quarta-feira, 11 de julho de 2012

Mayhew Boys, Attaway Girls – Pt. 1

Já faz um tempo que não escrevo aqui. Grande parte da culpa por isso é do semestre, da falta de tempo e dessas coisas. Uma pequena parte, no entanto, se deve a estar envolvido com um outro projeto. Alguns meses atrás algumas pessoas de RI tiveram a ideia de criar um jornal, e eu claramente faço parte dele. Já saíram da prensa internética três edições, que você pode conferir aqui. Todas as edições tem mais de um texto meu, então acabei me concentrando lá, e deixando aqui um pouco de lado. O Yuri também faz falta como estímulo. Mas o importante é que agora estou com um tempinho e vou tentar escrever pelo menos algumas vezes antes que a ampulheta volte a girar e o pêndulo se aproxime da minha garganta querendo cortá-la.

Percebi que essa estória vai ser mais longa do que imaginara inicialmente, então será cortada. Inicialmente em três partes. Todas serão postadas aqui ainda esse mês, espero.

***

1 – Onde conhecemos os Mayhew, e nosso nêmesis.

Alphonse Maria Mucha - Flirt _calendar_Lisonjeados, os irmãos Mayhew saíram do grande salão. A arquitetura do lugar deixava claro sua importância, dava importância para tudo de acontecia ali, de uma forma bastante soturna. Devia ter sido construído em algum momento do reinado de Charles II, logo depois de Cromwell. Os irmãos ficavam um tanto atônitos ao imaginar como uma família com um sobrenome de origem tão comunal como Attaway podia ter posse de um casarão como aquele, de um salão de tanta gravidade histórica. Ou melhor, isso passava pela cabeça de apenas um dos irmãos, David. Era o mais racional dos irmãos, o único que conseguia pensar em diversas coisas ao mesmo tempo. Lucas era diferente, era fácil perceber, enquanto o vemos subir à carruagem de aluguel, que tudo que ele viu ou ouviu naquele lugar não deve ter causado nenhuma impressão em sua memória, estava com o exato mesmo ar avoado que tinha ao chegar.   Era uma espécie de humilhação, para eles, ter ido fazer um pedido de casamento em um Hansom, um taxi comum, e não num Ladeau, como a situação – e as pretendentes – exigiam. Mas estavam apaixonados e não tinham dinheiro. E, no fim das contas, tinham até mesmo sido lisonjeados. Lucas não conseguia pensar direito nisso, era claro, não conseguia pensar em outra coisa que não sua amada Flora já a meses. David, no entanto, achava tudo aquilo muito estranho. Mr. Attaway os havia recebido cordialmente, mas de forma alguma havia sido caloroso. David achava mesmo que alguns dos tramites normais da situação provavelmente haviam sido deixados de lado: nada de serviçais servindo bebidas, nem como aperitivo nem como comemoração, nenhuma das filhas por perto. Tudo muito estranho. É claro que David também estava tão embriagado de paixão quanto seu irmão. E estava imensamente feliz por ter conseguido a mão de Laura. Mas fora muito rápido, muito frio. Não haveriam dotes nem nada do gênero, isso era de se esperar, mas Mr. Attaway também não demonstrara nenhum interesse em garantir que as filhas teriam uma vida decente, mesmo que não no mesmo nível de elegância ao qual estavam habituadas.

Era de se esperar que Mr. Attaway já houvesse se inteirado por completo da situação financeira dos irmãos, mas ainda assim era incomum que não tivesse feito qualquer pergunta, qualquer ressalva. Se atendo completamente aos fatos, David não acreditava que Mr. Attaway fosse permitir que não apenas uma de suas preciosas filhas, mas sim duas delas, se casassem com os Mayhew. Eles era, bem-apessoados, e tinham muito cuidado de passar a impressão de jovens promissores e estáveis, mas não era difícil saber que isso não era exatamente verdadeiro. Quando Mr. Mayhew falecera, quase dez anos antes, deixara uma herança que poderia sustentar apenas um filho, numa vida confortável mas desprovida de luxos. Os dois irmãos Mayhew, no entanto, dividiram o recebido igualmente, como gêmeos. Sempre foram muito afeitos um ao outro, e nenhum deles teria coragem de reclamar a herança inteira, com medo de perder tal cumplicidade. Ao chegarem em casa – que parecia ter o dobro da idade da dos Attaway, dado seu desgaste, mas que na verdade não devia ter nem mesmo um terço disso – os irmãos foram diretamente contar as boas novas à matrona. Mrs. Mayhew lembrava a Rainha Victoria. Ambas estavam por volta dos 60 anos, e embora Mrs. Mayhew parecesse bem mais velha, a semelhança era inegável. A gorda matrona recebeu as notícias calada. Sentada na poltrona velha ouviu os filhos narrando todos os detalhes, ouviu Lucas falar e repetir centenas de vezes elogios a Flora, o rapaz divagava, tinha planos idílicos e parecia ainda não perceber que casamentos naquela época eram muito menos românticos do que imaginava, que a vida de casado não tinha uma proteção mágica que impedia o acontecimento de coisas ruins. David estava mais calado, perdido em pensamentos. Foram assim desde pequenos, Lucas era muito otimista e David nunca conseguia realmente aproveitar as conquistas que obtinha, simplesmente criava algo em sua mente que dizia que algo de ruim deveria vir com aquilo. Podia ser cautela, mas era exagerada. No entanto, dessa vez o olhar de Mrs. Mayhew se prendeu em David, que não percebeu isso por estar muito perdido nas suas preocupações precedentes.

Diante da euforia de Lucas, os medos de David acabaram se colocando de lado. No fim da noite os irmãos já estavam ambos tranquilos e alegres. Se não na mesma medida, em uma bem semelhante. E foi com esse espírito que cada qual foi para sua casa. Casas essas ainda menores e mais envelhecidas pelo tempo, pela chuva e pela fumaça que a casa de seus pais, perto da qual pareciam dois ovos sob a galinha. A verdade é que tais casas serviam para pouco mais que dormir, a maior parte do tempo os irmãos Mayhew ainda passavam na casa onde haviam sido criados: as refeições, as confabulações, até mesmo encontros de negócios. Mas, à noite, com a parca criadagem dormindo no anexo e os filhos longe, a casa era unicamente de Mrs. Mayhew e do fantasma de Mr. Mayhew.

Tarde da noite, Mrs. Mayhew foi até a porta do casarão. A abriu como se soubesse que alguém se encontrava ali. E, realmente, alguém ali estava. Um homem alto e magro, os cabelos de um ruivo não-natural, não daquele ruivo fogo que é fácil de se encontrar, mas de um vermelho sangue, completado com verdadeiras listras de cabelos grisalhos. O homem vestia trajes justos, o casaco, a calça e a gravata eram pretas, com listras vermelhas, o colete, ainda mais chamativo era de um tom de vermelho muito próximo do da cor do cabelo, com listras amarelas. Apenas a camisa branca era realmente adequada. Como um todo, o modelo era antiquado, impróprio para um cavalheiro. Mas o homem não era um cavalheiro: é de conhecimento geral que um cavalheiro não usa listras, listras são a vestimenta do diabo. De longe, tal figura já chamaria bastante atenção, mas os que se aproximassem iriam se assustar ao ver os olhos de cores diferentes. Não era uma combinação comum, nada de um olho verde e outro azul ou castanho, não. Um dos olhos era esbranquiçado, talvez cego, mas imóvel como um olho de vidro e o outro, de longe poderia disfarçar-se como sendo castanho, mas de perto era claramente vermelho. Nenhuma carruagem se encontrava ali, o homem parecia ter chegado a pé e exibia um sorriso sarcástico e de dentes tortos.

Sem nenhum palavra, Mrs. Mayhew fez um sinal para que o homem entrasse. E ele obedeceu, ainda com o sorriso no rosto, girando a bengala de ébano no ar. Ambos seguiram silenciosamente para o grande salão, onde Mrs. Mayhew se sentou na sua poltrona, sob o retrato do falecido marido – um homem gordo e careca, com o rosto tão completamente ocupado por um sorriso de orelha a orelha e por um nariz aterradoramente grande que os olhos pareciam dois pequenos pontos perdidos no rosto – e encarou o visitante, que ficou a caminhar em círculos pela casa.

“Eu sei porquê você veio, mas ainda é cedo, Old Nick.” Disse Mrs. Mayhew para quebrar o silêncio. “Se é que ainda posso chamar de Old Nick alguém que é visivelmente mais jovem do que eu.”

“Ah, bruxa velha, você não passa de uma criança para mim.” Disse o homem, num tom leve, sem se desfazer do sorriso. Sua voz era suave e aveludada. “Mas você sabe qual o acordo. Você tinha três desejos, todos eles se realizaram, agora não há nada que te prenda a este lugar.”

“Hum, aprendi com você a ser cautelosa nos negócios. Nada me garante que minha última solicitação foi atendida.”

“Ah, como ousa! Por acaso não cumpri devidamente nossos dois acordos anteriores? Se me lembro bem, ha quase 50 anos uma jovem foi até o bosque pedir minha ajuda para fazer com que seu amado retribuísse seu amor. Que criança tola era aquela, se embrenhou dentre as árvores pois achou que eu não poderia ir até a casa dela!” E aí o homem soltou uma gargalhada assustadora e alta, que poderia acordar todos os criados, e mesmo os vizinhos, não fosse também uma gargalhada enfeitiçada. “E ainda mais tola de ter ido até lá por um homem como esse, que poderia ser seu com um simples abrir de pernas." A bengala de ébano apontava para o retrato de Mr. Mayhew. “Quarenta anos depois, a mesma criança, embora agora estivesse com os cabelos embranquecidos e não fosse mais burra o suficiente para ir me procurar nos bosques, essa criança me fez um segundo pedido. Ela não queria se separar do homem que amava, o homem que morria enquanto ela falava comigo. Ainda assim, apesar de todas as dificuldades, eu cumpri minha parte do contrato, a menina casou-se com o homem e, quando ele morreu, não se separou dele.”  E então o homem apontou para o fantasma de Mr. Mayhew, encolhido em um dos cantos do salão, até agora despercebido. “E ainda assim você duvida que vou cumprir com a última parte do contrato, criança tola?”

“Cale a boca, você não está aqui para se vangloriar das suas capacidades ou dos acordos que cumpriu no passado. A última parte do acordo dizia que meus filhos iam se casar com mulheres ricas, que iam ter suas vidas garantidas por isso. Hoje eles receberam as mãos dessas mulheres, mas ainda é cedo para que eu lhe pague por seus trabalhos, o casamento ainda não foi realizado.”

“Que seja, então, velha. Voltarei na noite de núpcias de seus rebentos para tomar o pagamento que é meu por direito. E então você não terá mais formas de protelar, que fique bem claro.” Irritado, o homem chamado Old Nick foi até a lareira e lá se desfez em labaredas do mais intenso dos vermelhos, sem esperar respostas.

O fantasma de Mr. Mayhew se aproximou de sua esposa. O próprio andar do fantasma demonstrava como ele se sentia humilhado da condição na qual se encontrava. O olhar que lançava a Mrs. Mayhew era de pura reprovação. Mas ainda assim tentou abraçar a mulher enquanto essa chorava lágrimas silenciosas. Em vida, Mr. Mayhew fora um homem muito querido por todos, o sorriso e o nariz, ambos enormes, que apareciam no seu retrato tinham uma parte considerável da culpa por isso, mas era também espirituoso e muito afetuoso com todos. Compreensivo e progressista. Mrs. Mayhew quando jovem era uma mulher livre, e se encantara por Mr. Mayhew exatamente por encontrar nele um homem que não desprezava as mulheres, como muito se fazia naqueles tempos. Com o andar do reinado de Vitória as coisas apenas pioraram nesse sentido. No entanto, Mrs. Mayhew acreditava que seus filhos haviam absorvido bem o exemplo que lhes passara o pai. Desde que Mr. Mayhew falecera, cerca de dez anos antes, seu fantasma passara a ocupar a casa. Cuidadosamente educado nas artes de ser um fantasma, pelos conhecimentos da esposa, Mr. Mayhew era visto apenas por ela.  Não era do tipo de fantasma que assombra casarões, era do tipo de fantasma que vive pela metade. Mas isso pode já ser dito de muitas das pessoas vivas.

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