segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Haikaitralhadora

 (haikais cometidos sucessivamente entre novembro e dezembro de 2024, sem muita edição, em preparação para um projeto que há de sair no ano que vem, com a graça de Deus)


24 de novembro:

no norte as bombas
chovem como siriluias;
no sul, um verão

25 de novembro:

a brisa estremece
os pezinhos de hortelã
mesmo que eu não olhe

26 de novembro:

como a chuva encontra
o chão no fim do dia quente:
encontrar o poema

29 de novembro:

de volta a guará;
uma lagartixa morre
no chão da cozinha

1º de dezembro:

uma flecha preta
atravessa a rodoviária:
cachorro de rua

3 de dezembro:

manhã de dezembro,
uma chuvinha cai, fria,
meu joelho dói

4 de dezembro:

mal desço pra rua
o casaco já viaja
da cintura às costas

meu corpo se fecha
ao frio, até que o invade
a dama da noite

10 de dezembro:

a fumaça sobe
do café do condutor
rumo ao céu nublado

13 de dezembro:

a lua amarela
espia, por entre as nuvens,
o engarrafamento

14 de dezembro:

na tarde cinzenta
meu suor se mistura a chuva
descendo a ladeira

17 de dezembro:

do meu travesseiro
a mariposa reclama
que a noite não passa

18 de dezembro:

com a voz vestida
de noite, Lia derrama
o mar em meu rosto

22 de dezembro:

as patas rosadas
do cachorrinho de praia
procuram tesouros

porto de galinhas -
as cores do fim do dia
inventam tons novos

cachorros vadios
brigam de brincadeira:
um coco é o prêmio

24 de dezembro:

mãos verdes acenam
numa noite de Natal;
palmeiras ao vento

26 de dezembro:

carcará em voo
ao alto de seu coqueiro.
são dois carcarás!

a penugem chove
e pousa na água quente.
pena de que ave?


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Quanto do teu sal? (sonetralhadora #7)

Aos passos curtos, como quem marcha sem pressa,
mesmo que a marcha dure mais do que devia,
marcha-se mais, mais rocha dura se atravessa,
se vê mais longe a luz que frágil principia;

Sob bandeiras cujo colorir não cessa,
ao ritmado de um cantar de euforia,
vi germinar em meio aos estampidos dessa
Marcha uma promessa boa como o dia:

Um Porto cujas naus partem a toda vela,
em busca de temperos mais suaves, qual
quem prefere o brilho do sol ao do aço;

Um Portugal que sem querer a si revela
a derramar ao mar novo tipo de sal:
Trocar bandeiras como quem dá um abraço

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A pergunta que fica da vida

Como de costume em qualquer outra vida ou ocasião, a vida do ser humano era uma coisa difícil. 

Na verdade, verdade mesmo, não era que a vida era uma coisa difícil, mas é qua a palavra "difícil" foi inventada para falar de como se levava a vida.

A vida era um equilíbrio muito sensível, instável e frágil provavelmente por ser ao mesmo tempo específica mas complexa demais. 

Precisava disso e daquilo e daquele outro, uma série de condições sem fim num universo que também era um infinito de caos.

Justamente por isso, a vida que se mantinha era a vida que não parava de trabalhar. Não é que era bom e não é que era o certo, nem tinha essas coisas, e também não é porque era preciso, era simplesmente por acaso, e aquele acaso laboroso diferenciava a vida do que não era vida. 

A vida era muito egoísta, foi ela mesma que inventou isso de que ela era de alguma forma especial, foi ela que ao categorizar tudo, sem querer, por acaso de novo, por via do tempo que passou e de muitas outras vidas que não duraram, categorizou a si mesma: a vida. Isso foi inevitável, e inevitavelmente e ao mesmo tempo também, nomeou para si mesma seus deuses que eram seus algozes: o desequilíbrio, o trabalho, a morte.
(Inventou também, mas não antes disso, o livre arbítrio, e ainda mais, sem juízo de valor nenhum, se ajuntou nessa hora a inventar também o bom e mau.)

Vendo-se enlameada de desiquílibrio e afundando, emboscada pelos olhos frios da morte e sustentada pelos ombros sádicos do trabalho, a vida decidiu, pedaço a pedaço, que a única forma de alcançar um pouco de ar era devorando-os. 

Como imortais, a lama subia, a brisa era dura e gelava, e o movimento feria.

Então a vida se deparou com o que não esparava: sua razão era a de devorar o universo sem parar.

Mas como tudo não lhe cabia na boca, afinal era de tudo que a vida fazia parte, tudo era dos deusas deuses e ela uma mortal, a vida, sem entender nada, foi dando ritmos às mastigadas, intensidade às mordidas, misturas, e harmonias às bocadas.

Criou a música, as palavras, a pintura e a matemática. Criou a biologia, a justiça, o esporte, a filosofia, aprendeu a cozinhar, a costurar, a correr, a andar de bicicleta e tudo mais o que há, pois afinal de contas só hão por a que a vida há de havê-los.

E assim a vida segue, e a pergunta que fica é a pergunta da boniteza, como um sussurro irônico dos tais deuses: será, onde, como, e por quê?