O jovem sentou no sofá. Não exatamente
enfadado, não cansado, simplesmente entediado. Não reclamava de todo da música
alta, não era tão ruim quanto poderia ser, mas se sentia deslocado, nunca fora
dos que mais se encaixam nesse tipo de coisa, e daquela vez, sem dúvida se
encaixava ainda menos. Geralmente iria para onde as pessoas estavam e dançaria,
sem se importar muito com qualquer coisa, simplesmente para não ficar parado,
pensando em como não estava se divertindo. Mas dessa vez não iria conseguir,
então foi para um sofá num lado mais afastado – e ainda não ocupado pelas
dezenas de casais que iriam procurar um sofá algum tempo mais tarde – e fechou
os olhos, sem nem mesmo pensar em como não estava se divertindo. Algumas vezes
nos sentimos longe demais das coisas, longe demais do mundo, até mesmo para
pensar. Estava cansado, não muito, mas pegou no sono sem nem mesmo
perceber.
Quando acordou, a primeira coisa que
seus olhos encontraram foram os olhos dela. Não sabia o que estava acontecendo,
nunca esperaria encontrá-la num lugar como aquele, então não foi completamente
inesperada a pergunta “eu estou sonhando?” que fez. E ela acenou com a cabeça
concordando, mentindo, mas não seria realmente uma mentira com ele sabendo que
estava acordado, se é que sabia. “Então você não vai se importar se eu fizer
isso” e beijou-a pela primeira vez.
O escritor parou e olhou para aquilo que
tinha acabado de escrever. E não gostou, mas já tinha escrito demais para
apagar, então simplesmente rasurou com um grande X por cima e deixou aquilo de
lado, poderia servir para alguma coisa mais para a frente. Então voltou a
escrever, ainda numa ideia semelhante.
Os dois estavam sentados na sombra.
Haviam se encontrado meio que por acaso, e conversado um pouco, ali mesmo onde
estavam, mas agora estavam simplesmente olhando para o nada e pensando. Ele
estava adorando, mas isso por que gostava dela, é claro. Sua mão esquerda foi
lentamente na direção da mão direita dela, até se encontrarem num toque de leve,
realmente inocente. Se sentiu como um adolescente – não,
não um adolescente, hoje em dia as coisas estão muito diferentes, uma criança
– uma criança. Mas os olhares dos dois se cruzaram, e na verdade mais do que
isso, ele não conseguiu mais desviar o olhar depois.
“Você sabe o que eu quero te dizer, não
sabe?”
E ela acenou afirmativamente.
“E você quer que eu queira dizer
isso?”
E ela acenou novamente.
“Mas você quer que diga
isso?”
E dessa vez ela negou, ainda com um
gesto.
E dessa vez ele ficou quieto, ergueu a
mão direita e lentamente, com a ponta dos dedos, tocou-a. Primeiro um dos lados
do rosto, passando de leve nos fios de cabelo que caiam, e depois, ainda com a
ponta dos dedos e ainda com suavidade, sentindo o formato do rosto, dos lábios.
Principalmente os lábios, sentindo o próprio formato, o significado, tudo.
Estavam agora frente a frente, o braço dele esticado, apenas as pontas tocando
os lábio dela. Era quase como se os dois estivessem….
Parou de escrever novamente, e novamente
fez um X sobre as coisas que havia escrito. E foi só nesse momento que percebeu
uma coisa, percebeu a enorme dimensão de como era ficcional tudo aquilo que
escrevia, percebeu – finalmente – que nenhuma daquelas memórias era sua, nunca
foram, e agora nunca poderiam ser, agora elas eram memórias do papel, eram
palavras, eram coisas que nunca existiram e que agora nunca mais poderiam ser
realmente experimentadas, especialmente não por ele, não daquela forma. Diabos,
eram coisas que nem sequer poderiam ser mais emuladas, eram coisas que já
existiam, mas como sombras, eram fumaça e espelhos – finalmente entendia o que
outros escritores, compositores e afins queriam dizer com essa expressão –
percebeu que quanto mais escrevia, menos vivia as coisas sobre as quais
escrevia, e mais as coisas que vivia se tornavam pano de fundo para o que
escrevia. Quanto mais escrevia, mais dependia daquilo que escrevia, quanto mais
escrevia, mais dos seus sonhos matava.
Tudo que escrevia era muito perfeito, muito
idealizado, eram os sonhos que tinha todas as noites quando dormia, sonhos que
agora nunca seriam reais para ele, nunca tocaria os lábios de alguém daquele
jeito. Melhor seria escrever sobre o nada, sobre a própria escrita, sobre coisas
ruins, não importa, desde que deixasse aqueles sonhos continuarem sendo sonhos,
continuarem não sendo palavras ou papel, continuarem no lugar que era seu de
direito, as noites e o futuro e o talvez.
2 comentários:
Um texto metatextual em tantos níveis que o "talvez" no fim era certamente inevitável (e, concordo novamente, foi uma frase pra encerrar mui bem o conto).
Já parou pra pensar que, se suas premissas são verdadeiras, até sentir como a vida se torna metavida para o escritor agora também é um metasentimento pra si, tendo você escrito sobre ele? Ou suas premissas são diferentes das de seu personagem?
Que tipo de escritor seria eu se não tivesse parado para pensar nisso? Mas é exatamente nesse ponto do texto que está toda a graça, vc já parou para pensar que isso é o tipo de coisa que não se responde? Hahaha
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