Cemitérios são ótimos lugares para
crianças brincarem. Não qualquer cemitério, claro. Nada desses cemitérios
contemporâneos que não tem espaço entre uma tumba e outra, e certamente não
esses cemitérios de luxo, que mais parecem country clubs, onde você praticamente
precisa de uma carteirinha para homenagear seus mortos. Não, existe aquele tipo
ideal de cemitério, algo mais antigo, com muito espaço e campos abertos, algo
vitoriano, que não seja mais usado, mas seja praticamente aberto a público como
museus a céu aberto, mas que ainda assim não haverá ninguém para se sentir
magoado se a criança quebrar uma daquelas cruzes de pedra antiga por acidente.
Como todas as ideias, essa não veio
espontaneamente, sempre é necessária uma centelha – no meu caso, duas – e, como
algumas pessoas tendem a reafirmar, nenhuma ideia é realmente original. Os dois
fatores que me levaram a isso foram simples: eu precisava cuidar de uma
criança – minha filha de cerca de três anos – mas não queria problemas, queria
levá-la para um lugar arejado, onde pudesse brincar, coisa que não podia fazer
no meu apartamento de solteiro, ao mesmo tempo que eu poderia ter paz e
tranquilidade, sem ter de me preocupar com outras crianças com as quais ela
pudesse brigar ou de adultos com os quais eu tivesse que conversar –
especialmente mães que ainda hoje se impressionavam com o pai de uma menina
levando-a para brincar –, já que eu estava numa tentativa interminável de
concentração, seja para ler, seja para escrever. Todas as vezes que minha filha
aparecia e eu tinha que cuidar dela, essa paz era de certa forma quebrada. Não
me entendam mal, é claro que amo minha filha, e, quando ela ler isso, tenho
certeza que sequer questionará tais sentimentos – espero – mas a verdade é que,
por mais que fossem agradáveis os dias que passava com ela, em determinado
momento, tinha que levá-la para fora do apartamento e com ela brincando e
descobrindo o mundo ao redor, eu muitas vezes ficava com a sensação de que
aquele tempo com ela seria perfeito se utilizado corretamente, ela poderia me
inspirar muito, por exemplo. E, de fato, costumava ter ótimas ideias nesses
momentos, ideias que obviamente desapareciam no caminho para casa. Por algum
tempo pensei em acompanhá-la mais de perto, ficar respondendo seus por-quês e
coisas do gênero. Mas ela parecia querer deixar bem claro que aqueles momentos
eram para ela, que ela precisava ficar só, e que me perguntaria tudo que tinha
para perguntar quando estivesse de volta ao apartamento e entediada. Pedi
conselhos para a mãe dela, o que provou não ser de muita ajuda para mim,
tínhamos formas muito diferentes de encarar esse tipo de coisa.
Mas foi então que me veio a segunda
centelha. Que veio na forma de livro, e da ideia de outro. Era a estória de um
menino criado pelos fantasmas de um cemitério vitoriano, de forma parecida com a
que Mogli, o menino-lobo, fora criado pelos animais da selva. Era um livro para
crianças, ao menos em teoria, que tinha comprado exatamente pela analogia com
Mogli, estória que minha filha gostava bastante. Pode ter sido um pouco perverso
da minha parte me aproveitar da curiosidade de minha filha, surgida a partir da
estória que eu lhe lia daquele livro, para por em prática meu plano de levá-la
ao cemitério. Mas foi inevitável, a ideia me parecera ótima, e, sem dúvida, se
ela não gostasse do lugar, se sentisse assustada ou entediada ou algo assim, eu
a traria de volta sem titubear.
Procurei um lugar que pudesse
lembrá-la do cemitério do livro, o que por si só não foi algo muito fácil, mas
não impossível. E devo admitir que o próprio trajeto já era algo divertido de se
fazer, da primeira vez, ela estava apreensiva, fazendo milhares de perguntas, a
maioria querendo relacionar o livro ao lugar para onde estávamos indo, e que eu
portanto não sabia responder. Das vezes seguintes isso não estava mais presente,
mas ainda assim era divertido dirigir com ela no carro, cantando as letras
erradas por cima das músicas e contando como estavam as coisas na escola. Mas,
antes de colocar o carro à frente dos bois, deixem-me voltar à primeira vez que
a levei lá.
O lugar era realmente agradável. Muito
verde, e muitos lugares onde sequer se poderia saber se haviam sido utilizados.
Grama alta, muito espaço, clima agradável. Um ótimo lugar para se descansar, sem
dúvida. Consegui sem muita dificuldade um lugar onde pudesse sentar-me à sombra
e ler. De lá podia ver a extensão inteira do cemitério, que não era tão grande
quanto os modernos, e portanto poderia manter um olho em milha filha onde quer
que ela fosse. Devo admitir também que a forma que ela se portou frente a isso
me impressionou bastante – e foi bem diferente da que a mãe dela teria quando
soubesse e me desse uma bronca por telefone –. Ela não teve medo, se divertiu
bastante correndo sob o Sol, entre a grama. Não se entediou, sempre ficava
olhando coisas: as estátuas, as fotos e palavras nas lápides, os mausoléus, as
coisas que lembravam as estórias que eu contava, mas também descobrindo coisas
novas. Em determinado momento se escondeu na grama alta, para me assustar quando
não a visse, mas de forma geral se comportou bem. Acho que as crianças nessa
idade não estão manchadas pelas concepções e medos que adquirimos no decorrer da
vida, da solenidade com a qual a morte – e os mortos – passa a se relacionar na
mente adulta. Ao menos na nossa sociedade.
Eu, portanto, não vi motivos para não
continuar levando-a lá. Mesmo as reclamações da mãe dela diminuíram com o tempo.
E eu realmente acho que isso foi algo importante para a formação dela, que
quando adulta ela vai saber lidar com determinadas coisas melhor do que a
maioria das pessoas. Melhor do que eu, sem sombra de dúvida. Continuamos indo lá
por meses, talvez anos. Mesmo depois do afeto dela pelo livro que tinha motivado
aquilo ter diminuído consideravelmente. Meio que se tornara uma coisa nossa, que
só acabou de fato quando sumiu a necessidade de levá-la para brincar em alguma
lugar. Ela nunca deu mostras de se entediar, pelo contrário, sempre vinha com
perguntas novas. E, especialmente conforme ela foi crescendo, eu tinha a
possibilidade de me concentrar nos meus afazeres, mesmo nos menos sérios.
Com o tempo ela passou a entender as
letras nas lápides, a perceber que eram nomes, e a intuir que as pessoas que
apareciam nas fotos estavam ali enterradas e, portanto, mortas. Foi aí que as
perguntas começaram a ficar difíceis. Não por serem aquelas que os pais não
sabem as respostas, mas por serem aquelas que não sabemos se devemos responder,
como devemos responder.
“Papai, por que todas essas pessoas
estão aqui?”
“Porque, minha filha, a muito tempo
atrás, todas essas pessoas morreram, e elas foram trazidas para cá para que as
famílias e os amigos delas pudessem visitá-las sempre que quisessem, para que
pudessem lembrar delas, e, talvez, quando chegasse a horas delas, elas pudessem
se juntar e descasar ao lado das pessoas que elas amavam num lugar bonito e
tranquilo como esse.”
“Mas por que nós nunca vemos ninguém
visitando então?”
“Porque esse lugar é muito antigo, as
pessoas que estão aqui viveram a muito tempo, e as pessoas que vinham visitá-las
também já estão descansando em algum lugar.”
“Mas então quer dizer que todas essas
pessoas já estiveram vivas? Quer dizer que todas as pessoas um dia vão
morrer?”
“Sim, minha filha, todas essas pessoas
um dia estiveram vivas como eu, todas elas foram crianças como você que gostavam
de brincar e se esconder na grama. E sim, todas as pessoas uma hora morrem, até
mesmo eu, ou a mamãe, e até mesmo você, um dia, mas esse dia ainda está muito
longe.”
Eram visíveis as lágrimas que se
formaram nos olhos dela quando eu lhe disse essa última parte. Mas se fez de
forte, não queria chorar, queria continuar perguntando, saber mais.
“Mas e o que acontece quando as
pessoas morrem?”
“Bem, quando as pessoas morrem, os
corpos delas são levadas para um lugar como esse, onde as pessoas vão poder
visitá-las, onde elas vão poder descansar, mas mais do que isso, quando as
pessoas morrem elas continuam existindo dentro das pessoas que a amavam, nos
reflexos das coisas que ela fez em vida…”
“Mas isso eu já sei!” Disse ela
atingindo uma nota aguda num gritinho. “O que eu quero saber é o que acontece
com as pessoas de verdade! Mamãe diz que quando as pessoas morrem elas vão para
o céu, e encontram com as famílias delas que já morreram, e esperam os que estão
vivos chegarem…”
O que dizer frente a isso? Eu não
consegui articular nada, todas as minhas respostas foram coisas que não a
acalmaram, que não foram suficientes para combater a dúvida que eu mesmo
implantara nela. Depois disso, continuamos a ir para o cemitério, mas com menor
frequência, não era mais exatamente um lugar aconchegante, pelo menos não para
os meus pensamentos. Eu sei, no entanto, que ainda assim foi importante para
ela, que depois de ter ouvido minhas respostas ela mesma começou a pensar nesse
tipo de coisa, e a pensar de fato com alguma profundidade, da forma que fazemos
conforme vamos crescendo.
***
Bem, queridas pessoas que leem o blog,
o Yuri está longe, muito longe, e passará um bom tempo sem postar nada por aqui,
mas espero que quando ele voltar das terras que está aventurando, tenha muitas
estórias para contar e vontade de fazê-lo aqui.
A “produção” do blog, até lá, no
entanto, cai pelo menos pela metade, já que agora só eu estarei postando coisas
aqui, mas ainda assim, espero que vocês continuem visitando, e comentem, deem
ideias de coisas que possa fazer enquanto meu companheiro de empreitada está
longe, coisas que vocês possam querer ver por aqui.
Pretendo não ficar mais tanto tempo
sem escrever aqui, até mesmo para dar uma certa preenchida nas lacunas, então
até logo!
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