segunda-feira, 27 de julho de 2020

sonetralhadora #1


o gringo bilionário ele nos pisa
em nome de um futuro imaginário
e já mais nada nos escandaliza
é corriqueiro viver no calvário
 
o rico nacional contemporiza
o dono da TV fica no armário
solta matéria ou outra, sempre lisa,
contando com que a gente seja otário

longe de Deus e dos gringos tão perto  
no nosso continente não é novo
que a vida torne em estado de sítio

mas há de tudo ir pro lugar certo:
o Evo vai de volta pra seu povo
E o musk pra uma guilhotina a lítio

domingo, 19 de julho de 2020

A guerra II


Bota a viola no ombro, camará                    Bota a viola no ombro, camará
Mas leva a espada do lado                            Mas não bote qualquer preço
Porque o tempo do tempo já passou          Pelo avesso do avesso do avesso
Está dessincronizado                                     Nos dão o avesso do avesso

Bota a viola no ombro, camará                   Bota a viola no ombro, camará
Mas deixa o escudo por perto                     Antes que o ombro te pese
Porque o tempo da certeza já passou        Não tem cantiga que cure a escravidão
E duvidar é que é certo                                 Nem teoria, nem tese

Bota a viola no ombro, camará                   Bota a viola no ombro, camará
Mas com o olhar vigilante                            Mas não bote seu receio
Venderam o dia de hoje, outra vez             A hora é de derrubar o furacão
Ele se foi lá pra adiante                                E ir pro meio do meio do meio

Bota a viola no ombro, camará                   Bota a viola no ombro, camará
Mas com o ouvido aguçado                         Torna o arado em espada
Dizem que o tempo da guerra já passou   Dizem que o tempo da guerra já passou
E que lutar é passado                                    E que a guerra é por nada



Mas o sangue dos nossos ainda escorre na terra

A guerra I


1.
Vento com cheiro de noite
Travestido de lua e de sangue
Permita a irmãs e irmãos celebrar esse instante

Dança no tom da viola
No sussurro da chuva que finda
Não foi criada canção mais bonita ainda

2.
Morte, irmã velha e sem rosto
Tão sozinha no meio da festa
Quem te escolheu pra ser musa de ainda outra gesta?

Mãe da seca que me assola
E da chuva que mata meu povo
Em meio aos raios de sol recomeça de novo

3.
Dispenso sela e arreio
Minha mão pesa mais uma espada
Mas contra o vento da noite, nada pesa nada

Por mais que a lua lhe esconda
E o tom da viola nos convença
É outra vida que cai pela mesma doença



Eu, que sou filha de um povo
Que se esconde no alto da serra
Já me cansei de lutar nessa guerra

quinta-feira, 16 de julho de 2020

 Onde você está garoto?
Olha para as paredes como se olha
 Horizontes
Onde está você garoto?
 Que eu não te vejo por aí
 Por onde anda e pisa 
 Para onde vão
suas palavras?
 De onde elas vem,
garoto?

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Dantès na Fortaleza de If II

(para o Zuni)

cole seu ouvido na parede, Edmundo
sou eu quem você escuta do outro lado
raspando a argamassa como se fosse um rato faminto

mesmo depois de todos esses anos, você continua um homem bonito
eu que nem posso te ver ainda, preso que também estou em minha cela
mas intuo que seus cabelos e sua barba agora sejam mais selvagens
e que seus olhos estejam fundos - como um lorde Ruthven, dirão um dia

não ouça o chamado da morte, Edmundo
escute a minha colher improvisada raspando a pedra
é uma voz menos doce, mas de promessas mais palpáveis
coma um pouco do seu pão, tome um pouco da sua sopa

nossos carcereiros não percebem
(isto foi vedado a eles)
mas nós somos seres humanos
estamos vivos
estamos sãos

escute como eu esmigalho diligentemente o calcário que nos cerca
é essa a essência de nossa profissão, e você bem sabe disso
uma a uma esmigalhar as pedras, botar o pó de lado
escondê-lo em nossa cela, arremessá-lo pela janela quando não há guardas vigiando
criar esses túneis apertados
pelos quais os seres humanos consigamos nos arrastar

quando eu comecei isso tudo, Edmundo, para mim só havia um propósito no escavar:
escapar da fortaleza de if, enfrentar, com os dentes e os punhos nus, se fosse preciso
Deus e o mar que ele inventou
e os homens que inventaram deus e o estado e as carabinas,
encontrar meu tesouro escondido nas cavernas de uma ilha perdida no meio do mar
e viver como um deus entre os homens, senhor de meus próprios homens e deuses e carabinas

mas agora, Edmundo, eu sei
que o que move meus braços a continuar escavando é o batimento de seu coração
enfraquecendo pouco a pouco na cela ao lado
sua respiração cada vez mais difícil e mais leve

coma seu pão e tome sua sopa, por favor
não tire de mim este farol

fugir sozinho de If é como tornar-nos nós mesmos em carcereiros
não seríamos mais capazes de reconhecer um ser humano
mesmo que estivesse sangrando em nossos braços

permanecer em If é como reconhecermos que os carcereiros têm razão
mas como pode haver razão em olhos
incapazes de reconhecer um ser humano
mesmo que esteja sangrando diante de si?

minha religião é escavar a argamassa e o pó todas as noites
enquanto não há carcereiros e carabinas fazendo seu barulho
pelo chão duro e úmido da fortaleza

meu Deus mora nas celas minhas vizinhas
ele agoniza com o peso das botinas dos guardas
e com a comida podre e o pão embolorado

minha teologia é relembrar a Deus de sua humanidade
encontrá-lo e repartir o que tenho
mesmo que seja pouco


coma seu pão, tome sua sopa.
a pedra ao lado de sua cama começa a deslocar-se
o pó da argamassa escorre ao seu redor
eu te amo
e breve estaremos juntos.