sexta-feira, 22 de maio de 2015

O dragão sutil

Quando o dragão sutil apareceu pela primeira vez, mordeu fora, sem que eu percebesse, um pedaço do menor dos artelhos do meu pé direito, e o lóbulo da minha orelha esquerda. Só fui notar na manhã seguinte, porque meu pé estava formigando e havia algumas manchas de sangue no meu travesseiro. Na segunda vez, mais ousado, me subtraiu um pedaço, ainda bastante pequeno, da barriga, e um naco do tendão atrás do meu joelho esquerdo.
Da terceira vez, eu percebi sua aproximação. Gritei para espantá-lo - parecia pequeno como uma lagartixa, apesar do formato lembrar mais o de uma minúscula cobra alada -, mas meu tamanho e minha voz não serviram para intimidá-lo. Levou, de uma mordida, a ponta do meu nariz, de que eu tanto gostava.
Por esta época, a maioria das pessoas da vila já estava, como eu, subtraída de uns bons pedaços de si. À mestra curandeira já lhe faltavam quase todos os dedos, a capitã da guarda tinha minúsculas cicatrizes, por todo o braço esquerdo e pelas duas pernas, e o relojoeiro não tinha mais um dos olhos, nem sua famosa cabeleira. Eu estava entre as poucas pessoas que tinha acordado durante um ataque do dragão sutil, porém, e nenhum de nós tivera qualquer sucesso com urros ou tochas para espantar o monstro.
Pedi à confraria dos artesãos que me conseguissem uma espada. Resistiram, a princípio. Fosse o "dragão" - dava pra ouvir as aspas em seus ombros - tão pequeno e sorrateiro quanto se relatava, qualquer martelo de cozinha me serviria para amassar-lhe a cabeça. Seria, porém, uma quebra da tradição muito grave matar um dragão com qualquer coisa que não fosse uma espada, redarguiu a chefe da guarda em meu apoio, e a espada foi arranjada. (Soube, mais tarde, que, mais forte que o argumento da capitã, retinia no coração do confrade-mor o temor de ter seus dedos engolidos durante o sono, o que lhe tiraria a profissão).
Quando, seguindo a tradição, tentei cortar fora a cabeça do dragão sutil, minha espada prendeu-se em seu pescoço e tornou-se, a meus olhos, menor que um alfinete. Percebi que o dragão não era pequeno, mas que estava, de alguma forma, distante. E por distante que estivesse, além de perder minha espada entre suas escamas, perdi naquele dia minha mão direita entre seus dentes.
A vila prosseguiu sua vida, e eu, como sempre acaba acontecendo. Aos poucos, todos se acostumaram a amanhecer sem um dos olhos, ou com pedaços da orelha faltando, ou com um rim a menos.
Uns e outros tentávamos nos proteger. Armávamos redes ao redor das camas e armadilhas pela casa. Mas eram quase todas inúteis. O dragão sutil se encolhia - ou se distanciava, nunca soube entender isso muito bem - o dragão sutil se encolhia conforme a necessidade para atravessar mesmo as grades mais apertadas.
Com o tempo, o dragão sutil se tornou uma figura de linguagem - uma forma de se referir ao fenômeno perfeitamente natural de acordar com partes do corpo a menos. Apenas crianças e nós, insistentes supersticiosos, cremos em um dragão que realmente vem durante a noite nos mastigar pedacinhos fora.

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