sábado, 2 de julho de 2011

Pessoas e coisas.

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Para entender melhor esse texto antes leia isso.
***
No outro dia ela voltou bem cedo. Tentou encontrar algum restaurante japonês aberto no caminho mas não encontrou. Ele teria que se contentar com Yakissoba. Ia ficar feliz de usar os hashis.
Ela sabia o que ia encontrar quando abriu a porta da casa. Ele nunca lhe dera a chave de verdade, mas algum tempo atrás ela tinha pegado uma cópia emprestada e nunca surgiram motivos para devolver. Ainda não tinha amanhecido de verdade, mas quando ela entrou no lugar e encontrou todas as luzes apagadas soube que ele não saíra do quarto onde escrevia desde que escurecera.
Pelas frestas da porta viu que a luz do quarto estava acesa. Abriu a porta sem bater. Era provavelmente o quarto menos mobiliado da casa. Um colchão no chão. Uma estante de livros, uma mesa pequena e uma cadeira. A janela pequena  estava tão hermeticamente fechada pelas persianas que não deixava perceber que estava amanhecendo. Sobre a mesa uma máquina de escrever, papel, caneta, corretivo e um caderno de anotações. Ele estava deitado lendo alguma coisa.
"Já? Mas que horas são?"
"Está amanhecendo, seu idiota. Eu te trouxe comida."
Ele se sentou e começou a comer imediatamente. Dava para ver que estava com fome. É bem provável que as coisas que ele tinha deixado separadas para comer nunca tenham sido tocadas. Ela deitou no colchão, se aninhando no lugar onde ele estava antes. Era pequeno, mas ela ainda sentiu ele se deitando ao lado dela antes de adormecer completamente.
Quando ela acordou ele não estava mais lá. Abriu as persianas. Se ele tinha saído do quarto é porque tinha terminado o texto, e não ia voltar a entrar ali para escrever naquele dia. Prendeu os cabelos com os hashis que ele não tinha chegado a usar e foi ler as páginas que ele tinha escrito. Não foram muitas, não era muito prolífico, mas ela também não era com nada que fazia. Já tinha feito algumas exposições, mas nunca produzira rápido. Dirigira dois filmes, um independente que no qual não tivera problemas por conta do atraso e outro no qual tivera muitos problemas com datas, desde então tinha decidido dar um tempo com o cinema. Pensava em gravar um disco em alguns anos, mas por enquanto isso era só uma vontade. Sabia que ele também queria fazer isso, talvez fizessem juntos, ele poderia escrever coisas para ela.
Terminou de ler e saiu do quarto. Encontrou com ele mexendo nos vinis.
"Suas estórias estão cada vez mais parecidas com a nossa vida ou é o contrário?"
"Você sabe que para mim a vida só existe para servir de fundamento para a arte, eu já te disse isso, não?"
"Não, mas você escreveu em algum lugar."
"Como foi na galeria?"
"Como sempre é, cansativo, essa não é a parte que eu gosto."
"Desculpe por não ter estado lá."
"Não se preocupe, você já viu tudo que estava lá mesmo."
Ele colocou um dos discos para tocar e foram para a varanda. As vezes as pessoas podem pensar que varandas em casas de cidade não são tão aconchegantes quanto a de outros lugares, mas na verdade o que acontece é que as pessoas da cidade normalmente não se dão a chance de aproveitar a varanda que têm, quando têm.
Era para lá que iam quando ela queria pintar. Ficavam ouvindo a música vindo de dentro de casa e o barulho vindo de fora. Ele simplesmente ficava lá, sem fazer nada, talvez pensando, talvez não. No começo ela não gostava de pintar ali, não se sentia em casa, e achava estranha a atitude dele, mas com o tempo deixou isso de lado. As vezes achava que gostava mais daquela casa do que da sua própria.
"Você não tem a impressão de que isso tudo é muito perfeito? Muito vazio?" Ela perguntou. "Algumas vezes não consigo entender o que é isso que nós fazemos."
"Tudo é perfeito, dependendo de como você olha. O que nós fazemos é o que somos de verdade. Não teríamos nos conhecido se não fosse por isso."
"Mas não nos conhecemos, tudo que eu sei sobre você é que não gosta de dar nomes aos seus personagens."
"Isso não é verdade, você sebe muito mais sobre mim do que isso. Mas a verdade é que essa é a única coisa importante para se saber sobre mim."
Ela deixou a pintura secando, infinitas espirais em tons de vermelho e laranja, quase amarelo em algumas vezes, e os detalhes pretos em forma de V, talvez pássaros. Entrou na casa, só precisava de um copo de água. A música ainda tocava. Não a mesma, mas já não lembrava mais o que estava tocando no começo. Ela ouviu ele se aproximar, mas não se moveu. Ele soltou os cabelos dela e beijou-a no pescoço. Ele queria ir para a cama com ela. E, naquele momento, aquilo era tudo que ela precisava saber sobre ele.

3 comentários:

Yuri disse...

Dubalacobaco, Manné, mas seus textos tão começando a terminar bem com frequencia alarmante aqui.

Vou ver se escrevo algumas tristezas pra compensar.

Unknown disse...

Não dá pra dizer que as coisas acabam bem se elas ainda não acabaram, meu caro Wittlich. Pode continuar com suas alegrias que tristezas não me faltarão.

Yuri disse...

Farei o possível.