quinta-feira, 30 de setembro de 2021

lexicologia

 Não inventamos ainda uma linguagem suficiente para o tanto de amor de que precisamos. Recorremos, então, à metonímia: recolhemos aqui uma violência, ali um silogismo, para lá uma convenção, e essas coisas vão virando nosso vocabulário. 

Há quem recuse essa linguagem torta para o amor.

Há quem queira amar sempre apenas literalmente. 

Eu talvez esteja entre estes, mas não tenho certeza. Já tive, hoje não tenho mais. Não inventei ainda uma matemática suficiente para o número das minhas incertezas.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

It is not night when I do see your face

eu posso pouco, amada, num mundo tão seco
sou muito anfíbio pruma época tão árida
sou tão quebrável numa cidade tão sólida
não me conformo ao mundo, o que há de mim eu perco

nesse sítio de mim, nesse estado de cerco
que me impõe a sequidão de nossa época
me secaria até a forma mais esquálida
se não tivesse em ti um tesouro em segredo:

que me encoraja, de forma que já não cedo
que me desperta, manhã de verão tão cálida
sacia minha sede, mesmo a que é mais ávida
tu és meu pouso, amada, o fim do meu degredo

Por tua luz enxergo, por teus trilhos piso
Nunca é a seca quando eu vejo teu sorriso

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

não precisa se consternar, pequenina
diante da imensidão desse abismo escuro

Isso que te dói como se fosse um minúsculo corpo humano é, na verdade

o elo de uma corrente inquebrável
a palavra encantada de um feitiço
o fóton de um rastro luminoso

que se estende infinitamente de desde o início dos tempos

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Faria na Fortaleza de If

eu nunca soube ler o coração das pedras;
você sabe muito bem, conhece
muitos dos subsolos em que já me perdi
e há muitos ainda a respeito dos quais nunca lhe falei;

nunca soube

sempre pretendi, isso sim,
saber ler o coração dos seres humanos
como se fossem livros abertos
(também os livros sempre pretendi
saber ler muito bem,
mas isso não vem ao caso)

por isso me ferem estes dias em que
os corações se embaralham, minhas vistas se embaçam
e é difícil saber onde termina o humano
e onde começa a pedra


sábado, 18 de setembro de 2021

por ocasião do centenário de Paulo Freire

propagam: este é um mundo de vileza
mas isso é o natural da vida
o desamor é a regra sem saída
a humanidade está num ciclo presa.

respondes: não! não é da natureza
humana (ou divina!) que se forma
a aberração, travestida de norma,
que nega ao mundo sua boniteza;

há que se ler o mundo até o tutano,
sem ser bancariamente conformado;
e ler o mundo junto a toda gente!

pra constatar que o que há de mais humano
é perceber no mundo o inacabado
e ainda assim amar profundamente

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

o polido é guardar cada uma das paixões em uma pequena caixa, uma já usada, feita de tábuas velhas, de preferência um tanto suja de areia e lama; depois, pincelar a caixa com gordura, ou óleo, ou vaselina, ou o lubrificante que se tiver à mão; abrir um caminho através do umbigo até logo abaixo ou logo acima do estômago, onde ficar menos cômodo, e colocar a caixa lá dentro. 

suportar então, em silêncio, os arranhões e as fisgadas, a aspereza, a lubrificância se esvaindo e as consequentes úlceras.

silenciosamente, educadamente, graciosamente.

vem um dia um mergulhador incauto; nos mata; nos abre a barriga; de dentro de nós retira a pérola.

domingo, 12 de setembro de 2021

Um embrião

Você pode querer esculpir na minha testa

Palavras sagradas

ou nomes profanos


Você pode fazer escorrer a tinta e o sangue

Até que meus olhos não possam ver mais nada,

minhas narinas não consigam mais inspirar o sopro da vida,

e de minha boca só saiam gurgulhos ininteligíveis


Ainda assim, continuarei em marcha

O nome santo da Verdade está gravado em mim

em camadas mais profundas.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Liturgia

Não posso prometer aos que me peregrinam

estradas secas, caminhos planos

Mas brotam às margens das minhas trilhas

muitas fontes cristalinas

(todas elas sagradas)


Não há templo suficiente para

a religião que escorre de mim

A única liturgia possível é a da água

que entra e sai da terra

que escava a terra

que dela escapa

que sublima e chove

 

Sou incapaz de gestar pelo tempo certo

os rios que há em meus subterrâneos

(mesmo os que gerei com mais cuidado)

Sob qualquer chuvisco

transbordo