quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Um sonho

     Estou sentada na beira de um lago, os pés dentro da água. Tudo tem tons dourados, de um sol que se põe à minha esquerda. O lago brilha dourado e marrom, o céu brilha uma cor de cobre, o capim alto brilha um amarelo suave. 

    O capim não tem medo do lago; se aproxima de suas margens; cobre suas margens; mesmo o fundo do lago, intuo, talvez esteja coberto daquele capim grosseiro, porém agradável ao toque. O capim não tem medo de mim; acomoda meu corpo sentado como se fosse um ninho, se enrosca em meus artelhos e nos meus pés - talvez seja mesmo da planta dos meus pés que saiam as raízes deste capim todo; talvez eu seja só um talo de capim com forma de gente, e roupas de gente.

    Além de mim, porém, há gente de verdade. Os vejo vindo em grandes filas indianas, quando olho para a direita. Sobem o morro coberto de capim amarelo que leva até o lago. Mas sua meta não é o lago; passam por trás de mim e seguem andando em direção ao cume, onde o sol se congelou num ocaso amarelo, quase branco. 

    Um vento desce desde o cume, fazendo o capim dançar e chacoalhando a roupa das pessoas. Mas nem aquela luz impossível, nem o vento, nem o capim na altura de suas cinturas, nem a inclinação cada vez mais íngreme demovem-nas de sua peregrinação. O que as detém de vez em quando é a curiosidade pelo que acontece no lago.

    Talvez sejam os reflexos do próprio por do sol na água. Talvez seja outra coisa. Mas logo perdem o interesse e retomam seu caminho. Ao contrário de mim, elas não parecem perceber que há muito mais reflexos de pessoas na água que pessoas de fato subindo o monte. Mesmo quando uma delas se interrompe para olhar, há três ou quatro reflexos no lago, parados, olhando de volta. Mas elas não percebem. Talvez não percebam reflexo nenhum.

    A peregrinação continua. Só o som do capim se movendo, do vento, e o gelado da água nos meus pés, completamente envoltos pelo capim submerso, decididamente raízes de mim. Outra pessoa se destaca entre os peregrinos, indo em direção ao lago. Usa um casaco vermelho, tem olhos e cabelos escuros.

    Ela olha para o lago, e também não percebe os reflexos. Mas sente que há algo errado. Ela olha para mim. Ela me percebe. Por alguns instantes me estuda, como outros peregrinos estudavam o brilho do por do sol no lago. Depois, tira seus sapatos, põe os pés dentro da água, e se senta ao meu lado.

    Vira o rosto para me dizer alguma coisa.

    Eu desperto.

domingo, 4 de outubro de 2020

Sem título

Desaprendo o dia inteiro, e também aprendo o inútil a todo momento. Isso não é muito minha escolha, um peixe mesmo morto às vezes sobe a correnteza, e isso é consequência de seu corpo. Contudo não quero falar sobre a natureza e nem extrapolar demais com hipóteses de quem tenta enxergar o todo do tempo, que é supremo. Também não quero apenas existir me forçando a alcançar o silêncio, separando dele o barulho. Quero arrumar a gaveta, beber um suco doce, sentir a madeira de que foram feitos os móveis e também ver o clima mudando - quero ver a chuva vindo e indo. Viver é difícil quando a gente tenta entender mas é preciso para continuar vivendo. A gente separa as coisas pra ficar mais fácil, essa é a nossa brincadeira e a gente se diverte. Mas é que na verdade é tudo junto, na verdade é a gente que não tem tamanho suficiente para enfrentar a beleza de todo o resto, e disfarça. Pode ser que seja fácil de se engrandecer do ruim, mas eu acho mesmo é que a gente que vem sendo ensinado por aí a apontar só o que é mau. Namoro as coisas boas, manejo as ruins e sou feliz com quem me tornei.