Ela está esperando no ponto de ônibus, e está frio, mas não de um jeito pro qual ela estaria preparada, se já não morasse em São Paulo há algum tempo. Mas a coisa importante mesmo deste texto não é o fato de ela estar lá esperando, ou aquela sensação engraçada de expectativa que ela está sentindo, esse tipo de sensação que a gente sente quando está pra fazer alguma coisa pela primeira vez.
Não.
A coisa importante, pelo menos para mim, é que ela vai morrer. Não agora, não. Eu não acho que eu sei lidar com esse tipo de estória ainda. Nem daqui a poucos anos. Ela não tem nenhuma doença crônica misteriosa nem nada - além de um leve desconforto na gengiva quando ela usa pastas de dente que não sejam infantis. Ela vai morrer, provavelmente, só daqui a uns sessenta, setenta anos, bem depois de o texto já ter acabado. Talvez oitenta, se ela seguir até o fim da vida aquele programa maluco de dieta e exercício que a irmã dela inventou de elas fazerem, mas ela dificilmente vai ter paciência pra isso.
É importante que ela morra, e que eu esteja consciente disso, porque ela está consciente disso, o que é muito interessante. Eu gosto muito de escrever e ler sobre deuses e feiticeiros que vivem milênios e heróis e heroínas cujas canções os transportam para a eternidade, pode ter certeza. Mas ela não é uma dessas pessoas, e ela sabe disso, e isso provavelmente torna o sentimento do vento frio no pulso dela diferente, por mais que ela não se lembre disso em sessenta, setenta anos.
Caramba, eu nem sei o que vai pegar ela daqui a sessenta, setenta anos, mas pode ser que ela nem se lembre do que ela ia fazer hoje, com quem, e do porque isso era importante. Mas ela provavelmente vai se lembrar dessa sensação engraçada de expectativa que a gente sente quando vai fazer alguma coisa pela primeira vez. Não sei se ela ainda vai ter muitas coisas pra fazer pela primeira vez na vida daqui a sessenta, setenta anos, mas quem sabe? De qualquer forma, é uma sensação universal o suficiente pra ela se lembrar.
Pelo menos, é universal dentro do universo de nós dois, porque ela sente a sensação mais ou menos do jeito que eu sinto, então já é um universo maior do que a gente, certo? E talvez você também sinta, eu sei lá.
A coisa importante sobre ela ser só alguém que vai morrer daqui a pouco é que ela sente esse tipo de coisa que deuses e heroínas e feiticeiros provavelmente não sentem, e isso é muito interessante. Por exemplo, paulistana prevenida que é, o vento não a incomoda tanto pelo frio, mas porque está batendo no cabelo dela de um jeito que ela não gosta, porque isso vai deixá-lo embaraçado ou de alguma forma assimétrico, mas assimétrico do jeito errado.
Isso a incomoda por dois motivos:
Primeiro, isso a incomoda porque, por algum motivo, é importante que o cabelo dela esteja hoje, nessa ocasião em que ela vai fazer aquela coisa pela primeira vez, seja qual for, é importante que o cabelo dela esteja em ordem.
Segundo, isso a incomoda porque ela gosta de acreditar que não é uma dessas dondocas que ficam horas se arrumando na frente do espelho ou, ainda pior, em um salão de beleza, só pra fazer coisas, inclusive bem menos importantes que a coisa que ela vai fazer hoje.
Isso, por sua vez, a incomoda por dois motivos:
Primeiro, porque ela se lembra de que, por mais não dondoca que seja, e por mais que só gaste dinheiro com alguma coisa de maquiagem pra mãe dela e pro pessoal do trabalho não encherem o saco, e por mais que o penteado favorito dela seja prender tudo como der pra prender, ela até que sim, de vez em quando, quando passa um ônibus mais devagar, ou quando o metrô está parando, ou quando passa ao lado de um prédio espelhado, ela se dá uma olhada, confere se a postura está boa, elogia a disposição das cores da roupa que ela escolheu de manhã etc. Então ela tem que impedir a mente dela de discutir consigo mesma se isso é, de alguma forma, uma incoerência, o que é em si um saco - a mente dela é boa em contra-argumentar.
Segundo, porque ela acha que pensar nas dondocas como dondocas, além de ser terrivelmente século XX, pela terminologia, é uma coisa potencialmente muito machista. Eu não tenho certeza se ela pensa isso mais em termos de sororidade, ou de controle dos corpos, ou sei lá o que mais, porque ela provavelmente não lê os mesmos blogues que eu, e parece que curte muito a Judith Butler (de quem eu não li quase nada) e eu não tenho certeza como ela pensa sobre tudo o tempo todo, afinal.
Isso é também muito interessante e, eu acho, talvez um pouco assustador.
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
Tomando guaraná com você
Num ímpeto de ataque meu pai se projeta frente à minha mãe com a faca na mão. Ambos bêbados. Minha tia grita e se atira em cima dele para tentar impedi-lo, e meu tio vai atrás afim de derrubá-lo de vez, mas não antes que ele golpeie rapidamente a lâmina nas costas de sua cunhada. Minha tia morre, e ao receber um golpe cheio do irmão, meu pai roda e deixa a lâmina na própria barriga. Ele sangra muito, engole sangue, cai e também morre. Minha mãe grita em desespero e meu tio, em choque, tem os olhos abertos mas não olha em nada, e as lágrimas escorrem. Acho que corro, acho que desmaio, acordo no inferno e lá estão todos eles. Reencenam a cena de novo e de novo com infinda ira. Escuto risos. É meu próprio riso. Delirava. Acordo. Agora há um carpete de sangue. Minha mãe ainda grita, perdeu irmã e marido, eram todos uma família unida desde 85, e meu tio a sacode violentamente gritando calma. As pessoas chegam todas de fora para dobrar a realidade de novo, limpar, reparar os danos e continuar com o tempo. Olho o céu, as nuvens são imensuráveis, além delas não posso nem cogitar, sou também imensurável. Volto o olhar abaixo, olho o conteúdo que sorri ao mundo, engulo, olho ao lado, você me olha de volta. Não sei se algo importa nisso, mas sorrio de volta a ti. Obrigado, pelo menos agora posso sentir o gostoso do guaraná.
domingo, 3 de agosto de 2014
Sobre a paciência
Ele era um bom
cozinheiro. suas habilidades conquistadas com anos de prática incessante, a
ponto de muito já haver se tornado um processo mecânico. era um escape, um
tempo em que parava de pensar na vida, e se deixava guiar completamente pelas
mãos e pelos estímulos de seus sentidos. algumas pessoas encaram a cozinha como
algo muito racional, uma ciência, outras com o senso estético, uma arte; para
ele era apenas um hobby, sem grandes pretensões. a cozinha era a parte mais bem
cuidada de seu apartamento, era branca, fria, antisséptica, enquanto todo o
resto era bagunçado e não raro um tanto quanto sujo. seus utensílios eram de
primeira linha, nada de facas guinso, para amadores, todas tinham seus usos
específicos, como instrumentos de um cirurgião, e eram organizadas, ainda que
inconscientemente, de forma harmônica. poderia muito bem ser algo saído de uma
revista de decoração ou filme.
Estava cortando
pimentões à julienne, completamente imerso no aroma levemente adocicado e nas
cores, amarelo e vermelho. aquele era apenas o primeiro passo, mas seu paladar
já ansiava o sabor do prato final. apesar disso seus movimentos eram
repetitivos, algo que já havia feito muitas vezes antes. não precisamos saber o
que estava fazendo, porque seja lá o que fosse, nunca foi terminado, nunca foi
além daquelas fatias milimétricas de pimentão. a monotonia do processo se
apossou dele, de forma que deveria ser completamente inofensiva, e o fez
bocejar. as mãos, no entanto, se confundiram com isso, e uma continuou a fatiar
enquanto a outra esqueceu de se mover e, ainda com os olhos fechados como
reflexo do bocejo, sentiu a faca entrar em sua carne, respondeu rapidamente,
evitou que o corte fosse mais profundo. mas, ao olhar para o indicador
machucado, ele não conseguiu entender muito bem o que estava vendo. esperava um
pouco de sangue, talvez um corte grande o suficiente para que necessitasse ir
ao pronto socorro e alguns pontos, mas o que jorrava por seus dedos era um
líquido azul elétrico e muito mais ralo do que seria de se esperar de sangue, e,
para piorar, era uma torrente incessante. não doía muito mais do que um corte
normal, e ele aproximou o dedo dos olhos para conferir. não parecia haver
nenhuma dúvida, o líquido estava saindo dele, e era um corte normal, até doeu
um pouco mais quando separou a abertura em sua carne para observar. não
lembrava de ter sangrado azul antes. provou um pouco do liquido azul, que agora
ia abaixo no ralo da pia, e era doce, como sorvete ou algodão-doce, nada
ferroso. talvez fosse algum tipo de diabetes, que deixa o sangue doce e
dificulta a cicatrização, mas não conhecia nenhum tipo que deixasse o sangue
azul. isso não era motivo de preocupação, não era médico, até onde sabia aquilo
era completamente normal. lavou o dedo e fez uma atadura precária, que ficou
encharcada de líquido azul em poucos segundos. Substituiu-a por uma toalha e
foi para o hospital.
A sala de espera
lembrava vagamente sua cozinha. Iluminação fria e uma impressão geral de
limpeza. o pronto-socorro parecia estar num dia pacato. apenas três pessoas
estavam esperando atendimento quando ele chegou: duas crianças, uma delas ainda
de colo, que não parava de chorar, acompanhadas, e um senhor que aparentava ter
mais ou menos três séculos de vida, com pelos no nariz e sobrancelhas
incomensuravelmente longas. seu nariz lembrava um pimentão, mas podia ser culpa
dos óculos que usava. não havia mais ninguém na sala, e uma pessoa apenas abria
a porta para chamar a próxima a ser atendida. o bebê foi primeiro, depois o
idoso e então a outra criança.
Todos haviam sido
chamados de forma relativamente rápida, mas quando não tinha mais companhia o
tempo pareceu parar. o relógio na parede movia os braços de forma audível. a
televisão estava desligada. ele praticamente esqueceu a toalha laranja que ia
lentamente formando manchas azuis. esperava sem saber mais muito bem o que. mesmo
quando olhava para baixo, para a toalha, só conseguia pensar que era uma cor
bonita. o relógio tic-taqueava inutilmente. não conseguia escutar nenhum outro
som. ficou um pouco preocupado, se não teria ficado surdo, e que o relógio não
estivesse na parede, mas em sua cabeça. começou a achar estranho não terem
vindo chamá-lo ainda, talvez não lembrassem que estava lá. talvez a pessoa que
chamava tivesse caído no sono. nesta letargia, seria difícil julgar. as manchas
cresciam lentas e silenciosas. primeiro dispersas, como um dálmata, apenas em
cores que seriam mais fáceis de imaginar num personagem da vila sésamo. depois
o laranja se tornou mais escasso. o tempo andava sem ir para lugar nenhum. ele
dormiu de olhos abertos, e só foi acordado por um outro som, igualmente rítmico,
o de gotas de líquido azul caindo da toalha em direção ao chão de cerâmica branca.
só então percebeu que tinha dormido não apenas os olhos estavam abertos, mas
também a boca. aquilo devia lhe dar uma impressão de infinita estupidez, aquele
olhar para o nada, mandíbula caída, toalha azul na mão. cerrou os lábios e
piscou, como se para voltar ao normal. se levantou e começou a andar de um lado
a outro, para não dormir novamente. sua paciência era descomunal. quando menos
percebeu, estava caminhando no ritmo do relógio. apesar de, a esta altura, já
estar praticamente certo de que o haviam esquecido e abandonado ali, não lhe
ocorreu que deveria deixar de esperar e buscar alguém. e, se pensou nisso, não
levou a ideia a cabo. era uma espécie de loucura que o impedia e o invadia
lentamente. a toalha já estava completamente encharcada. não servia mais para
nada. o trajeto circular que fazia repetidamente estava sinalizado por
respingos azuis. ele não sabia se uma pessoa poderia sangrar tanto assim e
continuar bem, mas não sentia nada demais. mesmo o dedo não doía, a não ser que
mexesse na ferida. tic-tac. tic-tac. nada acontecia. por puro tédio começou a
escrever nas paredes brancas, como sua mente estava vazia, escreveu a receita
que planejava fazer quando se cortou. completa com ingredientes, quantidades,
modo de fazer e de servir. em letras grandes. lá fora escurecia. a próxima
receita na parede foi escrita em letras menores, e a seguinte da forma mais
compacta que pode. abstraiu o som do relógio. já era noite quando terminou a
primeira parede. infelizmente as partes mais altas ainda estavam em branco, não
as alcançara nem mesmo subindo na cadeira de espera. olhou para a parede
seguinte e já conseguia imaginar como as receitas configurariam nela, escolhendo
cuidadosamente cada uma. a porta se abriu, ele ouviu seu nome ser chamado e foi
em direção à voz. a pessoa dona da voz lhe indicou uma porta, e ele entrou.
A médica parecia cansada,
como se seu turno estivesse durando horas a mais do que devia. claramente não
era a aparência de alguém que havia passado as últimas horas sem fazer nada,
então ele concluiu que deveria haver uma outra sala de espera ou que alguma
emergência a havia exigido sua atenção. ele contou o que havia acontecido em
poucas palavras e mostrou à médica o ferimento. ela ergueu uma sobrancelha,
talvez surpresa, mas não disse nada. ajustou os óculos e analisou o ferimento,
perguntou se doía e ele disse que não. continuava a jorrar líquido azul, mesmo
a vazão não se alterara. a médica suspirou, o tipo de suspiro que mostra que
seu prospecto de finalizar seu expediente acabara de sair pela janela. chamou
um enfermeiro, que veio equipado para retirar uma amostra de sangue. não dava
para esconder que o liquido que encheu a ampola era azul. o enfermeiro exclamou
em surpresa, a médica o reprovou com um olhar sério. não se deve mostrar esse
tipo de reação frente a um paciente. o enfermeiro se foi. a médica pediu que o
paciente esperasse e também se retirou. felizmente desta vez sua paciência não
foi testada. voltou acompanhada por outra médica, mais alta do que a primeira.
enquanto observavam o sangramento, se é que se podia chamar assim, falavam com
um jargão que o paciente não conseguia entender. mas ele não fez perguntas. ao
invés disso substituiu, em sua imaginação, as palavras que não entendia por
outras, que lhe dissessem algo. uma palavra que se repetia muitas vezes se
tornou açafrão, por ter uma sonoridade semelhante, outra por sautée, por
parecer vagamente com um estrangeirismo. só voltou a si quando as médicas lhe
perguntaram algumas coisas, sobre sua alimentação, sobre sua rotina, sobre
históricos de doença. ele lhes disse tudo, mas acreditava que as perguntas
haviam sido feitas mais por protocolo do que por poderem dar alguma pista do
que estava acontecendo. a doutora alta saiu e deixou a outra acompanhando o
paciente. não trocaram nenhuma palavra. desta vez a espera foi um pouco mais
longa, mas nada que se aproximasse daquela antes de ser atendido. apenas os
suficiente par gerar um leve desconforto com o silêncio, coisa completamente
natural quando dois seres humanos estão no mesmo lugar mas não se comunicam por
algum tempo. a doutora deveria estar buscando em sua memória algum precedente
pois sequer fez algum comentário sobre o tempo ou algo do gênero. quando voltou
a segunda médica trouxe consigo um terceiro, que ao ver a situação não
conseguiu esconder um sorriso de canto de boca, que se inverteu quando ouviu
que o líquido na seringa ao retirarem uma amostra de sangue fora igualmente
azul. saiu ele mesmo e voltou preparado para refazer o teste. o resultado foi o
mesmo e ele foi embora cabisbaixo para não mais voltar. as duas decidiram que
seria necessária uma bateria de exames, que precisavam do resultado da análise
do sangue. o paciente foi levado a um quarto. trocaram suas roupas, fizeram com
que a mão com o corte ficasse pendendo da cama e abaixo dela colocaram um
balde. mesmo depois de terem costurado o ferimento, o liquido vazava, embora
agora mais lentamente. o balde ficou cheio em três horas e vinte e sete
minutos. pouco depois de o substituírem por um vazio, trouxeram o jantar.
comida de hospital. o paciente fez uma careta ao provar e deixou de lado.
fechou os olhos e imaginou as comidas cujas receitas escrevera na parede da
sala de espera. começou a salivar em abundância, a ponto de um filete
escorregar bochecha abaixo. ao abrir os olhos e olhar a macha, descobriu que
sua saliva estava verde.
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