É pouco prudente – dizia algum ditado tortuoso dos
bores, ou que se atribui a eles – é pouco prudente mastigar a folha de uma raiz
que não se conhece. Mas eu não sou um bor, e já não há mais nenhum País dos Bores
para sustentar que seu método de prudência tenha sido eficaz. Não há. Isso
dado, posso me arriscar a tentar contar uma estória como essa: a de antes mesmo
de haver um mundo.
E aí é que aparecem as folhas sem raiz visível: antes
de haver o mundo, não havia a humanidade, nem ninguém disposto a ficar com as
nádegas e as córneas doloridas, escarafunchando registros antigos e organizando
cronologias discrepantes para rabiscar em rolos de pergaminho bem catalogados
uma História do que quer que fosse. Nem havia rodas onde os mais velhos
cantavam canções sobre os feitos passados; nem havia pedras para se empilhar
umas ao lado das outras, à maneira dos povos da serra, com estórias codificadas
em padrões intrincados; nem havia quem inventasse canções, polisse pedras ou
fabricasse tintas e pergaminhos.
Aos súditos respeitáveis de Sua Majestade Imperial
resta ir a um templo do Sol para ouvir histórias desse tempo remoto, mas elas
são incompletas: são contadas conforme a tradição dos pequenos deuses que
vieram do Sol e das Luas, e de outros deuses ainda menores, nossos
conterrâneos. Mas esses pequenos deuses não estavam lá, antes do início do
mundo. Tampouco estavam lá os grandes deuses, que lhes sopraram a vida e essas
histórias do começo do mundo em suas orelhas. E mesmo os grandes deuses
contavam histórias contraditórias entre si, e os ecos de sua contradição
permanecem, mesmo que os deuses mesmos estejam agora desaparecidos.
Além de toda contradição, sabemos apenas que os
maiores entre os grandes deuses despertaram sozinhos, cada um em uma Ilha no
imenso Mar de Nada. E ao olharem ao seu redor, tinham apenas consciência de sua
solidão, e um desejo por encontrar o que quer que houvesse nas Ilhas distantes
que seus olhos divinos sondavam. E ao olharem para dentro de si, sabiam apenas
de uma saudade de ser o que havia antes de seu despertar. No fundo de sua mente
havia um brilho primeiro, a consciência de uma Estrela.
Cada um dos grandes deuses inventou para si o que
significava essa Estrela, essa Deusa Velha anterior a todos eles. E a história
de suas invenções contaremos depois. Mas há uma invenção mais antiga que
qualquer uma dessas, uma que se inventou antes mesmo do início do mundo, quando
ainda havia a Deusa Velha Primeira, a Estrela.
Para conhecê-la, é preciso bater nas portas certas das
noites da Cidade dos Homens, onde templos domésticos se improvisam à luz de
velas amareladas. Lá se compartilha a tradição das pequenas deusas da morte,
que vêm carregar o espírito dos mortos para além do Mar de Nada, até as mansões
de seus ancestrais nas estrelas distantes. Elas nasceram do Jaguar, que habita
nas praias extremas do Mar de Nada, mas que é anterior ao Mar e suas praias.
Ele é, das coisas que há, a única que conheceu a Deusa Velha Primeira, a Menina
Leoa, a Estrela. De sua mãe, o Jaguar, as pequenas deusas da morte contam essa
história:
Quando o Jaguar abriu os olhos pela primeira vez, só
havia ao seu redor a névoa, no qual boiava. O Jaguar sabia, de alguma forma,
que ele era ele mesmo, como a névoa, feito de nada, mas havia alguma coisa em
seu núcleo, misteriosa e feita de não-nada. Essa coisa regia às partículas de
nada que o compunham, a elas impunham ordem e forma: A cabeça do Jaguar era
comprida, como a de um tapir ou um dragão - que eram bichos que não havia
ainda; seus olhos eram dois pontos vermelhos e reluzentes como rubis - que
também não havia. Sua juba flutuava sem ordem, arrastando atrás de si ondas
cinzentas da névoa. Seu corpo era longo e esguio, e mal se percebia onde
terminava e onde começava sua longa cauda. Ele era todo cor de relâmpago - os
quais também ainda não havia - desde a ponta dos chifres à ponta das garras,
desde o focinho até a cauda, ainda que em tons variados de relâmpago: relâmpago
claro no focinho; relâmpago elétrico na juba; relâmpago tempestade na cauda,
cujas escamas o iam tornando progressivamente um tom de relâmpago submerso.
Naquele
tempo, o Jaguar não entendia exatamente que havia um limite para si mesmo no
mundo: ele olhava para todos os lados e só via o cinzento escurecido que era a
névoa, e o relâmpago de sua cauda e da ponta do seu focinho, mas não pensava
nessas coisas como separadas. Se ele tinha vontade de esticar sua pata, ela se
esticava. Se ele tinha vontade de que a névoa de nada ao seu redor se agitasse,
bastava chacoalhar sua cauda. Ele era ele, e era também a névoa, e não percebia
que havia qualquer distinção entre as duas coisas, pois sua vontade nunca era
contrariada.
Então o
Jaguar se sentiu só, e entediado, mas como ainda não tinha inventado palavras
para isso, nem para mais nada, ele só sabia de um mal-estar dentro de si, nas
suas divinas entranhas de Jaguar: sua vontade pela primeira vez foi
contrariada, mas não de um jeito que lhe deixasse menos só: pois eram suas
entranhas que insistiam em sentir aquilo, e ele de alguma forma sabia que
aquelas entranhas eram definitivamente ainda ele. A fera divina tentou então
fechar os olhos e voltar a dormir, mas isso de pouco serviu: não lhe fora dado escolher
quando dormia ou quando acordava; e mesmo quando dormia, era perseguido por um
sonho terrível, em que ele era o Jaguar, flutuando solitário pelas névoas
feitas de nada.
Ocorreu a ele que talvez não fosse parte da névoa, mas
apenas uma coisa separada, boiando nessa bruma, e que talvez houvesse outras
coisas boiando como ele. Primeiro, ele ficou parado por algum tempo – não que
ele tivesse qualquer ideia de tempo – imaginando se desejaria encontrar alguma
outra coisa no meio da neblina, e se pegou pensando sobre o que aconteceria se
ele desejasse que ela erguesse a cauda ou esticasse as patas. Imaginou depois o
que aconteceria se essa coisa, por sua vez, desejasse que ele erguesse sua
cauda ou esticasse as próprias patas, ou balançasse seu longo focinho. Um
arrepio percorreu seu corpo comprido, desde a juba até a ponta mesmo de sua
terrível cauda; mas a solidão era maior do que o temor, e o Jaguar começou a
nadar.
Como a língua primitiva dos deuses não tem palavras
para designar a passagem do tempo, as pequenas deusas da morte nunca souberam a
duração dessa busca de sua mãe por companhia; sabem apenas que ele nadava, e
então dormia, e sonhava que estava nadando, e então acordava e nadava
novamente. Até que, durante um de seus sonhos, o Jaguar começou a sentir uma
sensação que nunca sentira antes, que era calor. Não havia encontrado antes
nada quente ou frio na névoa, suas ondas cinzentas tinham a mesma temperatura
em toda parte, que era a mesma temperatura do corpo da fera divina, mãe das
deusas da morte.
O calor despertou o Jaguar de seu sono, e seus olhos
contemplaram à distância um minúsculoo ponto de luz, de onde o calor parecia
emanar. Ele experimentou desejar que a luz se movesse, ou que o calor aumentasse
de intensidade, mas nada aconteceu. O que quer que fosse aquilo, estava além da
sua vontade, e não era ele mesmo. Deslocando-se vagarosamente, serpenteando seu
corpo pelas ondas cinzentas, o Jaguar começou sua longa jornada em direção
àquela luz.
Conforme o ponto de luz aumentava de tamanho, e o
calor de intensidade, o Jaguar percebeu que a névoa também se agitava. Ela
fluía cada vez mais rápido, como se fugindo da fonte daquele brilho, e o Jaguar
se viu obrigado a nadar com mais intensidade, e fazia o possível para não
adormecer, pois cada vez que acordava havia sido levado pela correnteza para
mais longe de sua meta. Por um tempo que não se pode calcular a fera nadou
contra a corrente, até que as brumas se dissiparam, e ele pode chegar perto o
suficiente da fonte de luz para perceber do que se tratava:
Era Ela: a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a
Estrela. O Jaguar nunca fora hábil para nomear o que seus olhos viam, e por
isso não conseguiu nunca fixar um nome adequado para a fonte daquela luz. E
tampouco sabia fazer as palavras o obedecerem para descrever as formas das
coisas, por isso tudo o que as pequenas deusas da morte sabem é que de alguma
forma a fonte de luz era quente e linda, e tinha olhos que atraíam tudo para
sua órbita e davam ao Jaguar a sensação de que a vida despertaria de dentro de
seu corpo feito de nada e explodiria em mistérios além de sua compreensão.
As línguas do mundo seriam talvez diferentes se a
Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, tivesse ela sobrevivido, ao
invés do Jaguar. Porque ela precisou dar apenas um nome à fera divina, mãe das
deusas da morte, e era um nome tão preciso; não há nada mais Jaguar que seu
focinho de tapir e seus olhos de rubi, nada mais Jaguar que seu corpo de
relâmpago e sua fome do tamanho de uma tempestade. O Jaguar, no entanto, só
nomeava por metonímias e aproximações: e percebia o que havia de Estrela, e de
Menina Leoa, e de Deusa Velha primeira em sua contraparte; e lhe deu esses
múltiplos nomes, todos espelhando ou sombreando aspectos incompletos de seu
existir. Mas a Deusa escolheu entregar-se à própria destruição, ao contrário do
Jaguar, então as línguas do mundo são todas sombras e espelhos com que tentamos
agarrar alguma coisa do que existe em meio a tantas coisas que parecem só
existir enquanto colocamos palavras nelas.
Por um tempo incontável, o Jaguar e a Deusa Velha
Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, encararam-se admirados da existência um do
outro, e de si próprios, por consequência. O Jaguar desejou levantar e baixar
sua própria pata, e a pata obedeceu; quando desejou, porém, que os dedos das
mãos da Deusa se retraíssem, ou que os olhos d’Ela se fechassem, foi em vão.
Mas conforme ele baixou e levantou sua própria pata ela, em resposta, baixou e
levantou sua mão direita, e o Jaguar imaginou que ela fosse pelo menos como as
ondas da neblina, que respondiam aos movimentos de sua juba.
Até que uma palavra saiu da boca da Deusa. ‘Jaguar’. E
ele percebeu que ela era mais que as ondas do Mar, porque elas nunca faziam
nada antes que ele movesse a própria juba. E aqueles olhos dela tinham com
certeza uma vontade que não era dele, e o Jaguar imaginava se ele próprio
também teria olhos, e se eles também arrastariam tanto para dentro de si. E por
um tempo incontável, porque eles nunca se preocuparam em inventar palavras para
contar o tempo, o Jaguar e a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela,
inventaram palavras e gestos para tentar entender o que eram, o onde terminava
um e começava outro, e se havia alguma coisa além deles dois.
Concluíram que sim, nos dizem as pequenas deusas da
morte, cuja mãe é o Jaguar. Segundo elas, inventaram os dois a ideia de que
havia, por um lado, a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela; por outro
lado, o Jaguar; e entre eles dois, e ao redor deles, a névoa, que ia se
espessando conforme se afastava. Nunca conseguiram se decidir se a luz que
emanava da Estrela era parte mesma da Estrela, ou outra coisa. Não sabiam
dizer, tampouco, se a força de seus olhos, de arrastar tudo para si, ou a força
de sua voz, que emanava para além de si, significava que seu olhar ou sua fala
estendiam seus eus para mais além deles mesmos – mas intuíam que sim. Por muito
tempo também, tentativamente, debateram se poderia haver na névoa alguma coisa
além de névoa: alguma outra coisa que tivesse talvez olhos, ou talvez voz, ou
que emanasse de si luz e calor, ou que soubesse nadar pelas ondas da bruma. Até
que sentiram nascer em si uma sensação que resolveram chamar de uma vontade:
era a vontade de mais do que derramar uma luz que seria arrastada para dentro
dos olhos do outro, ou de falar uma voz que entraria por seu ouvido. Eles nunca
haviam tocado qualquer coisa além da névoa, que era feita de um nada bem tênue,
ralo. Mas sentiam no formigamento da ponta de seus dedos, ou de suas garras,
que poderia haver ali outra forma de sentir. Disseram isso um ao outro, quase
ao mesmo tempo.
Ficaram em silêncio, por algum tempo.
Então, o Jaguar começou a torcer seu corpo para fazer
vibrar a névoa ao seu redor, ao mesmo momento em que a Deusa Velha Primeira, a
Menina Leoa, a Estrela, ensaiava dar uma braçada e bater suas pernas na bruma.
Os dois nadaram pela névoa, vagarosamente, incertos de tudo, exceto do chamado
que exerciam um sob o outro. Pararam a uma distância tal um do outro que sabiam
que, se estendessem os braços, a ponta da unha da Deusa encontraria a ponta da
garra do Jaguar. Mas nenhum dos dois estendeu o braço ainda.
Os deuses primordiais eram muito mais cuidadosos, você
veja, que os deuses que vieram depois. Ainda não tinha sido inventada a morte,
então não tinham consciência de sua imortalidade. O que faziam era não falar
palavra nenhuma, e saltar seus olhos dos olhos da outra divindade para a ponta
de seus próprios dedos, e para a ponta dos dedos do outro, e de volta aos olhos,
e de volta aos dedos, vagarosos como só quem não inventou o tempo pode ser.
Imperceptível como uma onda de nada, o Jaguar
movimentou sua garra, quase ao mesmo tempo em que a Menina Leoa, a Deusa Velha,
moveu a sua. Aproximaram-se. Sentiram medo, pois à medida que se aproximavam as
mãos, aumentava a vontade de se encostarem, como aumentava também a força
secreta da maré de nada, repelindo-os um do outro. Mas o que podia a maré
contra sua divina vontade?
A cada infinitesimal milhar de quilômetro que atravessava
sua mão em direção a seu amigo, a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a
Estrela, sorria – apesar do vento e da maré revoltos arremessarem seus cabelos
para todos os lados, e fazerem sua pele sentir pela primeira vez a pressão de
algo que poderia destruí-la. Mas essa luta entre o medo e a vontade era muito
mais difícil para o Jaguar. Seus olhos vermelhos agarravam-se aos da Deusa,
sabiam que se hesitassem, se se voltassem para qualquer outra direção, o Jaguar
nadaria apavorado para longe, e talvez nunca mais pudesse se aproximar do calor
de sua companheira. Ainda assim, avançava em velocidade cada vez menor – temia
que, tanto quanto sua fuga, o contato entre eles dois significaria que nunca
mais se veriam. Notou, enfim, que a Menina Leoa não se aproximava mais.
Ela teve que inventar uma nova palavra para perguntar
algo como:
Você tem medo?
Ele, por sua vez, pensou por um tempo que não se pode
contar, para entender o que a nova palavra significava:
Sim.
O que te causa o medo? O mar? O vento?
A sensação em minhas escamas, no meu couro, que o mar
e o vento causam. Quanto mais me aproximo de ti, mais me agridem. Sinto que vou
deixar de ser. Eu não quero deixar de ser, para poder continuar te vendo, e
para poder continuar conversando contigo.
O Jaguar percebeu que fazia a Deusa Velha Primeira, a
Menina Leoa, a Estrela, encontrar essa ideia em seus pensamentos pela primeira
vez. Mas depois de passear com seus olhos dourados de um lado para o outro, ela
respondeu:
Não acho que possamos deixar de ser. Talvez, só
passemos a ser uma coisa nova. E o que quer que seja a coisa nova, vai ser como
a primeira vez que te vi, nadando contra a correnteza da bruma. Eu não era a
mesma coisa que sou antes de te ver – ela tropeçava na própria voz conforme
inventava o pretérito, mas o Jaguar a compreendia, porque suas palavras eram
sempre precisas – eu não inventava palavras, e não sabia de nada que pudesse
refletir a minha luz, ou reconhecer o meu calor. E eu não tinha vontade de
tocar em nada, e eu não tinha medo de deixar de ser. Então eu já não sou o que
eu era, Jaguar, nem você.
Eu tenho medo de não saber que sou seu amigo, o
Jaguar, o que nada pela bruma. Eu acho que já não sei mais como era antes
disso.
Pode ser que você se esqueça que é o Jaguar, como você
esqueceu o que era vagar sozinho na bruma. Pode ser que você se esqueça de que
é meu amigo, e que eu me esqueça de que sou sua amiga. Mas isso não faz deixar
de ser verdade que você nadava sozinho pela bruma, Jaguar. Olhe como sua cauda
controla a neblina a seu redor, olhe como até os bigodes do seu focinho
atentam-se à corrente instante a instante. O que quer que aconteça depois que
minha mão encontrar a tua, tudo o que aconteceu antes ainda se fará sentir. E o
que quer que sejamos, então, se lembrará de alguma forma, e poderemos estar
juntos de novo, de uma forma diferente, talvez ainda mais bonita.
A Deusa Velha inventou então o gesto do convite,
girando a palma de sua mão pra cima, mas sem se aproximar. O Jaguar sentia medo;
mas apesar do medo, voltou a estender suas garras na direção da Estrela, e mais
rápido dessa vez: tinha que nadar contra a correnteza cada vez mais forte da
bruma, contra a força imensa, além da vontade deles dois, que seus divinos
corpos não se tocassem nunca. Quando já estavam ao alcance um do outro, quando a
Menina Leoa conseguia sentir em sua pata o frio que emanava da pata do Jaguar,
tanto quanto ele sentia o calor que emanava dela, hesitaram novamente.
Percebiam que a força que os separava um do outro se tornava mais forte. Não
sabiam se seriam capazes de resistir a ela quando finalmente se tocassem.
Mas o formigamento que atravessava suas mãos, e subia
por seus cotovelos e pescoços, era agora também uma força irresistível. A vida
no sozinho infinito da bruma era insuportável, e se tornava insuportável também
a ideia de uma vida em que não tocassem suas mãos uma na outra, entrelaçassem
seus dedos, sentissem o choque entre o frio e o calor e pele, e músculos, e
tendões, e ossos. De repente, em algum lugar dos olhos do Jaguar, a Estrela
encontrou um sorriso. Era a si mesma que ela via ali refletida. Mas também via
o Jaguar refletido no reflexo do reflexo de seus olhos. E dentro de cada um dos
reflexos de reflexos, ela viu o que poderia ser o mundo das coisas vivas, e ali
encontrou o sorriso. Era a fagulha que faltava: o Jaguar entrelaçou suas garras
nos dedos da Deusa Velha, resistindo à violência da maré, encostou mesmo a
almofada de sua pata na palma da mão da Deusa. Toda a força de sua vontade se
concentrava em segurar a mão de sua amiga, e em impedir que seu divino corpo
fosse esfacelado pelo furação de nada que surgia de seu contato.
Mas a Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela,
lutando também contra o furacão, percebia que abrir mão do toque de seu amigo
era também esfacelar-se. Dobrou o próprio cotovelo para puxar para si o corpo
do Jaguar. Seus cabelos, como a Juba de seu amigo, voavam para todas as
direções possíveis, e alguns fios mais frágeis começavam mesmo a se arrebentar
e voar em direção ao infinito. Mas o braço que ainda tinha livre a Menina Leoa fez
enfrentar o tufão e alcançar as costas de seu amigo. E puxando-o ainda mais
para perto de si, inventou o abraço.
Puderam sentir então, por um instante, apenas o toque
um do outro. No pescoço, nos ombros, no peito, e o Jaguar também esticou como
pode sua pata para retribuir a sensação do braço da Estrela segurando suas
costas. Sabiam que a maré queria arrastá-los um para longe do outro, mas ela já
não cabia entre eles, e se contentava em lufar furiosa ao seu redor. Aprenderam
muitas coisas nessa época: a diferenciar o bater de seus corações, e a se
maravilhar quando as batidas coincidiam; a escutar sua respiração, a
sincronizá-la, embaralhá-la, acelerá-la; a vibração engraçada que ouviam quando
tentavam conversar com o ouvido encostado no outro. Perceberam todo um mundo
que havia dentro de si mesmos como nunca antes, e como talvez nunca pudessem
ter percebido à distância. A Deusa Velha, que era sempre certeira em palavras e
ideias, não sabia mais dizer se gostava mais que tivessem inventado as palavras
ou o abraço.
Meu amigo, ela disse, já não tenho forças para
resistir à maré.
Então nos soltamos?, sugeriu o Jaguar. bem, bem
devagar?
Não! Se eu simplesmente te solto, serei arremessada
tão longe que não terei forças para te encontrar de novo; nem brilho para que
você me encontre. E sinto seu coração se esvaindo, e sua respiração ficando
mais fraca. Você tampouco vai ser capaz de me procurar.
Então o que podemos fazer, minha Estrela, minha amiga?
Vamos nos segurar um ao outro tão forte como pudermos
– e depois, vamos nos deixar desmanchar. como não podia ainda convencer o
amigo, continuou: você quer enxergar em mim agora apenas a Menina Leoa, a
Estrela, mas a verdade é que só me sinto como a Deusa Velha. Estivemos juntos
por eras que nem podemos contar, porque não inventamos palavras pra isso. Por
eras nos olhamos, depois nos conversamos, depois nos abraçamos. E eu vi nos
seus olhos, meu Jaguar, meu amigo. ela sorriu: no reflexo do reflexo do
reflexo, dentro de seus olhos, eu vi o mundo que virá de nós dois. Não
inventamos palavras para tudo o que existirá nele ainda, porque só tivemos a
bruma para ver, e um ao outro; mas haverá coisas nele, coisas nossas filhas de
alguma forma, ou parte de nós de um jeito que ainda não entendo; e essas coisas
também serão lindas de olhar, e inventarão palavras para falar de si mesmas, e
para tudo mais que houver no mundo, e saberão dar abraços, e segurar as mãos, e
sentir o cheiro das respirações umas das outras.
Mas, para isso, teremos que deixar de ser, teremos que
morrer.
Meu Jaguar, meu amigo, nós teremos que morrer. Mas eu
não acho que isso seja o mesmo que deixar de ser. E se não nos deixarmos
morrer, o que teremos? A bruma e a solidão. Eu prefiro morrer ao seu redor, e
permitir que o mundo novo seja. Eu não amo a bruma, mas eu te amo, e amo o
mundo que virá de nós dois.
Eu te amo, mas eu não quero morrer.
Eu também não quero, não sei se estou pronta. Mas ouça
como a maré ruge. E ouça como meu coração falha. Nós não temos mais... ela
inventou enfim: nós não temos mais tempo.
É verdade.
O Jaguar inventou então o choro, e as suas filhas, as
pequenas deusas da morte, acreditam muito firmemente que é de suas lágrimas que
se formaram depois os cometas. Mas mal concluía sua invenção, percebeu que a
Deusa Velha Primeira, a Menina Leoa, a Estrela, o abraçava de repente com mais
força. Ela também chorava, mas parecia um choro de um tipo mais quente, e seu
coração se acelerava.
Eu estou feliz que estejamos juntos agora. Gostaria
apenas que eu pudesse ter brilhado mais forte, para que eu encontrasse seus
olhos mais cedo na bruma.
O Jaguar percebia que o corpo de sua amiga estava cada
vez mais quente, e cada vez mais insólito. Não percebia mais em seu pescoço, em
seu peito e em seus braços as formas do corpo da Deusa; cada vez mais era como
se abraçasse uma nuvem quente. Sentiu então o formigamento em suas próprias
patas, e em seus chifres, e na ponta de sua longa cauda cor de relâmpago:
bastava se permitir, e seu corpo se desmancharia aos poucos, como o de sua
amiga agora se desmanchava, e da mistura de sua poeira e do turbilhão da bruma
surgiria o mundo que a Estrela enxergou dentro de seus olhos, num reflexo de um
reflexo de um reflexo.
O Jaguar, porém, teve medo. A Deusa Velha Primeira, a
Menina Leoa, a Estrela, pode sentir ainda o salto em seu coração, e a hesitação
de seu amigo, antes de se desmanchar completamente. Ela tentou então ela mesma
resistir por mais um momento, para poder consolá-lo de sua tristeza, mas isso
já não era possível. Sem ter mais o abraço sólido de sua amiga em que se
segurar, o Jaguar foi arremessado para longe pelo turbilhão da bruma, feito
agora de uma mistura do nada com o brilho intenso de poeira cósmica em que a
Estrela se tinha tornado.
Quando acordou, enfim, seu pesado corpo estava deitado
desconfortavelmente sobre uma areia cinzenta. Estava nas praias do Mar de Nada.
Sua visão estava embaçada, mas pensou ver ao longe, no meio do mar escuro, algo
reluzindo. Seria a Estrela? Tentou se levantar, mas suas pernas não podiam
sustentá-lo, e sua cabeça doía intensamente. Seu corpo divino estava coberto de
feridas provocadas pela explosão da bruma. Um de seus chifres tinha sido mesmo
arrancado de sua cabeça. O sangue que escorria dele não tinha sua cor de
trovão, mas era preto como o Mar de Nada.
No entanto, conforme escorriam e pingavam na areia
prateada, as gotas negras de sangue do Jaguar não se contentavam em formar
poças por aí. Não, elas se engruvinhavam, e ondulavam, e aos poucos começavam a
se arrastar de um lado para o outro, e depois em direção às ondas na beira da
praia. Primeiro eram apenas sangue encaroçado, mas logo de um caroço começava a
surgir uma perna que saltava, um braço que arrastava, mesmo uma cabeça que
olhava de um lado para o outro, tentando sentir o cheiro de nada do Mar,
tentando saciar a sede em um gole de seu nada.
O Jaguar não sabia se podia confiar em suas próprias
vistas embaçadas, mas já milhares dessas minúsculas criaturas se formavam ao
seu redor. E apesar de não brilharem, apenas refletiam com pouca vontade as
cores que havia a sua volta, apesar de não brilharem ele percebia que elas
tinham em si muito mais o formato da Estrela do que o dele. Tinham dois braços,
pernas maiores que o tronco, mãos ao invés de patas e nenhum sinal de chifre ou
de cauda. Chamou-as de seu sangue, suas criaturas e suas filhas; mas como era
inábil com as palavras, e não sabia precisar as coisas por nome, percebeu ainda
que precisaria depois inventar um nome para cada uma delas, talvez mais de um
nome para cada uma. E elas, por sua vez, teriam que aprender sobre os nomes e
as palavras, para que pudessem ser chamadas.
Assim, por um tempo que a princípio não pode ser
contado, mas que as Pequenas Deusas da Morte tentaram estimar depois, o Jaguar
ensinou às suas filhas a língua que tinha inventado junto com a Deusa Velha
Primeira, a Menina Leoa, a Estrela. Enquanto isso, elas em troca cuidavam de
sua mãe, lavando suas feridas com nada, ouvindo-o e alimentando-o, e construíam
uma cidade de vidro e areia para habitar a sua volta.