quarta-feira, 7 de junho de 2023

Fundo que nem raiz de jataí


Gosto de pensar: que minha avó sorri quando dou comida pros bichos
(especialmente onde não se deve)
ou quando cozinho devagarzinho, andando de um lado pro outro
da cozinha
ou quando vou guardando potinhos e garrafinhas que encontro por aí
pra poder usar de novo depois, nunca se sabe
(especialmente quando tenho uma pilha de potes
muito maior que as necessidades de uma cozinha razoável)
ou quando tomo chá de boldo ou de dendilhão pra algum malestar

Gosto de pensar: que minha avó sorri quando rezo a Ave Maria
às seis da tarde, voltando pra casa, quando o sino bate
na igreja do lado do metrô, bem na hora que eu saio da estação
e que ela sorri, talvez até um riso com barulho e tudo, ainda que não gargalhado
quando eu arrebento ainda outro terço sem querer
que continuo guardando terços nos lugares errados, tentando colocá-los
onde terços não cabem

Ganhei muitos presentes da minha avó, visíveis e invisiveis
O mais visível é o pé de Jataí imenso que cresce ao lado da casa da roça
que ela trouxe ainda broto pra plantar ali
Grande e bonito como o mundo, sua copa encarapitada no alto do morro
Se deixa ver de longe
Já amassei muitas das folhas secas que caíram da Jataí
Carreguei pedaços dos galhos que caem da árvore: me ajudam a sonhar
Já parti com martelos e o pé, e hoje mesmo com as mãos
a casca das jataís que caem da árvore
sujei meus dentes de verde, adocei minha língua
Um doce que dura muito tempo

Todo ano vejo brotar os filhotes da Jataí:
Como feijões imensos e cor-de-rosa procurando o sol
E sonho com carregar adiante o presente da minha avó:
encher os morros todos de jataís enormes de frutos doces
Mas o tempo do mundo já não é o tempo dos brotos de jataí:
Uma foice, uma roçadeira, uma mula esfomeada,
A Jataí permanece sozinha.

Uma vez calharam de crescer um par de brotos até uma altura
que estava além da fome e das roçadeiras
Mas cresciam por debaixo dos fios da rede elétrica
Se não fosse por sua pequenês, seria sua grandeza que as condenaria
Pensava sempre que era preciso trocar logo os brotos de lugar, antes que ficassem grandes demais, e difíceis de tirar

Mas o tempo do mundo já não é o tempo dos brotos de jataí:
Sempre havia trabalho que fazer em outro lugar
Eu mal vou pra Guará, quem dirá pra roça

Quando fomos tirar os brotos do lugar, já estavam mais altos do que eu:
e raiz de jataí cresce fundo, mais fundo do que a árvore é alta
Naquele dia, cavando a terra com meus irmãos, e meu tio, e meu pai,
foi que percebi que aquela jataí imensa que minha avó plantou
do lado da casa da roça
talvez chegue com sua raiz até o coração do morro
talvez o morro já nem saiba o que é seu formato sem aquela raiz pra guiá-lo

A terra escapou das raízes dos brotos
Não cavamos certo, não cavamos fundo o suficiente
Os brotos saíram da terra como dentes em um buticão
Depois da extração, não tínhamos mais energia para cavar uma cova daquele tamanho
que abrigasse aquilo tudo de raiz
Então improvisei a cova que pude apoiando aquelas arvorezinhas tortas
num barranco de terra vermelha
onde brincávamos de fazer caminhos pra descerem bolinhas de gude

Por ainda algumas semanas, quando eu conseguia voltar pra roça,
eu insistia em regar aqueles filhotes de árvore moribundos
Suas folhas verdes amarelando e amarronzando
O marrom dos galhos cada vez mais cinza

A Jataí permanece sozinha

Sei: que minha avó teria sabido o tempo dos brotos
e que teria dito o dia certo e o momento propício,
o tamanho apropriado da cova
para escavar a terra, para carregar os filhotes para um lugar novo
onde ficassem tão grandes quanto quisessem

Mas gosto de pensar, quando estou triste pelos jataizinhos que não salvei
e por outras coisas,
gosto de pensar: na sensação das mãos frias e pequenas da minha avó nos meus cabelos
no seu cheiro fresco, e em como era fácil abraçar
seu corpo pequenino
Tão menor que a Jataí, mas autor de tantos trabalhos penosos

A verdade é essa: passei da minha vida muito pouco tempo no mato pra ser do mato;
muito pouco tempo na pedra pra ser da pedra;
minhas mãos só servem pra matar filhotes de árvore e
pra apertar os botões errados no elevador do prédio

O filhote de árvore de que ainda tenho esperança de cuidar é o que
plantou em mim a Jataí de minha avó
por ele é que ainda tenho vontade de

Amar como uma Jataí: até os recônditos da terra, as raízes
esticando-se, afagando o húmus, desenrolando-se até os aquíferos;

Amar como uma Jataí: tão alto quanto possível na atmosfera,
os ramos abrindo-se para o céu, as folhas refletindo o sol;

Amar como uma Jataí: sombra num dia de sol, abrigo num dia de chuva

Amar como uma Jataí: fruto para quem tem fome, fogo para quem tem frio, flor para quem se sente só