nos últimos tempos a minha casa passou a ser
assombrada. eu não sei bem o motivo. não é como se alguém tivesse morrido aqui.
mas coisas estranhas começaram a acontecer. não o tipo de coisa que pode ser
ignorada facilmente. não é como se uma coisa que deixei em cima da mesa caísse
do nada. não é o som de alguém andando no forro. essas coisas sempre
aconteceram, e sempre foram normais. as coisas caem por causa do vento e o
espaço entre o telhado e o forro é um ambiente ideal para gatos que querem fugir
da chuva ou talvez outros animais. não duvido que morem alguns morcegos ou até
uma coruja, quem sabe. não, as coisas que vem acontecendo são mais sutis. é a
sensação de que alguma coisa está logo ali, atrás de mim, e, se me virar, vou
dar de cara com ela. mas quando olho não tem nada lá. ainda assim, a sensação
não se vai. é saber que não estou sozinho no quarto quando apago as luzes e vou
dormir. é ser obrigado a escovar os dentes encostado na parede porque, em
qualquer filme de terror, sempre vai aparecer uma criatura no espelho do
banheiro. é ouvir distintamente um voz, mas não conseguir entender as palavras
nem descobrir de onde vem o som. e os sonhos. acho que são sonhos. espero que
sejam. apesar de serem tão reais.
num deles eu tenho a impressão de ter
acordado. de estar no meu próprio quarto. pelo pé da porta entre uma luz, só que
não é luminosa. é uma coisa quase material, como se a luz tomasse forma de
névoa. eu sei que tem alguma coisa do outro lado. não posso fazer nada sobre
isso. a simples presença daquilo, seja o que for, me assusta. continuo deitado,
fingindo o melhor que posso que ainda estou dormindo. quem sabe assim a coisa
não me deixa em paz. mas a coisa fala. e eu, deitado na cama, sonhando, entendo.
entendo mas esqueço. só sei que continuo fingindo, imóvel de medo. nem toda a
coragem do mundo seria suficiente para me fazer levantar e ir até aquela porta,
nada conseguiria me fazer abrir e encarar o que quer que esteja do outro lado.
nada a não ser a própria coisa. será que o que a coisa me diz é uma ameaça? será
que toda noite, quando o sonho se repete, a coisa se enfurece e exige que eu vá
e abra a porta? e se um dia ela não precisar de mim para abri-la? vai jogar toda
sua raiva sobre mim? enquanto isso não acontece, continuo a sonhar.
quando acordo, já pelo meio do dia, sem
lembrar dos detalhes, tento me convencer que sonhos recorrentes não são assim
tão raros, e com essa pequena mentira consigo viver o meu dia, mais ou menos
tranquilamente. mas quando escurece a casa começa a se tornar estranha
novamente. me vem imediatamente um calafrio, como se alguém respirasse no meu
pescoço, como se alguma coisa se movesse e eu quase conseguisse ver com o canto
do olho. nunca tive muito medo dessas coisas. sempre imaginei que nunca fui
odiado o suficiente para que alguém viesse do outro mundo com o simples intuito
de me assombrar. mas talvez eu estivesse errado. talvez a criatura estivesse se
sentindo só. e conseguisse sentir a minha própria solidão. talvez tenha vindo
não para me assombrar, mas para me fazer companhia. e, saber que ela está ali,
quase ao meu alcance, me conforta tanto quanto me assusta. se ela veio por isso,
não devia eu abrir a porta? penso assim e tento criar uma resolução. essa noite,
quando ela pedir para que eu abra a porta, em meu sonho, vou me levantar e
abrirei. seja o que for, se se importa tanto assim comigo, merece meu amor. toda
as noites vou dormir pensando nisso, mas quando vejo a névoa entrar por debaixo
da porta o medo continua a me congelar. é como se uma aura viesse do outro lado
e me impedisse de me mover. finjo que continuo a dormir para que ela, a criatura
do outro lado da porta, não se decepcione e vá embora, para que não ache que não
abro por má vontade, por não reconhecer sua dedicação a mim.
acordo depois da uma da tarde e tento me
convencer: sim, essa noite, esta noite vou abrir a porta, seja lá o que estiver
atrás dela.