segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Manual de Dermatonomia — ou, qual a diferença entre uma verruga e um olho de peixe?

 para a Raíssa

    Quando uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) lança uma maldição, se forma sobre a pele da pessoa amaldiçoada uma verruga. O tamanho e aspecto da verruga podem variar conforme o rancor da bruxa (ou bruxe, ou bruxo) contra a pessoa amaldiçoada, e a força da maldição: quanto mais poderosa a maldição, maior será a verruga; quanto mais rancorosa, mais a verruga apresentará uma tonalidade que se destaque na pele da pessoa atingida.     
    A localização da verruga pode variar conforme o tipo de desagravo cometido contra a bruxa (ou bruxe, ou bruxo) em questão: esbarrar com uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) na calçada, por exemplo, provavelmente vai te render uma verruga em um braço ou ombro; a uma pessoa que julgue muito barulhenta, a bruxa (ou bruxe, ou bruxo) fará crescer uma verruga em alguma parte mole, normalmente a barriga, a bochecha, e, em casos especiais, uma das nádegas; pessoas que façam pouco caso da culinária de uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) podem ver em si brotar uma verruga na língua, ou na sola do pé; atrapalhar uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) que tenta enxergar o céu noturno rende uma verruga na ponta do dedo inconveniente; por fim, entre as de mais interesse, é no nariz que crescem as verrugas de pessoas amaldiçoadas por terem feito pouco dos poderes mágicos de uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo). Não é à toa, aliás, que tanta gente haja, entre a bruxaria, com verrugas imensas espalhadas pelo nariz: o segundo passatempo favorito das bruxas (e bruxes, e bruxos) é fazer pouco caso das habilidades mágicas de outras bruxas (e bruxes, e bruxos); seu primeiro passatempo favorito, por sua vez, é lançar maldições a outras bruxas (e bruxes, e bruxos) que fizeram pouco caso de seus encantamentos.    
    A quantidade de verrugas é invariável: sempre exclusivamente uma por maldição. Isso se dá porque a ofensa é a matéria prima da verruga, e as leis naturais são muito claras nesse sentido: independente do poder, do rancor, ou do direito de vingança que uma bruxa (ou bruxe, ou bruxo) tenha sobre uma pessoa que a ofendeu de algum modo, cada ofendimento só é suficiente para produzir uma unidade de verruga — é responsabilidade da bruxa (ou bruxe, ou bruxo) caprichar na maldição, caso se importe tanto assim com o desrespeito sofrido. Algumas bruxas (e bruxes, e bruxos), naturalmente, tentam burlar a natureza, quando sentem que o rancor não foi ainda exaurido: aprendem os horários da pessoa a quem querem amaldiçoar repetidamente para esbarrarem com ela de novo e de novo ao atravessar a rua para o mercado; se acostumam a ouvir tudo no volume mínimo, a andar o dia todo com abafadores nos ouvidos, apenas para retirá-los quando sabem que a pessoa a ser amaldiçoada vem visitar; presenteiam a amaldiçoável com seus bolos e doces menos favoritos, toda semana, um favor entre vizinhos, meu bem; misturam o nome de estrelas e constelações para ver seu alvo colocar um dedo entre seus olhos e o céu noturno; erram feitiços, poções, e fórmulas de encantamento de propósito, só para ouvir o bufar autoconfiante da bruxa (ou bruxe, ou bruxo) que se acha superior.
    Mas logo descobrem que não é a mesma coisa. As verrugas subsequentes, forjadas de desagravos forçados, não têm o mesmo ímpeto, o mesmo charme, não têm arte. É a verruga pela verruga. A verruga traidora, que chega mesmo a realçar o desenho dos ombros ou valorizar o olhar afiado da pessoa atingida, agora mais bonita com suas três verrugas do que quando não tinha nenhuma.

    Por sua vez, os olhos de peixe aparecem quando uma sereia (ou sereie, ou sereio) se apaixona por alguém. No caso, o tamanho do olho de peixe independe do tamanho do apaixonamento da sereia (ou sereie, ou sereio), ou de seu poder, que as leis da natureza que regulam a paixão são outras, e não funcionam muito bem com isso de forças patológicas e medidas taumatúrgicas. É, na verdade, muito mais cronológico. O olho de peixe é o resultado da permanência do olhar apaixonado de uma sereia (ou sereie, ou sereio) por sobre aquele pedaço do corpo da pessoa amada: quanto mais tempo olha, tanto mais cresce.
    Cada sereia (ou sereie, ou sereio) tem seu tipo. As que se apaixonam mais facilmente por pessoas parecidas consigo mesmas, normalmente ficam olhando para as mãos de suas amadas, e comparando com as próprias mãos, e daí de surgirem olhos de peixe em tantas mãos. As que se apaixonam mais facilmente por pessoas diferentes de si, se enamoram normalmente das pernas e dos pés de suas amadas, e daí que haja tanta gente com olhos de peixe nos joelhos ou nos pés. É difícil as sereias (e sereies, e sereios) porém ficarem olhando muito tempo para nossos rostos — acham as expressões humanas muito secas e terrestres para seu gosto, normalmente nos amam apesar de nossas caras, e não por causa delas.
    O amor é coisa muito mais produtiva do que o despeito, pelo que uma única paixão pode levar a muitos olhos de peixe. Na verdade, a origem de um olho de peixe é coisa muito complicada de se identificar: há casos de múltiplos olhos de peixe no corpo de uma pessoa, causados por uma sereia (ou sereie, ou sereio, não se sabe ao certo) indeciso a respeito de qual parte achava mais charmosa na pessoa amada. Há o caso de uma pessoa que tinha, dizia-se, o cotovelo tão ao gosto de uma sereia, e ume sereie, e um sereio, que os três juntos revezavam-se admirando-o, a ponto de um olho de peixe do tamanho de uma bola de gude ter crescido ali. Mas é sempre incerto, e a natureza desproporcional entre o amor e o tempo complica as coisas: como saber quantas sereias (e sereies, e sereios) são responsáveis por aquele olho de peixe? Como garantir que a sereia (ou sereie, ou sereio) que por mais tempo admira seu tornozelo é realmente quem está mais enamorada? Às vezes alguma das outras pretendentes é mais tímida, ou às vezes há uma sereia astigmata, ou distraída, que precisa olhar longamente para aquele tornozelo para ter certeza de seus detalhes apaixonantes.
    Mas estas perguntas e especulações são todas, no fim das contas, vazias. Tanto faz se é uma ou mais de uma sereia (ou sereie, ou sereio) quem te ama, como tanto faz saber qual delas te ama com mais intensidade. Todo o povo do mar aprendeu há muito tempo que seres humanos só se amam de vista — e o mais conveniente ainda, ensinam aos cardumes de filhotes de sereia, recém saídos das ovas, e o mais conveniente é que seja uma paixão de mão única. Mirem os humanos, ensinam, suas mãos tão parecidas com as nossas e suas pernas tão diferentes, mas não deixem os humanos mirarem de volta. O máximo que se ganha do amor de um ser humano é uma cantiga triste, ou a sensação de desaparecer na espuma.