segunda-feira, 9 de outubro de 2017

galinha

(pro Daniel Minchoni, com um verso que roubei dele)


esse poema tem asas de galinha
e olhos de tamanduá bandeira
a boca é de um tatú, e a traseira
parece, mais ou menos, com a minha

quando eu era menor, lembro que eu tinha
um poema meio que dessa maneira
sem meio fixo e tampouco sem beira
o conteúdo só na entrelinha

fazer poesia em forma de quimera
por mais que use uma forma ultrapassada
é o jogo favorito que eu brinco

faria toda noite, se pudera:
brotar galinhas de uma só piscada,
parir, de sopetão, um ornintorrinco

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

oração para são francisco


francisco encontrou um homem
bem pobre numa sarjeta
nu velho e tiritando
despiu-se ele de seu manto
e deu para o homem pobre

francisco encontrou seu pai
e o bispo e a praça toda
e a fúria de todos eles
despiu-se ele de seu manto
da túnica e das sandálias
e deu-se então nu a Deus

francisco encontrou rufino
inseguro e temeroso
de pregar o Evangelho
dispa-se rufino! ordena
vá nu pregar a Palavra!

francisco encontrou o remorso
quem sou eu? pensa francisco
que condeno um irmão
a nu e só ir pregar
diante do povo todo?
despiu-se o irmão francisco
encontrou-se com rufino
e juntos e nus pregaram
a Palavra para o povo

francisco sentindo a morte
que em breve o encontraria
deu bençãos e pãos a todos
e palavras de conforto
e quando se aproximava
a sua hora derradeira
pediu aos irmãos me dispam!
me deixem morrer na terra
permitam meu corpo nu
pegar sua temperatura

rogai por nós pai francisco
pedi ao Eterno Pai
que a nós todos nos desnude 


terça-feira, 25 de julho de 2017

arqueiro

o meu desajustamento
é coisa há muito predita:
numa pátria de chuteiras
que só ri se a rede agita
prefiro antes o antigol,
e o gozo que ele suscita;
os meus três heróis de infância:
yashin, taffarel, higuita

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Tigre

os homens que com ferro nos matavam
seus dentes sabres balas e feitiço
se evaporaram diante da aurora:
são tigres de papel, e já nem isso

quarta-feira, 19 de julho de 2017

arquitetura forense



cada muro é um crime
não há um muro que não seja um crime
só paredes são santas
paredes nos protegem dos lobos
dos ventos e dos resfriados
mas os muros nos protegem dos homens

e por isso são um crime
nenhum homem é o vento ou a gripe
nenhum homem é os lobos

toda prisão é um genocídio
crimes empilhados sobre crimes
muros verticais e horizontais que
separam os homens da humanidade
e do sol

toda prisão é um genocídio
toda prisão não passa de
uma caixa de muros com homens dentro

o que é o lado de dentro de um muro?

se ainda há muros
é porque estamos todos presos

segunda-feira, 17 de julho de 2017

tudo o que pela minha boca escorre
(o pouco que de minha fome escapa)
escorre, estrebucha cai e morre
cumprindo fielmente cada etapa

todo esse suicidar-se me comove
e põe meu coração desritmado
a solução melhor: olhar pro lado
cuspir palavras mais como quem chove

o pouco que me escapa e sobrevive
(um pouco moribundo e envergonhado)
se afoga no que é o mundo e seu assombro
e sofre inevitável resultado:

ser sombra e o antônimo da sombra
ser nada e o antônimo do nada


quinta-feira, 29 de junho de 2017

quarta-feira, 28 de junho de 2017

globalização

uma boca alagoana
no trem de são paulo
vende o cacareco americano
provavelmente feito na china
com um nome italiano

ó o spíni o spíni o spíni

quinta-feira, 15 de junho de 2017

joaninhas

1.
o homem que morreu era tão grande
cobrindo imensa nuvem o horizonte
a tempestade mãe de nossas fontes
certeza de não morrermos de sede

o homem-nuvem era um gigante
voando sempre um pouco a nossa frente
puxando nossos passos pra adiante
involuntário como a gravidade

extinta sua gravidade aérea
os nossos passos ficam mais pesados
qualquer a frente soa arbitrário

extinta a generosa umidade
o nosso respirar fica precário
e a nossos olhos cabe a tempestade

2.
o mundo sem João não é o mundo
é cópia reprográfica do mundo
desadequada estéril derrepente

o mundo sem João é coisa insossa
comida com sabor de detergente
como se arroga o mundo de ser mundo
sem João rindo do mundo com a gente?

3.
tem gente que é parida de um tamanho
que o corpo não encaixa o conteúdo:
o todo é insuficiente para o tudo
o existir em si já é extranho

mas sendo extranho, que não seja mudo:
estando mudo, qual será seu ganho?
melhor parecer louco que rebanho:
extranho louco feio cabeçudo

em ti achei o espelho em que me banho
e apercebi que nosso ser extranho
é extranho de bonito, sobretudo
4.
assim como os seus meu par de óculos
o dia passa entre odisseias
viaja desde a ponta do nariz
à ponte entre olho e as sobrancelhas

assim como o seu esse meu rosto
se desfigura pra cada sorriso
os olhos se escondem de vergonha
do dente amarelo e impreciso

assim como os seus os meus chapéus
reclamam por um dono cuidadoso
e como seu cabelo assim o meu
varia entre o bonito e o seboso

assim como o seu quero meu corpo
em morto enterrado em roupa preta
pra já descer da barca de caronte
malhando de porrada o capeta




quarta-feira, 3 de maio de 2017

poética


tem duas etapas
o nosso ofício;

repita sempre
pra não esquecê-las:

engolir dragões,
vomitar estrelas;

engolir dragões,
vomitar estrelas



(para o Pedro, que entende dessas coisas)

quarta-feira, 26 de abril de 2017

sociologia e oncologia

o câncer que era outrora tão incólume
- pequena mancha entre nossos dedos -
tomou nossas defesas de assalto
ganhando proporções assustadoras

as veias e artérias que ainda restam
trabalham todo o dia incessantes

garantem que os tumores se alimentem
e que as células podres proliferem

os nossos brônquios dia e noite lutam
pra ver ricos tumores respirando
desde a orelha até os calcanhares

não somos mais um corpo com tumores
tudo o que há em nós é para eles
e mesmo nossas mãos a eles servem




segunda-feira, 10 de abril de 2017

quando roma cair


é vital que nos lembramos que
quando roma cair
o fogo e a fumaça não cairão sobre as cabeças dos patrícios

não cairão, veja bem

eles já casam seus filhos com as filhas dos visigodos
e seus netos já aprendem a cavalgar com os mongóis
e eles já tem negócios lucrativos e grandes fazendas para descansar na gália

enquanto comemoramos a queda de roma
e enquanto comemoramos seu incêndio
talvez o sobrinho de um ou outro senador seja mutilado
talvez os francos queiram a cabeça de uma ou outra matrona da cidade eterna
e talvez os soldados bárbaros como nós deflorem vestais de nobres famílias

mas a maioria dos senadores levarão consigo na bagagem seus sobrinhos e matronas e vestais
para algum lugar tranquilo no mediterrâneo ou no caribe
onde também terão escondido todo seu dinheiro
e quando as chamas baixarem e
estiver moribunda a itália e
de alguma outra cidade levantar-se um imperador
então os senadores levarão consigo sua bagagem e seus filhos e suas mulheres
e agora serão duques ou mandarins ou deputados

quando roma cair
o fogo e a fumaça cairão sobre as cabeças dos pequenos
dos órfãos romanos e das viúvas romanas
e dos bárbaros desavisados que moram em roma e se vestem como romanos

é vital percebermos
e constantemente nos lembrarmos uns aos outros
que o critério do fogo e da espada não é a nacionalidade
é meramente o tamanho

é vital que nos lembremos de tudo isso
quando roma cair

(fotografia por lexwissink)