segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dessa vez

O jovem sentou no sofá. Não exatamente enfadado, não cansado, simplesmente entediado. Não reclamava de todo da música alta, não era tão ruim quanto poderia ser, mas se sentia deslocado, nunca fora dos que mais se encaixam nesse tipo de coisa, e daquela vez, sem dúvida se encaixava ainda menos. Geralmente iria para onde as pessoas estavam e dançaria, sem se importar muito com qualquer coisa, simplesmente para não ficar parado, pensando em como não estava se divertindo. Mas dessa vez não iria conseguir, então foi para um sofá num lado mais afastado – e ainda não ocupado pelas dezenas de casais que iriam procurar um sofá algum tempo mais tarde – e fechou os olhos, sem nem mesmo pensar em como não estava se divertindo. Algumas vezes nos sentimos longe demais das coisas, longe demais do mundo, até mesmo para pensar. Estava cansado, não muito, mas pegou no sono sem nem mesmo perceber.
Quando acordou, a primeira coisa que seus olhos encontraram foram os olhos dela. Não sabia o que estava acontecendo, nunca esperaria encontrá-la num lugar como aquele, então não foi completamente inesperada a pergunta “eu estou sonhando?” que fez. E ela acenou com a cabeça concordando, mentindo, mas não seria realmente uma mentira com ele sabendo que estava acordado, se é que sabia. “Então você não vai se importar se eu fizer isso” e beijou-a pela primeira vez.
O escritor parou e olhou para aquilo que tinha acabado de escrever. E não gostou, mas já tinha escrito demais para apagar, então simplesmente rasurou com um grande X por cima e deixou aquilo de lado, poderia servir para alguma coisa mais para a frente. Então voltou a escrever, ainda numa ideia semelhante.
Os dois estavam sentados na sombra. Haviam se encontrado meio que por acaso, e conversado um pouco, ali mesmo onde estavam, mas agora estavam simplesmente olhando para o nada e pensando. Ele estava adorando, mas isso por que gostava dela, é claro. Sua mão esquerda foi lentamente na direção da mão direita dela, até se encontrarem num toque de leve, realmente inocente. Se sentiu como um adolescente – não, não um adolescente, hoje em dia as coisas estão muito diferentes, uma criança – uma criança. Mas os olhares dos dois se cruzaram, e na verdade mais do que isso, ele não conseguiu mais desviar o olhar depois.
“Você sabe o que eu quero te dizer, não sabe?”
E ela acenou afirmativamente.
“E você quer que eu queira dizer isso?”
E ela acenou novamente.
“Mas você quer que diga isso?”
E dessa vez ela negou, ainda com um gesto.
E dessa vez ele ficou quieto, ergueu a mão direita e lentamente, com a ponta dos dedos, tocou-a. Primeiro um dos lados do rosto, passando de leve nos fios de cabelo que caiam, e depois, ainda com a ponta dos dedos e ainda com suavidade, sentindo o formato do rosto, dos lábios. Principalmente os lábios, sentindo o próprio formato, o significado, tudo. Estavam agora frente a frente, o braço dele esticado, apenas as pontas tocando os lábio dela. Era quase como se os dois estivessem….
Parou de escrever novamente, e novamente fez um X sobre as coisas que havia escrito. E foi só nesse momento que percebeu uma coisa, percebeu a enorme dimensão de como era ficcional tudo aquilo que escrevia, percebeu – finalmente – que nenhuma daquelas memórias era sua, nunca foram, e agora nunca poderiam ser, agora elas eram memórias do papel, eram palavras, eram coisas que nunca existiram e que agora nunca mais poderiam ser realmente experimentadas, especialmente não por ele, não daquela forma. Diabos, eram coisas que nem sequer poderiam ser mais emuladas, eram coisas que já existiam, mas como sombras, eram fumaça e espelhos – finalmente entendia o que outros escritores, compositores e afins queriam dizer com essa expressão – percebeu que quanto mais escrevia, menos vivia as coisas sobre as quais escrevia, e mais as coisas que vivia se tornavam pano de fundo para o que escrevia. Quanto mais escrevia, mais dependia daquilo que escrevia, quanto mais escrevia, mais dos seus sonhos matava.
Tudo que escrevia era muito perfeito, muito idealizado, eram os sonhos que tinha todas as noites quando dormia, sonhos que agora nunca seriam reais para ele, nunca tocaria os lábios de alguém daquele jeito. Melhor seria escrever sobre o nada, sobre a própria escrita, sobre coisas ruins, não importa, desde que deixasse aqueles sonhos continuarem sendo sonhos, continuarem não sendo palavras ou papel, continuarem no lugar que era seu de direito, as noites e o futuro e o talvez.

2 comentários:

Yuri disse...

Um texto metatextual em tantos níveis que o "talvez" no fim era certamente inevitável (e, concordo novamente, foi uma frase pra encerrar mui bem o conto).

Já parou pra pensar que, se suas premissas são verdadeiras, até sentir como a vida se torna metavida para o escritor agora também é um metasentimento pra si, tendo você escrito sobre ele? Ou suas premissas são diferentes das de seu personagem?

Unknown disse...

Que tipo de escritor seria eu se não tivesse parado para pensar nisso? Mas é exatamente nesse ponto do texto que está toda a graça, vc já parou para pensar que isso é o tipo de coisa que não se responde? Hahaha