quinta-feira, 9 de julho de 2020

Dantès na Fortaleza de If II

(para o Zuni)

cole seu ouvido na parede, Edmundo
sou eu quem você escuta do outro lado
raspando a argamassa como se fosse um rato faminto

mesmo depois de todos esses anos, você continua um homem bonito
eu que nem posso te ver ainda, preso que também estou em minha cela
mas intuo que seus cabelos e sua barba agora sejam mais selvagens
e que seus olhos estejam fundos - como um lorde Ruthven, dirão um dia

não ouça o chamado da morte, Edmundo
escute a minha colher improvisada raspando a pedra
é uma voz menos doce, mas de promessas mais palpáveis
coma um pouco do seu pão, tome um pouco da sua sopa

nossos carcereiros não percebem
(isto foi vedado a eles)
mas nós somos seres humanos
estamos vivos
estamos sãos

escute como eu esmigalho diligentemente o calcário que nos cerca
é essa a essência de nossa profissão, e você bem sabe disso
uma a uma esmigalhar as pedras, botar o pó de lado
escondê-lo em nossa cela, arremessá-lo pela janela quando não há guardas vigiando
criar esses túneis apertados
pelos quais os seres humanos consigamos nos arrastar

quando eu comecei isso tudo, Edmundo, para mim só havia um propósito no escavar:
escapar da fortaleza de if, enfrentar, com os dentes e os punhos nus, se fosse preciso
Deus e o mar que ele inventou
e os homens que inventaram deus e o estado e as carabinas,
encontrar meu tesouro escondido nas cavernas de uma ilha perdida no meio do mar
e viver como um deus entre os homens, senhor de meus próprios homens e deuses e carabinas

mas agora, Edmundo, eu sei
que o que move meus braços a continuar escavando é o batimento de seu coração
enfraquecendo pouco a pouco na cela ao lado
sua respiração cada vez mais difícil e mais leve

coma seu pão e tome sua sopa, por favor
não tire de mim este farol

fugir sozinho de If é como tornar-nos nós mesmos em carcereiros
não seríamos mais capazes de reconhecer um ser humano
mesmo que estivesse sangrando em nossos braços

permanecer em If é como reconhecermos que os carcereiros têm razão
mas como pode haver razão em olhos
incapazes de reconhecer um ser humano
mesmo que esteja sangrando diante de si?

minha religião é escavar a argamassa e o pó todas as noites
enquanto não há carcereiros e carabinas fazendo seu barulho
pelo chão duro e úmido da fortaleza

meu Deus mora nas celas minhas vizinhas
ele agoniza com o peso das botinas dos guardas
e com a comida podre e o pão embolorado

minha teologia é relembrar a Deus de sua humanidade
encontrá-lo e repartir o que tenho
mesmo que seja pouco


coma seu pão, tome sua sopa.
a pedra ao lado de sua cama começa a deslocar-se
o pó da argamassa escorre ao seu redor
eu te amo
e breve estaremos juntos.

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