quinta-feira, 18 de junho de 2020

Como ler um texto acadêmico

(para Fernanda K.)

Caros alunos!

Haja vista que vocês estão entrando agora em seu primeiro ano na Universidade,
haja vista as graves circunstâncias, que nos impedem de prover-lhes com o apoio de que precisam,
haja vista as especificidades da construção de textos acadêmicos, sua estrutura, convenções e desenvolvimentos - para as quais nosso sistema básico de ensino, infelizmente, não é capaz de prepará-los,

escrevi para auxiliá-los neste seu primeiro semestre um guia que, espero, possa ser útil durante todo o correr de sua graduação. (Ao chegarem à pós, e talvez mesmo à iniciação científica, ou ao trabalho final de curso, vocês perceberão que este guia é, na verdade, incompleto, e só permite uma apreensão parcial do que se lê. Ainda assim, deve servir bem para que deem seus primeiros passos no fascinante universo do conhecimento superior.)

Para adquirir o mínimo de compreensão sobre um texto acadêmico, conforme vocês perceberão, é preciso lê-lo várias vezes.

A primeira leitura é mais simples e superficial: ponha ao seu lado dois ou três dicionários de sua confiança; um copo de água; procure as palavras desconhecidas que for encontrando no texto. Se o contexto e os dicionários não ajudarem, procure frases de referência na internet. Anote bilhetinhos amarelos com as palavras encontradas, e cole os bilhetes ao lado das palavras desconhecidas para referência mais rápida.

Na segunda leitura, já ciente do universo vocabular do texto, é preciso traçar um mapeamento teórico. Deixe uma aba aberta em seu navegador com a plataforma Lattes; outro copo de água, talvez um suco de laranja; verifique cada citação;  arranje pedaços de papel um pouco maiores que os da primeira leitura, e copie neles um breve currículo de cada um dos autores citados - nada muito extravagante: seu nome, universidade de formação, principais trabalhos, conceitos mais importantes, posicionamento em relação ao autor do texto sendo lido no momento e talvez uma pequena foto. Nós temos cérebros muito visuais, é mais fácil fazer a ligação entre autores e suas ideias se temos uma foto como intermediária. Quem consegue olhar para uma foto do Freud sem pensar em charutos e nos próprios pais?

Na terceira leitura, entramos no universo conceitual do próprio texto de forma mais profunda: se você estiver lendo alguém que tenha trabalhos anteriores, é preciso deixar abertos ao seu redor todos os trabalhos daquela pessoa; caso ela ainda não tenha trabalhos anteriores, os de seu orientador; talvez uma taça de vinho, ou uma dose moderada de aguardente; se os trabalhos anteriores estiverem disponíveis apenas digitalmente, imprima-os - nosso cérebro humano é muito tátil, e é mais fácil transitar entre os diferentes textos se estiverem em sua forma física diante de si. Grife no texto todas as palavras que indicarem um conceito. Retorne aos trabalhos anteriores do autor, ou de seu orientador, e refaça  para eles as etapas de leitura um e dois. Tome uma folha de sulfite para cada um dos conceitos encontrados e registre a primeira vez em que aparecem nos trabalhos daquele autor, ou de seu orientador; e anote as vezes subsequentes em que aparecem, e quais são as variações significacionais perceptíveis. Costure com uma linha vermelha essas folhas de sulfite às páginas do texto sendo lido. Caso o conceito apareça mais de uma vez no texto, para referência mais simples, faça cópias do sulfite sobre aquele conceito e costure-o em todas as páginas necessárias.

Na quarta leitura, temos que encontrar os revéses do texto - o dito pelo não dito, a ironia, o que o autor procura esconder através da própria mensagem. Você vai precisar de um grampeador, uma tesoura e um espelho; os dicionários que você pegou mais cedo podem vir a calhar; um refrigerante de cola e talvez duas pílulas de cafeína; leia o texto de trás para frente - primeiro frase por frase, depois palavra por palavra, depois letra por letra. Use a tesoura e o espelho para essa reordenação pode deixar as coisas mais fáceis, no começo. A seguir, com auxílio dos dicionários, faça a leitura antônima do texto: procure o oposto de cada conceito, de cada adjetivo e, se for o caso, mesmo dos artigos. Volte aos bilhetes biográficos e encontre o nome dos inimigos mortais de cada um dos autores citados, e anexe uma biografia deles ao verso de seus nêmesis. Então faça a leitura reversa e a leitura antônima de cada um dos trabalhos anteriores do autor sendo estudado, para garantir o conhecimento da involução de seus anti-conceitos. Com mais ou menos duas ou três cartolinas por página, é possível fazer um mapa conceitual de cada uma dessas contra e anti-leituras. Use o grampeador para anexar as duplas ou trios de cartolinas a cada página do trabalho original, para a referência ficar mais fácil. Um marca-texto também pode ser útil, nessas horas, para indicar em cada cartolina a relação e a anti-relação entre as ideias presentes nela e as presentes no texto estudado.

Na quinta leitura, é preciso reconhecer o processo de internalização conceitual operado pela leitura. Deixe a tesoura onde está, e pegue mais uns dois ou três copos de refrigerante de cola, ou uma garrafa de vinho nova, dependendo de qual ajudar mais sua digestão; chá verde bem quente ou uma limonada também são bem vindos. Coma o texto. Apenas o original, veja bem! Desgrude dele os bilhetinhos, as notas biográficas e anti-biográficas e as fotos, descosture as etimologias conceituais e desgrampeie as cartolinas com as contra-leiruras. Coma o texto. Veja bem se não deixou sobrar algum grampo para não engasgar. Mastigue apenas o mínimo necessário, para que as ideias do texto não se diluam. Mas seja generoso com a bebida, para ajudar a digestão. A seguir, coma seus bilhetes e suas notas, suas etimologias e as cartolinas. Elas são parte de você, então mastigue com calma. Perceba a diferença entre as texturas. Perceba como o que vem de você mesmo desce mais fácil. Mas tome cuidado para não engolir nenhum grampo que tenha ficado preso entre as cartolinas. Se engolir um pouco da linha vermelha, o prejuízo não é tanto.

Na sexta leitura, você tem condições enfim de perceber que você é o texto. O texto só se realiza em você, leitor, e não há nada como a sensação dos sucos gástricos derretendo a celulose em seu estômago para se dar conta dessa unidade. Você é o texto. O autor está morto.

Na sétima leitura, é preciso garantir que o autor esteja morto. Reabra a página do currículo Lattes, caso a tenha fechado ao cabo da quarta leitura; uma pílula digestiva e outro copo de água; algumas velas, e uma faca afiada - preferencialmente obsidiana. Acenda uma vela, e faça uma oração à sua divindade favorita, com os olhos voltados na direção de Alexandria. Pense na biblioteca em chamas. Se for ateu, cante o hino nacional e dê três pulinhos. Consulte no Lattes a universidade onde o autor está instalado. Adquira bilhetes de ida e volta, de preferência com tempo de sobra para chegar a  nosso encontro virtual de cada noite. Viaje até a universidade, solicite um crachá e diga que está fazendo uma leitura profunda da obra do professor estudado. Caso ele não esteja, descubra seu paradeiro e dirija-se até ele o quanto antes. É conveniente fazer isso a céu aberto em uma noite de lua nova, sem nuvens e sem vento. Se não for possível garantir as condições climáticas ótimas, leve pelo menos um cobertor grosso, para garantir que haja pouca luz nos olhos do autor antes que você o esfaqueie. É a ausência de luz nos olhos que realmente garante a morte do autor, e a ausência de vento garante a morte do homem. Beba o copo de água.

A oitava leitura é reconhecer que seu esforço foi em vão. Quem é você para dizer que entendeu um texto? Você foi longe o suficiente? Você conhece de fato de dentro para fora o trabalho que supõe compreender? É preciso que você volte, e abra o cadáver do autor. Você precisa escarafunchar suas vísceras. Você sabe qual delas realmente importa comer, caso tenha feito a preparação adequada para a leitura. Mas quando você abrir o corpo do autor morto, você vai reparar que não há nada lá.

Idiota

Eu comi todas as vísceras de todos os autores deste programa. Eu guardo o crânio de cada um deles atrás da prateleira de livros que uso como fundo em minhas aulas à distância. O professor que você esfaqueou com sua faca - duvido muito que você tenha conseguido uma de obsidiana - é apenas a casca de um acadêmico. Ele vai voltar à "vida", e reassumir suas funções na universidade, como já fez em anos anteriores. Mas ele não é mais um autor; o autor está morto.

Não se sinta mal. Isso é uma parte natural de seu progresso acadêmico. Quantos autores eu e os demais professores de vocês já não esfaqueamos por aí, só para descobrir que chegamos tarde demais, e que já não havia sequer uma víscera útil a engolir? Há mesmo colegas no departamento que se conformaram a só roer ossos e comer tutano, e alguns de nossos professores mais ilustres já foram eles mesmos esfaqueados inúmeras vezes, e não passam da casca da casca da casca de um ser humano.

Eu gosto de acreditar que alguns de vocês terão a fibra moral e o rigor intelectual necessários para cumprir a risca minhas instruções de leitura, mas sei que é uma ilusão da minha parte. A geração de vocês não foi feita para a academia. O vestibular ficou fácil demais com as mudanças todas, e um número infinitesimal dos alunos que chegam à minha sala de aula tem as condições necessárias para cumprir com todas as etapas de uma leitura adequada (adequada, lembrem-se bem, a vocês que estão nos primeiros anos da graduação!).

Mas prossigo com minha esperança, apesar de tudo. Todos os semestres deixo no programa, para a aula final do curso, um texto de minha autoria. Todo semestre deixo minha faca de obsidiana afiada, pronto para os leitores que virão, para mostrá-los que nem todo autor está morto. Algum semestre desses, espero, algum aluno provará que estou errado.