeus, agora temos outras virtudes, e vícios, e diferentes consolos para as mesmas tristezas que simplesmente se aprofundam.

E tudo, no fim das contas, não passou de uma música que você não conseguiu tirar da cabeça. É fácil olhar para trás, mas é muito mais difícil ver. Viver sem portos-seguros. Já alçamos ancoras dos únicos que existiram, e por vontade própria, os abandonamos. Não podemos dizer que exista uma sensação de rancor, pois acima de tudo o que nos move é vontade, é poder, é desejo de tudo aquilo que já tivemos, mas que dessa vez seja diferente, seja com o preço que nós pagamos, e com os ganhos de nosso sangue, e com a saciedade de nossas incertezas, vilezas, de nossos amores.

E lá estava eu, comemorando minha véspera de véspera de ano novo. Sozinho, numa mesa fria, papel meio amassado entre as mãos e milhares de redescobertas e ânsias em uma mente que por pouco não poderia se por a parir sonhos de um nunca-antes-para-sempre inventado. E lá estava eu pensando em como um pouco de iluminação e ares diferentes podem fazer com que nossas percepções mudem completamente, voltem a ser um pouco mais parecidas com a de nossas inocências perdidas, e com isso pareçam um pouco mais completas. Em como ao mudar podemos nos tornar tão diferentes que apenas juntando-nos ao nosso passado possamos no sentir completos.
E lá estava eu pensando em como tudo que pensamos, acreditamos, que toda a forma pela qual agimos, pode ser resumida com facilidade naquelas coisas – naquelas pessoas – que desejamos, e bem-queremos. Em como essas pessoas nunca são as mesmas, mas nunca também são exatamente outras. Em como nos envolvemos e passamos a detestar verdadeiramente tudo que nossas almas agüentaram por tanto tempo, mudas, indiferentes.
E a folha de papel continuava em branco, e me deixava com raiva. Como expressar tudo isso, como fazer entender, como não parecer arrogante, ou como não parecer a vítima incompreendida ao fazer um adendo como esse?
E rio alto, e não ligo se alguém olha de volta e encara, e me acha louco pelas minhas costas. Louco ou idiota. E não me importo com se pensam em alguma coisa qualquer, de qualquer forma, que sejam bonecos, essa véspera, esta espera, esse riso ao me confrontar com todo o lixo e excedente emocional deixado dentro da casca vazia de fogos de artifício recém queimados em louvor não só ao futuro que estar por vir mas como também – e muito mais – pelo passado que nos alimenta, e nos vicia, e nos faz achar algum rumo, como se temporariamente estivéssemos de volta ao porto que abandonamos, e que agora tão bem pode estar vazio e destruído, simplesmente por encontrarmos no vasto mar navios que lá também já estiveram. Navios cujos capitães – os pensamentos – e cujos marinheiros – as ações e emoções – nos são tão bem conhecidos e adorados. Em como ao ver aquele navio que para nós já foi tudo, nos sentimos bem, e como vemos que nossas viagens, e as intempéries dos mares nos fizeram diferentes a ponto de sabermos lidar com sua tripulação de forma tão diferente, sem novas fascinações, e sem também as antigas. Em como sabemos apreciar aquele navio não mais pelo que ele significou para nós, mas sim pelo que é hoje, pelas maravilhosas particularidades, que, querendo ou não fazem parte de nós tanto quanto nossas velas e nossas peles. E como, ao encontrar um navio que, por sua vez, nos faça sentir como aquele já nos fez um dia, sejamos de novo crianças, esqueçamos de medir o vento e olhar a ondas, e fiquemos à deriva.

Mas dessa vez é diferente, pois nós somos diferentes, e isso é inevitável, está além do nosso poder refazer, assim como voltar. Mas a verdade é que quando digo nós, na verdade digo eu, pois essa conversa sobre navios e memórias para sempre perdidas pelo simples fato de nunca esquecidas, pode não te dizer nada.
Mas não ouse dizer que não existe magia, que não existe algo, um tipo próprio de hermetismo, uma sensação de que, mesmo sendo simples véspera de tudo, véspera de futuro, não seja também o fim – fim, seria mesmo, custo a acreditar, assim como nunca de fato acreditei no fim do que fosse, por mais que não duvidasse da mudança – de algo tão enorme quanto, de algo que não pode ser recuperado e portanto precisa ser substituído por esperanças, de forma alguma esperanças vãs, mas que não deixam de ser simples esperanças, e o que são elas se não doces para crianças, ilusões de som & fúria & espelhos & fumaça & corações quebrados? Ao menos é isso tudo que podem ser até adquirirem carne – pois sempre precisamos de carne, sempre precisamos de pele e gestos e palavras e beijos e algo mais que os valha – e é isso tudo que são enquanto quisermos que sejam. Sem isso melhor é morrer com o ano que se vai, pois a verdade é que todos os dias morremos – pois queremos – um pouco, e esquecemos que morremos, e só por isso vivemos, de uma forma que parece nos impedir de escapar, nos asfixiar.
Mas não se surpreenda quando digo que não queria nada de diferente. Se todos os dias morro um pouco, é porque em algum momento de tais dias, estive também vivo. E a auto-ajuda contida nisso não vai muito além da loucura, na verdade não é consolo e, portanto, não é ajuda, mas é própria – é auto – e isso deve servir de algo. E não ajuda, pois temos a certeza apenas de ter vivido no passado e de não estar mais nele, e de não saber como será o futuro, simplesmente ter esperanças de que vai ser o mesmo, e talvez até nos enganarmos, com sonhos de que possa ser melhor, sem saber que nunca vai ser suficiente, pois sempre seremos nós. E porque toda esperança é burra, e teimosa, e apenas por isso vive tanto, tanto a mais do que todas as coisas realmente boas que poderíamos ter em nós. E nós, aqui, certamente se refere a mim novamente, a menos que você sinta o mesmo.

No fim das contas, não consegui achar uma forma digna de desejar um ano novo que seja ao mesmo tempo adequado a todos os clichês do mundo e a todas as ânsias dos meus mundos. E o papel continua em branco, e a mesa continua fria, e os mares continuam da cor que são e que nunca consegui definir qual é. Seriam verdes, azuis, cinzas, seriam na verdade da cor da minha alma, da besta que vive presa pelas minhas costelas, seriam castanhos?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Capítulo 1

(retomando nossa velha amiga, protagonista de http://talvezblog.blogspot.com/2011/07/naquele-dia-literatura-pegou-ela-de.html . Atribua as falhas na gramática às quatro da manhã, ou assuma tratar-se de escolha estilística. De qualquer forma, tendo encontrado uma, contate-me, preu ver se dou um jeito)

Que as vezes tomamos decisões ruins, isso não era novidade. Mas ela se pegou incomodada, não faz muito tempo, com a intransigência da não repetição e com a intransigência da expectativa de repetição. A primeira, supunha, deveria atribuir a Deus, e a segunda, lhe parecia, aos homens.

Pois Deus calhou de inventar isso de não haver outra vez se não a uma, de forma que nossa intenção perde o protagonismo para nossa ação. Neste mundo horrivelmente material, não era o que ela desejava de fato que se manifestava, mas a consequência do que fazia. Não importava, dessa forma, a intensidade com que ela, por exemplo, desejasse a felicidade de alguém. A consciência deste alguém sobre sua intenção se limitava não a ela em si, mas àlguma consequência – muitas vezes beirando o desintencional – do que seu porco domínio sobre a gramática ou a mecânica do universo foi capaz de expressar. Havia aí uma terrível injustiça, ela percebia. Mais valioso era um cérebro afiado que um coração macio.

O primeiro conseguia emular intenções que nem tinha, pelo controle da consequência. O segundo se atinha a tornar a consequência o mais perto possível de sua intenção, nunca conseguindo tornar aquela tão bela quanto esta. E os dois, afiado e maciez, pareciam nunca pertencer ao mesmo dono. E se ela tinha a impressão de tê-los encontrado conjugados, percebia mais tarde que era normalmente um esperto amargo se cobrindo de açúcar, ou um coração estúpido demais para conseguir parecer tão bom quanto era. Mais terrível ainda, encontrara um ou outro donos beirando a esquizofrenia, servindo por vezes um, por vezes outro impulso, nunca combinando-os de fato.

A intransigência da expectativa da repetição, por sua vez, ela via de regra sentia mais de fora pra dentro que de dentro pra fora, pelo que achava mais lógico atribuí-la a um mal social que natural. Ela transmitia, e não negava isso, a imagem de uma mulher bastante forte e equilibrada – e, em alguma medida, era forçada a reconhecer, um pouco cabeça dura. Não sabia, afinal, outro meio de lidar bem na esfera profissional, por exemplo, e descobriu, a duras penas, que as portas se abriam em maior frequência na maioria das esferas sociais também com este perfil de solidez imaculada. Não se importava em absoluto com isso, a princípio. Lhe garantia uma espécie de distância a respeito da maioria dos distúrbios do mundo e, ao mesmo tempo, algo como que uma autoridade a respeito deles.

Igualmente agradável era para ela, porém, a possibilidade, entre os mais íntimos de seus amigos, de se libertar de sua aura de paz e coerência. Não que sentisse a necessidade disso com frequência; em alguma medida, ela sabia que não era de todo imprecisa sua noção de que todo palhaço acreditava, depois de um tempo, que seu nariz de verdade era o vermelho e redondo. Mas a possibilidade era dos principais atenuadores da necessidade, sua liberdade residia no poder ser mais que no ser.

A intransigência da expectativa de repetição se abatia sobre ela com mais peso quando, defrontada com um novo grande amor ou novo grande amigo, resolvia lhe conceder a possibilidade de a conhecer incoerente ou perturbada. O pequeno e novo pedaço de si que ela oferecia, no entanto, muitas vezes era recebido menos como uma inesperada dádiva e mais como uma desagradável surpresa. Não lhe concediam, nem lhe concebiam, a fraqueza, a pequenez ou a incoerência. Não fosse a fortaleza sorridente que se apresentava outrora, se afastavam – mais pelo medo da novidade que por qualquer maldade ou desprezo; ou, pelo menos, era isso que ela se forçava a supor, pelo bem de seu curioso sistema de amor próprio.

Foi munida desses intrigantes pensamentos que ela resolveu quebrar sua auto-promessa, e saiu, três horas da manhã, em busca de algum supermercado vinte-e-quatro horas que lhe vendesse creme de avelã. Ficou reconfortada com a possibilidade de sair para comprar creme de avelã, enquanto colocava um casaco por sobre o pijama e destrancava a porta. Por não ser nenhuma grande teóloga, era fatal sua incerteza quanto a ser um erro ou não ir comprar o creme de avelã, pelo menos se era um erro ou não ir comprar creme de avelã naquela específica vez, que jamais se repetiria. O que lhe reconfortava, porém, era saber, ao quebrar sua auto-promessa, que pelo menos em relação a si mesma estava livre da intransigência da expectativa de repetição.

sábado, 29 de outubro de 2011

Talvez uma intervenção

Se você já leu algumas das outras coisas que escrevi, em vários lugares, já deve conhecer pelo menos algumas coisas sobre mim, algumas coisas que sem dúvida são extremamente dramatizadas pela minha necessidade de dizer algo que apele ao que você sente, que signifique qualquer coisa que você possa entender de uma forma que não cabe a mim explicar se não simplesmente falando para que você sinta. Duas das coisas que você já deve saber sobre mim, é que sou irritantemente sincero na maior parte do tempo e que não consigo chorar.
Mas a verdade é que tinha vontade de fazer poucas coisas além de chorar naquele momento. Eu sei que vai parecer uma verdadeira hipocrisia frente ao que acabei de lhe falar, mas naquele momento só queria chorar. E falar a verdade. Falar a verdade que por algum motivo me escapava, falar a verdade que por algum motivo tinha medo de falar. Medo, sim, e medo de alguma coisa que não consigo sequer discernir mesmo como ideia abstrata. E, em geral, quando algo não existe como ideia abstrata, para mim isso significa que isso não existe de forma alguma.
Espero que você não tenha me entendido mal. Não é como se eu não mentisse, ou não omitisse. Diabo, eu escrevo ficção afinal de contas, claro que eu minto. Mas minto quando me parece divertido, quando me parece que causará uma situação curiosa. Claro que nem sempre estou certo, mas até aí falo a verdade tendo como principal propósito enraivecer as pessoas, ou pelo menos machucá-las, quando não é possível deixá-las com raiva. Mas o fato é que me encontrava naquela situação exatamente pelas mentiras e omissões, não por conta das verdades, e aquilo parecia para mim como sendo o motivo para não me sentir bem. Obviamente não era, a causa era outra, mas se eu não explicar a situação você nunca conseguirá tirar suas próprias conclusões, não é mesmo?
Eu estava deitado, na mesma posição que costumo dormir sempre, com o rosto virado para a esquerda (não para ela) e de costas para o teto. Nessa posição ela conseguiu encontrar sem dificuldades a minha tatuagem “MEMENTO MORI” e a acariciou com a ponta de um de seus dedos (não saberia dizer qual, e não me importaria menos). E foi nesse momento que o peso veio aos meus olhos, que senti vontade de chorar. Chorar porque não era com aquela pessoa que queria estar exatamente naquela noite. Porque tinha levado aquela pessoa ali com mentiras, mesmo que pequenas, com algumas palavras confortáveis e de uma segurança que eu mesmo não tinha e não poderia dar a ela. Porque não tinha falado a verdade para outra pessoa, por medo, não sei nem mesmo de que, como já disse; a despeito dos resultados. Não por acreditar que teria dado certo, mas por ser aquela a coisa mais simples que nunca pensei que não conseguiria fazer, falar. E não, não era medo de ser rejeitado, com isso estou acostumado, seja com verdade, seja com mentiras. E não era medo de perder alguém, nunca dei tanto valor a qualquer coisa no mundo a ponto de ter medo de perdê-la (isso provavelmente é uma mentira, mas é uma mentira honesta, se aconteceu, simplesmente não me lembro), nunca dei tanto valor à proximidade de alguém. E me sinto tão burro, sinto vontade de chorar simplesmente por não ter evitado criar uma pequena chance de ter outra pessoa dividindo a minha cama, uma pessoa que realmente fizesse alguma diferença em estar ali, tocando a minha tatuagem. Esqueci que vou morrer, e que cada vez o momento disso acontecer se aproxima mais. Esqueci que por isso deveria ter falado, não deveria ter omitido ou mentido. E venho esquecendo isso a tanto tempo, no que se refere exatamente a essa pessoa, que não posso deixar de pensar que existe algo de errado aí. É como se ela tirasse meu medo da morte.
Exceto, é claro, pelo fato que eu não tenho medo da morte. Não posso dizer o mesmo sobre o que vem depois, especialmente para uma pessoa como eu, mas isso é assunto para outra intervenção.
Meus amigos sempre caçoaram de mim dizendo que eu não devia querer discutir Goddard na cama. Mas a verdade é que eu provavelmente -simplesmente-  não quero mais ficar em silêncio na cama. Ou pior, discutir coisas das quais não gosto. Eu sempre respondi para eles que era provavelmente isso que eu procurava em alguém quando me apaixonava, alguém com quem pudesse conversar sobre coisas que eu gosto (não, não. na verdade, sobre tudo que passasse pela minha cabeça) e ainda assim quisesse fazer sexo com essa pessoa. E, claro, dizia também que não via problemas em juntar as duas coisas. E não tinha nada que quisesse conversar com aquele pessoa que estava do meu lado naquele momento, nada que não incluísse um dose extremamente grande de palavras vazias para gerar conforto, ou algumas risadinhas, nem mesmo nada sobre o que eu pudesse ser sincero para com ela. Simplesmente ficava ansioso para a próxima vez que teria uma conversa que me deixasse alegre ou simplesmente mentalmente excitado, agora que a excitação física já não dizia muito.
Novamente eu tenho que pedir para que não me entendam mal, para que não achem que quero chegar a algum lugar falando isso, pois não quero. Quando perguntaram a Beckett o que ele queria dizer com “Esperando Godot”, ele simplesmente disse que não sabia, se soubesse teria falado isso na maldita peça. Nem por isso Godot perde seu significado, muito pelo contrário. Virão aqueles entre os que me leem que pensarão que estou sendo prepotente citando Beckett. Se vocês pensam assim, por que leram tudo isso? Nunca mais leiam nada do que eu escrever. São as mesmas pessoas que devem se sentir ofendidas quando sou irritantemente sincero (pois não é nada além disso que acabei de ser agora) e me divertem tanto. E, sinceramente, não me importo nem um pouco se você se ofendeu com qualquer coisa que leu aqui (seja pela falta de sentido ou pelo que for), mesmo que você seja a pessoa que acariciou minha tatuagem enquanto me fazia perceber que nunca sentiria nada por você, nada de especial, ao menos.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Dois poemas

Uma semana de alegrias. Como estou feliz assim, segue um post duplo (dois poemas curtos, prometo - o primeiro, cometido no Rei das Batidas, a espera de um amigo. O segundo, na ECA, após uma tapioca maravilhosa que comi por lá)

I - Poema da Página do Meio

Você, copo meio meio cheio,
é minha testemunha
Que
Ainda que culpado, também sou inocente

Você, copo vazio, atesta com certeza que
Minha sanidade
(apesar de nunca ter sido muita)
Sempre foi e ainda é toda minha

Você, pilha de guardanapos limpos, atesta minha preguiça mansa
Como o faz meu chapéu empoeirado
Mas ta aí uma atestação
Que dispensa documento

Os garçons do lado e
O homem coçando o nariz do outro lado da rua e
O barulho dos carros
São a prova concreta que
A vida segue firme em frente
(E que não dá pra se fazer muito a respeito)

Você, página do meio do
Livrinho de Ideias de Bolso
(que eu tinha esquecido de preencher mais cedo)
É minha testemunha.

____________________________________

II - Ode à Tapioca

Enche minha boca
Doce Tapioca
Mi'as papilas pedem por
Teus pérfidos sabores

Esta minha língua,
Lúdica, não troca
Nada por ti, e se troco
Cai em estertores

- Minto, não protesta
Muito meu palato
Se te troco por sorvetes
Ou por brigadeiros

Mas é muito certo,
Inconteste fato,
Vindo os três servidos juntos
Como-vos inteiros.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dessa vez

O jovem sentou no sofá. Não exatamente enfadado, não cansado, simplesmente entediado. Não reclamava de todo da música alta, não era tão ruim quanto poderia ser, mas se sentia deslocado, nunca fora dos que mais se encaixam nesse tipo de coisa, e daquela vez, sem dúvida se encaixava ainda menos. Geralmente iria para onde as pessoas estavam e dançaria, sem se importar muito com qualquer coisa, simplesmente para não ficar parado, pensando em como não estava se divertindo. Mas dessa vez não iria conseguir, então foi para um sofá num lado mais afastado – e ainda não ocupado pelas dezenas de casais que iriam procurar um sofá algum tempo mais tarde – e fechou os olhos, sem nem mesmo pensar em como não estava se divertindo. Algumas vezes nos sentimos longe demais das coisas, longe demais do mundo, até mesmo para pensar. Estava cansado, não muito, mas pegou no sono sem nem mesmo perceber.
Quando acordou, a primeira coisa que seus olhos encontraram foram os olhos dela. Não sabia o que estava acontecendo, nunca esperaria encontrá-la num lugar como aquele, então não foi completamente inesperada a pergunta “eu estou sonhando?” que fez. E ela acenou com a cabeça concordando, mentindo, mas não seria realmente uma mentira com ele sabendo que estava acordado, se é que sabia. “Então você não vai se importar se eu fizer isso” e beijou-a pela primeira vez.
O escritor parou e olhou para aquilo que tinha acabado de escrever. E não gostou, mas já tinha escrito demais para apagar, então simplesmente rasurou com um grande X por cima e deixou aquilo de lado, poderia servir para alguma coisa mais para a frente. Então voltou a escrever, ainda numa ideia semelhante.
Os dois estavam sentados na sombra. Haviam se encontrado meio que por acaso, e conversado um pouco, ali mesmo onde estavam, mas agora estavam simplesmente olhando para o nada e pensando. Ele estava adorando, mas isso por que gostava dela, é claro. Sua mão esquerda foi lentamente na direção da mão direita dela, até se encontrarem num toque de leve, realmente inocente. Se sentiu como um adolescente – não, não um adolescente, hoje em dia as coisas estão muito diferentes, uma criança – uma criança. Mas os olhares dos dois se cruzaram, e na verdade mais do que isso, ele não conseguiu mais desviar o olhar depois.
“Você sabe o que eu quero te dizer, não sabe?”
E ela acenou afirmativamente.
“E você quer que eu queira dizer isso?”
E ela acenou novamente.
“Mas você quer que diga isso?”
E dessa vez ela negou, ainda com um gesto.
E dessa vez ele ficou quieto, ergueu a mão direita e lentamente, com a ponta dos dedos, tocou-a. Primeiro um dos lados do rosto, passando de leve nos fios de cabelo que caiam, e depois, ainda com a ponta dos dedos e ainda com suavidade, sentindo o formato do rosto, dos lábios. Principalmente os lábios, sentindo o próprio formato, o significado, tudo. Estavam agora frente a frente, o braço dele esticado, apenas as pontas tocando os lábio dela. Era quase como se os dois estivessem….
Parou de escrever novamente, e novamente fez um X sobre as coisas que havia escrito. E foi só nesse momento que percebeu uma coisa, percebeu a enorme dimensão de como era ficcional tudo aquilo que escrevia, percebeu – finalmente – que nenhuma daquelas memórias era sua, nunca foram, e agora nunca poderiam ser, agora elas eram memórias do papel, eram palavras, eram coisas que nunca existiram e que agora nunca mais poderiam ser realmente experimentadas, especialmente não por ele, não daquela forma. Diabos, eram coisas que nem sequer poderiam ser mais emuladas, eram coisas que já existiam, mas como sombras, eram fumaça e espelhos – finalmente entendia o que outros escritores, compositores e afins queriam dizer com essa expressão – percebeu que quanto mais escrevia, menos vivia as coisas sobre as quais escrevia, e mais as coisas que vivia se tornavam pano de fundo para o que escrevia. Quanto mais escrevia, mais dependia daquilo que escrevia, quanto mais escrevia, mais dos seus sonhos matava.
Tudo que escrevia era muito perfeito, muito idealizado, eram os sonhos que tinha todas as noites quando dormia, sonhos que agora nunca seriam reais para ele, nunca tocaria os lábios de alguém daquele jeito. Melhor seria escrever sobre o nada, sobre a própria escrita, sobre coisas ruins, não importa, desde que deixasse aqueles sonhos continuarem sendo sonhos, continuarem não sendo palavras ou papel, continuarem no lugar que era seu de direito, as noites e o futuro e o talvez.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Mágico ataca novamente

Mas, no fim das contas, o número foi um sucesso. O Mágico estava inseguro, a princípio, sobre as consequências - e possíveis paradoxos - que poderiam advir do truque da Viagem no Tempo.

sábado, 1 de outubro de 2011

As primeiras palavras do Universo

Seguindo a Emannuelesca tradição de algum autocomentário antes do texto propriamente dito, emendo aí umas palavras ou duas:

Me perdoem o sem número de pretenções poéticas que venho lhes jogando estes tempos. Confesso que prefiro (e confio mais no meu taco quando se trata de) escrever estórias, mas minha cabeça não tem funcionado suficientemente cartesiana para que a forma adequada de um conto ou coisa do tipo se manifeste.

Vai lá o poema, em estado quase que bruto (que minha alma, completamente bruta, não fica tão bem no papel).

________________________________________________________

Posto que era pira, havia chama
Não havendo mais amor, ardeu raiva
Por ser pouco o combustível, ardeu morna
A calma raiva dos assassinos.

Entre estantes velhas e livros de poeira
E ideias ambíguas e sentidos de loucos
E palavras que só faziam sentido em seu idioma
A moça atordoada procurava entre...

Posto que havia mentira, havia dúvida,
Não havendo mais certeza, ardeu fé
Por ser muita a desconfiança, creu suave
A suave crença dos que não pensam muito

... estantes velhas e livros de poeira
E ideias ambíguas e sentidos loucos
Palavras que fariam sentido para
Seus sentidos, que lhes desmentiam as crenças adquiridas...

Posto que havia fúria, havia calma,
Posto que havia o alvo, havia escárnio
Sendo incertas as certezas, deixou-se, leve
Morrer de novo na irmã correnteza

Entre estantes velhas e livros de poeira
E ideias ambíguas e loucos sentidos
E as primeiras palavras do Universo.

sábado, 24 de setembro de 2011

As pessoas e o Sexo.

Oi, Emannuel aqui. Algumas observações são necessárias sobre esse texto, acho. Ele ficou grande, e provavelmente é o mais explícito que já escrevi sobre o tema aqui no Talvez Blog. Os personagens são os mesmos das últimas estórias que escrevi aqui, mas não é uma continuação, na verdade é difícil dizer se acontece antes ou depois ou durante. Eu sempre considerei a personagem feminina como sendo a protagonista, mas, por conta da minha falta de habilidade (e mais alguns detalhes óbvios), não pude escrever a visão dela da forma como gostaria. Também espero que a forma que o assunto é abordado aqui não seja ofensiva para você que vai lê-lo. Acho que está bastante suave e não-explícito, mas acho melhor avisar que é, realmente, um texto sobre sexo. Era um texto completamente diferente e inconcluso, mas achei que ficava bem com esses personagens.
***
Os dois estavam na cama. Já era noite, mas ainda cedo, nenhum dos dois tinha sono, estavam simplesmente lendo, vez ou outra fazendo algum comentário engraçado ou sarcástico. Havia sido um daqueles dias quentes, quentes demais para dar vontade de fazer qualquer coisa além de ficar na cama, apesar de quente demais para conseguir dormir. A noite deixara o clima mais agradável, é verdade, mas já era tarde demais para começar a fazer alguma coisa fora da cama, preferiram continuar ali fazendo a mesma coisa.
Ele foi o primeiro a se cansar da leitura, como sempre. Ele amava os livros, é verdade, se perdia para o mundo externo e se afundava completamente na estória, tanto quanto é possível que alguém faça, algumas vezes se ligava tanto a uma estória que tinha que escrever, criar estórias que fossem suas para tentar redescobrir a própria identidade, para criar alguma ligação entre si mesmo e o mundo real, ou ao menos um mundo que não fosse aquele das estórias que estava lendo. Mas o fato é que ele se cansava (mental e oticamente) muito mais rápido que ela, apesar de reconhecer que ela precisava de mudanças vez ou outra tanto quanto ele (ela nunca estava lendo apenas um livro, então mudava de um para outro), talvez até mesmo mais. O fato é que ele parou de ler e ela não. Ele ficou ali, na cama, quieto, sem querer atrapalhar a leitura dela, simplesmente pensando. E olhando para ela de tempos em tempos, simplesmente para apreciar a beleza da expressão séria, dos cabelos soltos e dos centímetros –infinitos- de pele à mostra. Parecia um adolescente tímido que se vicia em olhar para a pessoa que gosta e pensa fazer isso furtivamente.
Ela, obviamente, percebeu, e não pode evitar um daqueles sorrisos que eram tão característicos dela, com o rosto ficando levemente rosado, não muito, com um pouco de malícia e um pouco de inocência. Quando os olhos dele se encontraram com os dela, quando viu no rosto dela aquela expressão, não pode –e não quis- controlar uma ereção. E deixou de lado o adolescente tímido.
Ela ainda tinha o livro nas mãos e o sorriso no rosto quando ele começou a beijar, lenta e suavemente, várias partes de seu corpo: as pernas, ao longo dos braços, os ombros (muitas vezes), os seios (com também suaves e lentas mordidas), a barriga, a parte interior das coxas. Até aí cada pelo do corpo dela já estava eriçado, e começou a colocar de lado o livro que lia. Enquanto ele finalmente chegava ao clitóris o sorriso também foi colocado de lado e deu lugar a outra coisa.
Apenas depois disso foram se olhar nos olhos novamente, ele aproximando seu rosto do dela aos poucos, até se beijarem. Muitos casais teriam nojo de fazer isso, mas ela não tinha esse tipo específico de aversão, assim como ele não tinha quando acontecia o contrário. Aquele, provavelmente, foi o momento mais perfeito para ele, mais até do que os que viriam a seguir, porque naquele momento – enquanto passava a senti-la por dentro – ela mordia suavemente o lábio inferior durante o beijo molhado, os joelhos dela se arqueavam e dobravam, embora não demais, e ele sentia as pontas dos dedos dela pressionando suas costas, as unhas, apesar de não muito longas, certamente deixariam marcas na pele por alguns minutos. Tudo era suave.
Ela pressionou um dos lados e ele prontamente entendeu. Os dois rolaram juntos na cama, ele ficando por baixo, ela por cima. Era a posição ideal para os dois, a que mais fazia com que se sentissem bem. Nessa posição podiam se beijar, se olhar nos olhos, sorrir um para o outro, conversar. Conversavam naquele mesmo momento, mas falavam coisas que não cabe aqui dizer.
As mãos dele se encaixaram nos seios dela, os mamilos se enrijecendo enquanto acariciados entre os polegares e os indicadores. Depois de alguns momentos e mais outros movimentos, uma das mãos dele desceu e foi se apoiar no quadril dela, enquanto a outra subiu e trouxe o rosto para mais perto. Ela sentiu algo de diferente naquelas mãos, viu algo de diferente naqueles olhos; e ouviu algo de diferente quando ele sussurrou com uma voz pausada a pergunta – ou seria um pedido? – “você me ama?”. As partes do seu corpo que não dependiam do seu uso da razão continuaram a fazer o que estavam fazendo, o resto, a parte de dentro, parou.
Ela precisava pensar para responder uma coisa dessas! E naquela situação ela não iria conseguir pensar direito, não teria o tempo necessário e não sabia por quanto tempo ele aceitaria ficar sem uma resposta, se é que ele realmente queria uma resposta. Ela nunca se importara com essa palavra a ponto de pensar se ela podia ser usada entre os dois, ou em qualquer situação, se fosse ser completamente sincera. Nunca havia falado para ninguém o que ele –aparentemente- queria que ela dissesse agora. Eram tantas as coisas que precisavam ser pesadas e medidas, consideradas, para chegar a uma conclusão dessas, e ela nem mesmo sabia a qual conclusão poderia chegar. Ela tinha certo medo de que ele pudesse sentir, que ele conseguisse sentir o que ela sentia por dentro. E ela sabia que gostava dele, gostava do que estavam fazendo antes dele fazer essa pergunta estúpida e maliciosa. Não, ela não amava, não sabia o que era isso, o que ele queria, não sabia o que ela própria queria. Ela fez a mesma cara séria que fazia enquanto lia e, para que ele não percebesse, o beijou. Ele deve ter interpretado isso como uma resposta positiva, ela pensou; ela conseguia sentir que era isso que ele pensava. Era culpa dele se estava interpretando isso dessa forma, ela não tinha culpa, não tinha o que fazer sobre isso, não antes de ter tempo para pensar. E demoraria até que fosse ter tempo para pensar.
Tentou esvaziar a cabeça dessas coisas, esquecer isso, voltar a se concentrar nas mesmas coisas que a ocuparam a alguns segundos atrás – isso não deveria ser tão difícil –. E conseguiu, embora apenas em parte. Enquanto continuaram ali juntos não conseguiu mais conversar leviandades como em geral. Conversaram através do corpo, e talvez tenham se entendido assim melhor que de qualquer outra forma que tentassem. Mas ainda assim, quando ele finalmente adormeceu, muito depois, continuou dentro dela. Ela não conseguiu tirar ele de sua cabeça, e pareciam ser duas pessoas diferentes a que estava ali com ela na cama e a que estava nos pensamentos durante a noite em claro. Ficou quieta na cama, quase que paralisada. Se levantasse iria acordá-lo e não queria pensar no que aconteceria se começassem a conversar naquele momento.
sylvia-plath-3uvz7kxob-145275-500-136

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Lobo

Rosne, uive, ladre, lobo!
Que a noite, enfim, é muito curta.
Deixe a lua ser tua consorte,
Espera o sol bater na tua cara,
Quando o vir, lobo, memento mori.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Pessoas e o fim

Realmente acho que todos os textos da série “pessoas e …” podem ser lidos separadamente, mas em conjunto eles devem fazer muito mais sentido: primeira parte, segunda parte e terceira parte. Essa série foi uma tentativa de fazer uma coisa um pouco diferente do que eu geralmente faço, mas acabou não ficando tão diferente quanto eu esperava. Vou fazer mais estórias para esses personagens, eles são genéricos o suficiente para render muitas coisas para o blog, mas os outros vão ser completamente independentes, então esse é provavelmente o fim de uma pequena estória.
***
Ela não demorou muito para acordar, afinal, já tinha dormido bastante, não a muito tempo. Ele ainda estava escrevendo. Ela levantou e lhe beijou os cabelos, ele quase não percebeu. Ela foi andando calmamente para a sala. Colocou outro disco para tocar e sentou no grande sofá que ela mesma tinha escolhido, olhando pela janela. Já tinha parado de nevar, lá embaixo, na rua, provavelmente seria bem difícil saber que tinha sequer nevado mais cedo, o Sol, apesar de tímido já devia ter derretido tudo, não fora nenhuma nevasca afinal de contas.
Ela se sentia muito idiota naquele momento. Não entendia como ficara tão apavorada mais cedo. Não era pessoa de perder o controle, não importando como ou quando. E especialmente não era pessoa de ficar aflita sem nenhum motivo real, só com medos que não tinham fundamento, medos infantis. Não conseguia entender como aquilo podia ter a amedrontado. Se sentia como se por alguns momentos tivesse perdido o controle sobre o que era e o que queria. E não soube realmente dizer se aquilo era uma coisa boa ou ruim.
Ela ficou ali, pensando nisso até finalmente conseguir espantar as ideias de sua mente. Já estava anoitecendo quando ela foi para a varanda, simplesmente olhar as cores do céu e pensar no mundo. Gostava das cores do começo da noite ainda mais do que das cores do fim da tarde. Pensava em todas as coisas que aquelas cores significavam para ela; o carmim que se arroxeava e o azul, cada vez mais escuro conforme se aproximava das estrelas. Ela ouviu quando ele se aproximou, por mais que estivesse perdida em pensamentos. Ela o ouviu enquanto ele trocava o disco, mas não olhou para trás, não tirou a atenção das estrelas, não queria voltar aos pensamentos que tinha afugentado mais cedo. Ele ficou ao lado dela, sem realmente falar coisa alguma. Ela sabia que ele não estava olhando para as estrelas como ela, mas sim simplesmente ouvindo a música, mas também pensando, sem dúvida, talvez até mesmo em coisas parecidas, mas isso ela nunca ia saber, e gostava das coisas assim. Uma coisa que ela sabia é que ele nunca começaria uma conversa naquela situação, ele nunca atrapalharia quando soubesse que ela estava pensando, então a tarefa ficou para ela.
“Então você decidiu escrever alguma coisa diferente… fantasia?” Ela conhecia ele o suficiente para estar quase certa da resposta mesmo enquanto fazia a pergunta.
Ele sorriu, estava esperando que ela falasse. “Não, acho que vai acabar sendo um policial, mas ainda não tenho certeza”.
Foi a vez dela sorrir. Estava surpresa; os dois sabiam que ele não era bom em deixar os leitores em suspense. Ele escrevia coisas que revelavam, não que ocultavam. Mas saber isso a deixou um tanto feliz, por mais que não soubesse dizer o porquê. Mas agora era a vez dele falar, e ela conseguia sentir que ele tinha algo para falar.
“Sabe, com o livro novo eu vou ter que passar alguns dias fora”. Ela não entendeu imediatamente onde ele queria chegar, então esperou que continuasse. “Eu não vou te pedir em casamento ou algo assim, mas você podia aproveitar esses dias e trazer suas coisas para cá, mudar um pouco a casa, talvez”.
Aquilo a deixou realmente surpresa, e percebeu que estava se surpreendendo muito nos últimos dias. “Mas o que você quer dizer com isso? O que você acha que isso vai significar para nós? O que vamos fazer sobre ver outras pessoas? E…”
Nesse momento ele a interrompeu, e ela não sabia exatamente se ele estava respondendo ou simplesmente cantando com a música de fundo quando disse “I Don’t mind, if you don’t mind” e se afastou sorrindo, mas ela sabia que aquela seria toda a resposta que teria, pelo menos por enquanto.
E ela continuou lá, olhando para o céu que agora estava completamente escuro, com pontinhos brilhantes e sem lua. E ela não conseguiu se impedir de pensar em como seria as coisas daquele momento em diante, não conseguiu se impedir de ficar curiosa. Parecia uma coisa nova, e ela percebeu que gostava de ser surpreendida.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Suco Secreto

Você já deve ter tomado groselha. É um negócio gostoso, principalmente aos oito anos. Mas quando eu tinha oito anos, groselha não era groselha, pelo menos não na casa da minha avó.

Ela aparecia na sala, quando íamos jantar seu famoso arroz com franguinho, com copos cheios, dizia para os netos, de Suco Secreto. Era maravilhoso. Mais saboroso que suco de uva, sem a consistência incômoda do suco de laranja, com aquela cor bonita (principalmente contra a luz, olha, o que será que ela põe aí?). E era, sem que soubéssemos, groselha.

O neto, ao completar onze anos, dizia para nós, aprenderia com ela mesma a receita do Suco Secreto. Ah, tempo de espera cruel e dolorosa. Lá estávamos, em outro dia, sentados na sala, comendo arroz, franguinho, talvez umas batatas fritas, assistindo a algum filme que ela tivesse gravado pra gente. Ela vinha pelo corredor e chamava um de nós.

Não nos dávamos conta na hora, mas o aniversário dele tinha sido o que? Uma semana, talvez duas, atrás? Só quando eles voltavam, três cenas do filme depois, trazendo nas mãos copos de Suco Secreto para todos, é que percebíamos.

O olhar com a humildade orgulhosa dos sábios em seu rosto não nos deixava dúvida. Ao chamado de nossa avó, uma criança, ignorante dos Segredos do Suco, havia deixado a sala. Voltara para ela um Homem Completo.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Naquele dia, a Literatura pegou ela de surpresa. Não teve jeito. Tentou coca, chocolate, dois filmes. Nada lavava a coceira pra longe da ponta dos seus dedos.

Tentou dirigir por meia hora, para o segundo mercado vinte-e-quatro-horas mais próximo da sua casa, e comprar xampu e detergente, que já estava quase acabando. Não deu certo:

No mercado, se viu no espelho, com aquele casaco escuro. Estava bonita, droga. Maldita madrugada, em que até ela, até ela, se achava bonita com um carrinho de supermercado e uma blusa velha. Porcaria de blusa velha e lírica.

Achava muito desconfortáveis essas noites em que a Literatura vinha e lhe atacava de surpresa. Tinha uma reunião amanhã cedo. Tinha que encher o pneu do carro. Tinha que lavar a louça. Meu Deus!, aquela louça ia ganhar vida e começar a se cuidar sozinha, se ela não fizesse nada a respeito!

Chegou em casa e não guardou nem xampu nem detergente, nem o monte de biscoitos que tinha comprado de autopresente não sabia por quê. Deixou as sacolas em cima da mesa da sala. Também não lavou a louça. E não dormiu.

Sentou na cama e pegou o bloquinho de papel que sempre deixava ao lado. Desencavou uma caneta de baixo do colchão – as canetas estavam na casa inteira, menos no porta canetas! Por que!? – Escreveu de um fôlego, como não costumava fazer.

Era uma estória sobre Dragões, Princesas e um violão mágico. Não tinha nada a ver com as ideias que vinha juntando por dias. Não era profundo. Não era calculada. Não era o que ela queria estar escrevendo. Não servia nem de exercício.

A Literatura é uma filha da puta, ela pensou. Mas Rocinante, o Cavalo Falante, respondeu-lhe, de dentro das folhas, que ela que era uma mal-agradecida. Ora, Rociocinava, tem letras onde antes era branco, tem ideias onde tinha nada, não é profundo, mas é bonito, e, principalmente, agora tem eu! Quer pedacinho mais bem escrito de Cavalo Falante?

Mas ela já estava dormindo desde a parte das ideias onde não tinha nada. Não deu nem tempo de fazer a revisão.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Pessoas e o tempo.

Se não tiver lido os textos que antecedem esse, primeiro leia isso e então esse aqui. Os próximos não vão ter imagens tão melosas, prometo.
***
Quando os dois acordaram estava nevando.
Nunca nevava. Ela adorava a neve, e isso só fez com que a sensação de estranheza aumentasse ainda mais. Quando eles se conheceram estava nevando, mas aquilo fora muito, muito longe de onde eles estavam hoje, outro mundo, outra vida. Ultimamente, sempre que entrava naquela casa as coisas pareciam estar certas, e isso a deixava com medo. Tudo estava certo, mas estava menos humano. Ele parecia distante. Nem conseguia ter certeza do que achou de ir para a cama com ele naquela manhã, exceto que pareceu certo, pareceu perfeito.
Três anos antes, quando se conheceram, numa exposição, por intermédio de amigos em comum, nunca imaginaram que fossem estar compartilhando a mesma cama tanto tempo depois. Eles sabiam que iam compartilhar naquela noite, mas pouco mais do que isso.
Não era uma exposição dela, ficaram em um dos cantos conversando e fazendo piadas sarcásticas das tais obras de arte. Ela estava fazendo uma grande viagem, uma forma de buscar inspiração em vários lugares do mundo. Ele era daquele pedaço de lugar nenhum. Se deram bem, afinal é isso que importa. Dois dias depois ela continuou na viagem, ele ficou.
Só foram se ver novamente alguns meses depois. Ela tinha parado de viajar e ele foi atrás da única editora que demonstrou algum interesse no que escrevia. Ela ofereceu uma cama para ficar, a cama dela, contanto que não por muito tempo; ele logo achou um lugar para ficar, nada comparado com a casa que morava hoje, mas nem por isso ruim. Só quando seus livros pareceram interessar um grupo de pessoas esquisitas é que conseguiu uma casa melhor, e deixou de lado as preocupações em correr atrás de editoras, agora tinha que correr atrás dos prazos. Nunca ficou grande o suficiente pra precisar de assistentes, nem teve crises criativas que ela não o ajudasse a ultrapassar.
Quando finalmente conseguiu essa casa eles já tinham plena consciência que estavam em um tipo de relacionamento, mas até hoje não sabem exatamente que tipo é esse. Se veem quase todos os dias, exceto quando ela tem que viajar, ele raramente faz tours. Mas o tempo que passam separados nunca foi um problema, pelo contrário, sempre lidaram bem com isso, como sempre lidaram bem um com o outro.
A impressão que ela teve naquele momento foi exatamente que precisava de algum tempo longe dele.
Ele tinha acordado antes dela, mas ainda estava ali na cama, com cara de sono e olhando para a neve. Ele gostava da neve, e ela não sabia se era porque aquilo o lembrava de casa ou simplesmente porque era neve. Ele não gostava do lugar onde tinha nascido, pelo menos não gostava mais do que de onde morava agora, mas ela sabia que as pessoas podem ser bem irracionais sobre essas coisas.
“Bom dia” Ele falou sorrindo quando finalmente tirou os olhos da janela e percebeu que ela tinha acordado.
“Bom dia” Ela respondeu se sentando na cama. “Não nevava a muito tempo.”
Ela percebeu o quanto ele se distraía com aquilo pela forma que ele respondeu, muito mais desligado do que de costume. “É verdade, nem me lembro de quando foi a última vez que vi neve”.
“Eu nunca tinha visto até o dia que nos conhecemos”. Aquilo chamou a atenção dele, quase como se ele tivesse esquecido daquilo, quase como se ele não fosse o mais sentimental dos dois.
Depois de uma pausa ele disse, se levantando da cama: “Tenho que escrever”.
“Mas já? Você acabou a pouco tempo, já mandou para a editora? Ou vai revisar?”
“Você sabe que eu nunca reviso, mas a neve me inspira, você podia vir comigo”. Ele respondeu sorrindo.
Ele colocou música para tocar e ela se deitou no colchão enquanto ele se sentou frente à mesa e começou a datilografar.
“Você teve alguma ideia nova?” Apesar de não dar para ver a neve daquela janela, estava frio, ela se enrolou com centenas de cobertores e não esperou que ele respondesse, mas aparentemente ele estava mais conversador do que de costume.
“Não exatamente. Mas lembra quando você me falou que as minhas estórias estavam começando a parecer com a nossa vida? Não gosto disso, quero mudar, quero provar, para mim mesmo, que minha criatividade não se limita às coisas que eu conheço”.
“Entendo, para mim é muito diferente, eu simplesmente expresso o que sinto, você além de fazer isso tem que encaixar uma história”.
“Não sei se é tão diferente assim, a história geralmente vem das próprias emoções que tento expressar. O problema é que, por mais que seja infinita a quantidade de estórias para cada coisa que se quer expressar, não gosto da ideia de estar sempre escrevendo sobre as mesmas coisas”.
Ela sabia daquilo, era provavelmente a coisa na qual mais se assemelhavam, nenhum dos dois gostava de ficar preso para sempre às mesmas sensações. Aquilo a fez pensar em como as coisas entre eles estavam durando muito, ela nunca esperou que fossem demorar tanto. Ele, agora, dizia que sempre imaginou que o que havia entre os dois era algo muito grande. Ela não achava que ele realmente acreditasse nisso, mas quando ele dizia esse tipo de coisa não conseguia conter um sorriso.
Agora ele já havia cansado de como esse tipo de coisa se refletia na arte dele. E ela tinha medo que isso quisesse dizer que ele estava se cansando dela. Na realidade ela nunca pensou que ele pudesse se cansar antes dela. A música havia acabado e ela dormiu com o som dos tipos no papel, dormiu pedindo para que quando acordasse não estivesse mais apaixonada.

sábado, 2 de julho de 2011

Pessoas e coisas.

picc-xsv18wvc-96041-420-534
Para entender melhor esse texto antes leia isso.
***
No outro dia ela voltou bem cedo. Tentou encontrar algum restaurante japonês aberto no caminho mas não encontrou. Ele teria que se contentar com Yakissoba. Ia ficar feliz de usar os hashis.
Ela sabia o que ia encontrar quando abriu a porta da casa. Ele nunca lhe dera a chave de verdade, mas algum tempo atrás ela tinha pegado uma cópia emprestada e nunca surgiram motivos para devolver. Ainda não tinha amanhecido de verdade, mas quando ela entrou no lugar e encontrou todas as luzes apagadas soube que ele não saíra do quarto onde escrevia desde que escurecera.
Pelas frestas da porta viu que a luz do quarto estava acesa. Abriu a porta sem bater. Era provavelmente o quarto menos mobiliado da casa. Um colchão no chão. Uma estante de livros, uma mesa pequena e uma cadeira. A janela pequena  estava tão hermeticamente fechada pelas persianas que não deixava perceber que estava amanhecendo. Sobre a mesa uma máquina de escrever, papel, caneta, corretivo e um caderno de anotações. Ele estava deitado lendo alguma coisa.
"Já? Mas que horas são?"
"Está amanhecendo, seu idiota. Eu te trouxe comida."
Ele se sentou e começou a comer imediatamente. Dava para ver que estava com fome. É bem provável que as coisas que ele tinha deixado separadas para comer nunca tenham sido tocadas. Ela deitou no colchão, se aninhando no lugar onde ele estava antes. Era pequeno, mas ela ainda sentiu ele se deitando ao lado dela antes de adormecer completamente.
Quando ela acordou ele não estava mais lá. Abriu as persianas. Se ele tinha saído do quarto é porque tinha terminado o texto, e não ia voltar a entrar ali para escrever naquele dia. Prendeu os cabelos com os hashis que ele não tinha chegado a usar e foi ler as páginas que ele tinha escrito. Não foram muitas, não era muito prolífico, mas ela também não era com nada que fazia. Já tinha feito algumas exposições, mas nunca produzira rápido. Dirigira dois filmes, um independente que no qual não tivera problemas por conta do atraso e outro no qual tivera muitos problemas com datas, desde então tinha decidido dar um tempo com o cinema. Pensava em gravar um disco em alguns anos, mas por enquanto isso era só uma vontade. Sabia que ele também queria fazer isso, talvez fizessem juntos, ele poderia escrever coisas para ela.
Terminou de ler e saiu do quarto. Encontrou com ele mexendo nos vinis.
"Suas estórias estão cada vez mais parecidas com a nossa vida ou é o contrário?"
"Você sabe que para mim a vida só existe para servir de fundamento para a arte, eu já te disse isso, não?"
"Não, mas você escreveu em algum lugar."
"Como foi na galeria?"
"Como sempre é, cansativo, essa não é a parte que eu gosto."
"Desculpe por não ter estado lá."
"Não se preocupe, você já viu tudo que estava lá mesmo."
Ele colocou um dos discos para tocar e foram para a varanda. As vezes as pessoas podem pensar que varandas em casas de cidade não são tão aconchegantes quanto a de outros lugares, mas na verdade o que acontece é que as pessoas da cidade normalmente não se dão a chance de aproveitar a varanda que têm, quando têm.
Era para lá que iam quando ela queria pintar. Ficavam ouvindo a música vindo de dentro de casa e o barulho vindo de fora. Ele simplesmente ficava lá, sem fazer nada, talvez pensando, talvez não. No começo ela não gostava de pintar ali, não se sentia em casa, e achava estranha a atitude dele, mas com o tempo deixou isso de lado. As vezes achava que gostava mais daquela casa do que da sua própria.
"Você não tem a impressão de que isso tudo é muito perfeito? Muito vazio?" Ela perguntou. "Algumas vezes não consigo entender o que é isso que nós fazemos."
"Tudo é perfeito, dependendo de como você olha. O que nós fazemos é o que somos de verdade. Não teríamos nos conhecido se não fosse por isso."
"Mas não nos conhecemos, tudo que eu sei sobre você é que não gosta de dar nomes aos seus personagens."
"Isso não é verdade, você sebe muito mais sobre mim do que isso. Mas a verdade é que essa é a única coisa importante para se saber sobre mim."
Ela deixou a pintura secando, infinitas espirais em tons de vermelho e laranja, quase amarelo em algumas vezes, e os detalhes pretos em forma de V, talvez pássaros. Entrou na casa, só precisava de um copo de água. A música ainda tocava. Não a mesma, mas já não lembrava mais o que estava tocando no começo. Ela ouviu ele se aproximar, mas não se moveu. Ele soltou os cabelos dela e beijou-a no pescoço. Ele queria ir para a cama com ela. E, naquele momento, aquilo era tudo que ela precisava saber sobre ele.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

A solidez da lâmina é mais bela
Que a aspereza da areia.
O ferrão
É mais sincero que a teia.

Não nos esqueçamos que os desejos,
e as tempestades,
Parecem revirar moinhos e mundos e corações
Mas
No fim das contas
São só mais um pedacinho do verão.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Pessoas e lugares.

Ele estava na cozinha. Algumas panelas no fogão e luz da manhã entrando pela janela. Estava fatiando alguma coisa que ela não conseguia ver o que era.

Ela estava a alguns passos de distância, sentada à mesa, vestindo apenas uma das camisas dele. Estava daquele jeito porque isso a fazia sentir como em uma cena de filme. Talvez uma comédia romântica, gênero do qual ela não gostava muito, mas talvez de um drama, e ela adorava dramas.

“Isso parece uma coisa tirada de uma das minhas estórias”, ele falou. E ela percebeu que era verdade.

“Duas pessoas, um lugar pequeno… Não dizem que os melhores escritores são aqueles que conseguem aproveitar bem pouco personagens ao invés de ficar criando vários para preencher lacunas?”

“Acho que é verdade, mas duas pessoas nem sempre são pouco, especialmente para um conto ou algo assim”.

Uma pequena nuvem de vapor começou a se formar, e ela conseguia sentir o cheiro de café. Sorriu.

“Mas nas suas estórias as pessoas sempre são silenciosas, e nunca é tão claro quanto hoje, é sempre tarde, ou uma manhã cinzenta….”.

“Hahaha, é verdade, eu não sou muito bom em fazer as pessoas falarem, sempre acho que fica artificial quando eu tento, e eu prefiro o cinza”

Podia ser verdade, mas, se fosse, ela não conseguia entender o porquê dele ter janelas tão grandes. Grande parte de uma das paredes da cozinha era uma grande vidraça, quase com o uma parede de vidro. O céu estava azul e o Sol entrava sem nenhuma interrupção. Na sala havia uma parede parecida, e uma grande varanda na entrada. Mas no lugar onde ele escrevia era sempre cinza, na melhor das hipóteses. Pela casa também havia pelo menos uma vitrola velha e dois aparelhos de som mais modernos, que além de tocar vinil também aceitavam CDs e MP3. Quando ela o conheceu, e mesmo quando conhecia apenas o que ele escrevia, já imaginava os rádios, e também os livros por toda parte, mas nunca teria pensado nas janelas. Nas estórias dele os quartos e as casas sempre falavam muito sobre as pessoas, agora ela ficava imaginando o que as janelas diriam sobre ele.

Ele colocou uma xícara de café para ela e voltou a se concentrar em fatiar seja lá o que fosse. Ela não gostava tanto de café, não tanto quanto ele, mas gostava das xícaras grandes, arredondadas. Ela havia ficado muito feliz quando ele escreveu uma linha rápida em uma das estórias sobre essa mania dela.

Eles tinham se conhecido alguns anos antes, quando ele ainda não era um escritor de verdade, mas por algum motivo ela já tinha lido coisas que ele tinha escrito. Mas não foi realmente isso que o impressionou, ela era muito mais artista do que ele, de corpo e alma, e não conseguiu não ficar encantado por isso. Compartilhavam algumas manias, apesar de terem muito mais diferenças do que semelhanças, mas se davam bem o suficiente um com o outro para evitarem ir para a cama depois de um tempo.

“Não fique aí sem falar nada, o que você está fazendo? Você tem planos para hoje?”

“Estou deixando algumas coisas meio prontas para mais tarde, vou ter que escrever, lá na editora já estão me enchendo o saco.”

Ele sempre ficava um pouco nervoso quando os prazos estavam acabando, mesmo que ainda faltasse um tempo e não estivessem realmente tão preocupados assim com ele. Ela se levantou e foi ajudar, aproveitando para comer um pouco das coisas que ele esquecera de coloca na mesa quando serviu o café.

“Você devia voltar para a cama. Você escreve melhor descansado, e à noite. Se você quiser amanhã de manhã venho aqui ver como você está e te empurro para a cama. Ah, e vou passar na livraria mais tarde, se quiser posso te trazer alguma coisa.”

“Não, acho que tenho tudo que vou precisar aqui, muito obrigado. Não falta muito para acabar, queria terminar cedo para tentar te ver mais tarde na galeria.”

“Hahaha, você não vai conseguir terminar hoje, e não precisa se preocupar com a galeria, você pode ir outro dia.” Ali, lado a lado, se beijaram. “Devíamos fazer um filme sobre nós”.

“Um filme não, não tem emoção suficiente para um filme, mas talvez uma história…”

sexta-feira, 17 de junho de 2011

As Fantabulosas Aventuras do Mágico

“Isso, Majestade, venha aqui, por favor” o Mágico e mais quatro seguranças do tamanho de gorilas ajudavam a Rainha a descer do camarote até o palco. “Não, não, preciso que você fique com a coroa… Isso. Agora entre nesta porta.”

Eram duas grandes caixas vermelhas, separadas uns dois metros uma da outra. A Rainha entrou na da direita, o Mágico, na da esquerda. Em menos de três segundos ele saiu, ao invés da cartola, a Coroa Real na cabeça.

Os nobres aplaudiram efusivamente, apesar da quebra do protocolo. Mal podiam esperar pra ver Sua Majestade com um chapéu sem qualquer tipo de pena ou pedra preciosa.

“Vocês vão observar agora,” disse o Mágico alegremente, enquanto abria a outra caixa “que sua Rainha não está mais aqui!”

E era verdade. Caixa vazia. Todos assustados. Uma moça desmaiou na platéia, e pelo menos dois monóculos foram ao chão. “Em três dias, quero entregues em meu cofre na suíça um bilhão de libras esterlinas, Kate Beckinsale, um fio de verdade da barba do Sean Connery e a Cornualha, ou vocês nunca terão sua Rainha de volta!”

Disse isso e desapareceu.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Soneto à Anônima versejação

Úmida folha em chão seco de mitos
Basta um só vento que longe te leve.
És carne, és sonho, idéias e neve,
Campo de sonhos ainda inauditos.

Fosse eu dos grandes poetas peritos,
Far-te-ia a rimas, precisas e breves,
Para dizer-te “Oh, folha, releves!,
São campos secos, mas ainda bonitos”

É, porém, rouca e pueril minha musa:
Falta sentido e paixão duradoura,
Mata-me a idéia uma vírgula intrusa.

Queria ser qual tú, encantadora
Plena da arte que a nada recusa,
Úmida folha de Anônima autora.

sábado, 21 de maio de 2011

Piano

Há algumas semanas colocaram um piano na estação de metrô que costumo ter de usar todos os dias. É um projeto até interessante, o piano não é ruim e seu uso é livre, sem frescuras. Todos vocês já devem saber que tenho alguns hábitos noturnos, e mesmo que não os tivesse, sou obrigado a pegar um dos últimos metrôs para conseguir chegar em casa depois de sair da Universidade. Ah, nesse ponto provavelmente seria legal eu explicar que esse texto, extraordinariamente, é verídico - Ao menos em grande parte –, diferentemente dos que costumo escrever aqui, que são pura ficção, com apenas uma ou duas virgulas realmente minhas. Pois bem, o fato é que é verdade, e como verdade na vida de alguém não muito excepcional como eu, não tem nada que vá chamar muito a sua atenção, creio. As histórias realmente boas são pessoais demais para publicar aqui. Mas são essas coisas pequenas e em geral não-importantes que aquelas pessoas que escreviam, já muito tempo antes de eu juntar letras em palavras e palavras em frases e frases em textos de qualidade inferior, chamavam – e ainda costumam chamar, até onde sei – de epifania.

Mas voltando ao assunto. Todos os dias passo na frente daquele piano, quase sempre uma vez durante o dia e outra pouco antes do metrô fechar. Durante dia sempre tem alguém martelando as teclas dele, alguns com habilidade outros sem. Eu mesmo já arrisquei algumas notas mal-encadeadas baixinho, para ninguém ouvir, e olhando para os lados, como que fazendo aquilo na surdina. À noite a situação muda, quase sempre não tem ninguém tocando.

Algumas vezes tenho a sorte de voltar mais cedo, não muito, apenas alguns minutos. Numa dessas vezes, enquanto descia a escada rolante consegui ouvir as notas. Era uma música simples, mas nem por isso era feia. Era alguma coisa que eu nunca tinha ouvido antes. Ou simplesmente não reconheci, costumo demorar para reconhecer até mesmo algumas das músicas que mais gosto: não me vem o nome, ou o artista. Mas a questão é que não reconheci, e ainda não consigo reconhecer. Quando terminei de descer as escadas vi a velhinha tocando. Uma grande sacola de plástico encostada do lado do piano, não consigo encontrar nenhuma palavra melhor para descrevê-la do que maltrapilha. Não é uma palavra que eu goste, mas resume bem a situação. As roupas visivelmente remendadas e velhas, os cabelos, apesar de presos numa espécie de trança ou rabo-de-cavalo, estavam bagunçados. Não conseguia ver o rosto dela com clareza, ela se debruçava sobre o piano de uma forma desesperada, dava para ver – até mesmo sentir – a emoção que colocava em cada nota que fazia. Ela estava sozinha, me impressionou que ninguém parasse para ouvi-la. A música era realmente boa. Mas talvez isso não devesse me surpreender, a verdade é que eu nem mesmo parei, apressado que estava para chegar em casa e descansar depois de um dia cansativo. Mas quando atravessei a catraca pensei que deveria ter ficado lá, não muito só alguns minutos.

Várias vezes depois disso passei por aqueles lugar à tarde, e em algumas dessas vezes tive a chance de ouvir pessoas que tocavam muito bem, que juntavam uma pequena plateia ao seu redor. Às vezes não tão pequena assim para ser sincero. Mas nenhuma outra vez vi alguém debruçado sobre o piano como aquela velhinha. Ao menos não até ter a oportunidade de voltar um pouco mais cedo de novo. E lá estava a velhinha. A mesma grande sacola de plástico, talvez fosse outra roupa, mas tão velha e remendada quanto a outra, e tão curvada sobre as teclas quanto antes. E novamente ninguém tinha parado para ouví-la, mas dessa vez eu parei. Não fiquei muito tempo, é verdade, no máximo três minutos, mas nesses minutos fiquei imaginando uma história para aquela pessoa. Como havia aprendido a tocar piano ainda criança, como aquilo era agora importante para ela. Talvez o momento mais aguardado do dia dela fosse aquela hora, já com a noite adiantada, na qual sentava-se num banco frente a um piano em uma estação de metrô e acariciava as teclas como as velhas amigas que elas na verdade são.

Nunca vi o rosto da mulher. Depois desses três minutos saí do metrô pensando na importância da arte na vida das pessoas, e gostando dela um pouco mais do que já gostava. Até agora não voltei a encontrar a velhinha tocando no metrô.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Singelas Rimas ao Talvez Blog

Eis que lanço esta semente

De ode: poeminha breve

Se me ver pecar, releve

Se ler e gostar, comente

 

Escrevo aqui, mas desinteiro

(e em hora triste, oh!, horrores),

Pra agradar os Seguidores

- Já perdi a fé no dinheiro

 

Se eu, inábil menestrel,

Com meus postes não consigo

Fazer-lhe do blogue amigo,

Leia os do Emannuel

 

Não espere-nos Machado,

Baudelaire ou Saramago,

Mas repare: nada é pago

E é, as vezes, engraçado.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Talvez uma intervenção

ant2

Eu realmente não sou o tipo de pessoa que se diverte muito com o convívio com os outros. Por vezes quando estou deitado na minha cama lendo algum livro penso que são aqueles momentos nos quais eu realmente posso ser eu mesmo. Quando estou na companhia de alguém dificilmente falo aquilo que vem à minha cabeça. Por vários motivos. O mais importante sem dúvida é que as coisas que passam pela minha cabeça dificilmente são o tipo de coisas que se fala para as pessoas. Em outras situações simplesmente acabo falando sobre coisas que as pessoas não querem ouvir, assuntos desinteressantes para elas, ou nas quais elas simplesmente nunca pensaram antes.

Mas não me entenda mal. Existem pessoas com as quais gosto de conviver. Mas isso geralmente implica em pessoas que falem, e que falem coisas as quais eu não me sinta mal de ouvir. É um pouco demais pedir para que alguém entenda minhas piadas internas – de mim para mim mesmo – ou minhas referências, mas as vezes me surpreendo com como o tempo faz com que aquelas pessoas que eu simplesmente costumava ouvir me entendam um pouco melhor quando falo.

Conhecer pessoas é fácil. As perguntas são sempre as mesmas, os assuntos-chave facilitam, podem até fazer com que as pessoas tenham uma boa primeira impressão e gostem de você logo de cara. Depois, quando esses assuntos morrem, fica mais complicado. Quero dizer, isso quando vale a pena tentar fazer uma ponte entre esse estágio e o que comentei no parágrafo anterior. A maior parte das vezes simplesmente não vale. Mas até aí, na maior parte das vezes somos obrigados a conviver com pessoas que não valem a pena. E é exatamente nos momentos em que isso fala mais alto que me deito na minha cama com um livro e penso se realmente essa estória de sociabilidade vale a pena.

O importante sem dúvida é se divertir. Se você não se diverte com alguma coisa, provavelmente você pode substituí-la por alguma outra que te diverte. Escutar o que aquelas pessoas que chamo de amigos tem para dizer provavelmente é a coisa que mais me diverte, não importa realmente o que elas estejam falando, sejam divagações filosóficas, sejam besteirinhas que não chegam sequer a ser triviais, ou até mesmo assuntos que poderiam ser considerados sérios, já que numa conversa entre amigos nenhuma conversa é realmente séria, e nenhuma conversa escapa de algumas amenidades. Caso contrário eu realmente não sei se seria amizade de fato.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

As Novas Aventuras do Mágico

Lhe haviam dito que, num restaurante de culinária japonesa tão tradicional como aquele, um chefe japonês espumando de raiva saltaria da cozinha até sua mesa se molhasse qualquer coisa que não o peixe no shoyu.

O Mágico parou por alguns instantes e cogitou: o que lhe fariam se pedisse um ketchup?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Talvez uma intervenção

Todas as noites pouco antes de me deitar eu rezo. Não da forma que as pessoas costumam fazer isso. Não rezo para um Deus inefável, eu rezo para Bob Dylan.

Todas as noites quando encosto minha cabeça no travesseiro imediatamente começo a pensar. Talvez já estivesse pensando mesmo antes disso. Penso sobre pessoas que provavelmente não deveriam estar em meus pensamentos tão tarde da noite. Porque sempre é tarde. Sempre é muito tarde. Geralmente é isso que acontece com pessoas que só conseguem realmente se sentir vivas à noite. Pelo menos é o que acho. É com a cabeça nesse travesseiro que penso nas coisas que fiz durante aquele dia e aquela noite. Penso em como certamente poderia tê-las feito melhor, e como na verdade não me sinto arrependido por não tê-las feito da melhor forma que podia. Mas não, isso é um pouco de hipocrisia, é difícil olhar para todas as coisas que se fez durante as 24 horas de um dia e não desejar que ao menos um segundo fosse diferente. Mas é fácil esquecer esses segundos, especialmente quando se quer guardar a lembrança de um dia como sendo bom.

Deitado naquela cama penso sobre todas as pessoas que encontrei e preferia não ter encontrado, a maioria preferia não ter que ver nunca mais. Mas é muito fácil não gostar das pessoas, pelo menos para mim, pelo menos nos últimos tempos. As pessoas sempre vão te dar muitos motivos para que você não goste delas. Às vezes você vai estar numa época em que nem vai perceber esse tipo de coisa. Outras vezes você não vai deixar o menor detalhe escapar. Às vezes eu tento lembrar a letra daquela poesia do James Joyce que o Syd Barret musicou. Outras eu penso nas pessoas que gostaria de ter encontrado naquele dia e não encontrei, mas sempre existe a chance de nos encontrarmos nos sonhos, não é mesmo? Ou amanhã, mas o amanhã sempre parece mais traiçoeiro e menos mágico do que os sonhos. Sonhar com alguém não é muito diferente de dormir com alguém, só é mais intimo. E, segundo Freud, tem significado.

Naquela mesma cama, e com a mesma cabeça no mesmo travesseiro penso nos lugares que quero conhecer, e o que gostaria de fazer neles. É como sonhar, só que até esse momento eu ainda não consegui dormir. Penso em como deve ser andar pelas ruas de Londres, mas a Londres que conheço não existe mais, não existe a pelo menos cem anos. Penso em tomar um café no Blv. St. Germain, mas o café que conheço lá já deve ter falido antes dos nazistas terem invadido a cidade. Penso em como Clara Schumann tocaria piano até que eu conseguisse dormir. E depois disso talvez deitasse ao meu lado, talvez trazendo com ela o marido.

Penso em como vou ser daqui a vinte anos. Nunca mais do que isso, me amedronta pensar que posso estar aqui depois disso. Penso se alguém estará pensando em mim naquele momento. Mas não, já é tarde, todos devem estar dormindo. Pensando nisso afasto meu travesseiro, algumas noites jogo ele no chão ou em algum outro lugar. Tenho uma teoria de que enquanto conseguir pensar e lembrar do que estou pensando o sono ainda está longe. O sono não gosta de mim, mas eu gosto dele, todas as noites espero por ele, todas as noites fico um pouco desapontado porque ele nunca vem. E assim se passam horas, as vezes dias, me revirando na cama, pensando em estórias que adoraria passar para ao papel. Mas aos poucos não sei mais o que acontece com essas estórias. Eu deixo de lembrar as coisas imediatamente depois que penso nelas – pelo menos é o que acho, se lembrasse disso a minha teoria estaria já provada errada. Quando de repente acordo, sem nem mesmo poder dizer que dormi, apenas que cansei de esperar.

Mas, ainda assim, todas as noites deito e tento, e espero o sono enquanto penso no mundo que já não vi muitas vezes e nas pessoas que não estão pensando em mim. E nenhuma manhã – pois foram as manhãs que Bob Dylan reservou para o sono quando as criou – faz com que eu me arrependa.