segunda-feira, 21 de junho de 2021

Não há mapa para esta noite de estrelas

 Veja só, meu irmão, o tamanho desta noite que se abre diante de nós: precisamos de um mapa para navegar por tanta estrela, e ainda assim nem tudo se revelará, mesmo diante deste brilho todo; nem um mapa cobre essa noite toda, nada cobre; nada pode contar a estória inteira. No entanto, é isso o que fazemos: navegamos insistentemente a noite imensa, numa casca frágil que chamamos de barco, numa folha de papel seda que chamamos de vela, seminus apesar do frio; o frio das estrelas não nos dói mais, ou dói bem pouco, mas seria melhor navegar sem ele.

Cada porto constelado que atravessamos, porém, cada cidade de cristal que nosso barco alcança justifica todos nossos percalços; é uma vida de distâncias, mas não vazia de alegrias. Eu não posso dizer com certeza se a bússola que usamos nos levará aonde é preciso, mas que alternativa temos? Não há um mapa que cubra essa noite toda, nada cobre; nossa bússola é só uma analogia pra esse mar imenso de noite, mas funciona, em alguma medida.

Aqui e ali achamos os restos dos navios dos nossos antepassados, e isso nos dá esperança: talvez haja um caminho, e talvez seja ele o que estamos percorrendo agora. Observamos mais de perto porém: aqui um um casco de trezentos anos, ali um farrapo de vela de um tecido sintético, inventado há pouco tempo, adiante uma tora petrificada, de um tempo onde ninguém da nossa família sabia esculpir direito. Estaremos seguindo em círculo? Redescobrindo um mundo que já se sabe?

Mas a boniteza da nossa humanidade é essa, nossa dádiva: não importa quantas vezes os olhos dos nossos pais e avós tenham pousado sobre as cidades de vidro e os palácios de cristal, que nossas retinas os encontrem pela primeira vez é em si um milagre. Que nossos avós já tenham engolido milhares de litros do mar negro e salpicado de estrelas não diminui nosso engasgo quando as tempestades também nos jogam para a água agitada.

Talvez eu creia nisto, meu irmão: que cada vida humana é um presente, cada barco; que seja o dever e o privilégio de todo ser humano traçar por si mesmo um mapa das estrelas que visitou no mar imenso; que seja seu dever e privilégio inventar músicas novas e aprender músicas antigas sobre o mar, inventar desenhos novos e aprender desenhos antigos dos palácios de cristal, inventar línguas novas e aprender línguas antigas para conversar sobre os mortos.

Não há um mapa que cubra essa noite toda, nada cobre; nenhuma música, nemhum desenho, nenhuma língua. Mas aí está também o milagre triste de nossa raça, a insistência em traçar mapas, músicas, desenhos e línguas; a invenção de bússolas, astrolábios e outras parábolas; a crença em praias brancas que nos aguardam, mesmo no limite da calmaria, no meio da noite mais escura, em que todas as estrelas se escondem.

Escolhemos navegar, meu irmão, e todas as noites temos que escolher de novo; e outra vez; e outra vez. As estrelas deste mar imenso nos esperam.