domingo, 15 de julho de 2018

o farol

eu não sou obrigado a enxergar os suicidas:
sua luz rompe a escuridão da noite
não é implícita como a dos outros mortos
não, não sou obrigado a nada disso:

desloco meus espelhos na medida do possível:
resta apenas o pálido reflexo
do reflexo
a noite se deixa ferir pela sua luz inevitável
mas eu, que sou vivo, me protejo

camadas de vidro, prata, óculos e dióxido de carbono:
temos escudos bastante eficientes, dadas as circunstâncias

então é isso: não sou obrigado a enxergar nada dessas coisas:
pedintes, mulheres, abutres, líquidos fedidos nas calçadas, que certamente são urina, líquidos cristalinos na calçada, fontes no meio do deserto, que certamente são urina
mas especialmente
não sou obrigado a enxergar os suicidas
nem nenhum dos mortos
nem os moribundos
nem os velhos, ou os que se preparam para envelhecer

é questão de se deslocar no assento, abaixar um pouco a cabeça, modificar a posição dos espelhos, fechar os olhos

ainda não se inventou uma luz que perfure nossas pálpebras:
se algum dia for inventada, será proibida

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