1.
pela janela do carro cai um véu, e é como se outra noite cobrisse a noite;
uma noite mais líquida e dura;
ausente de atrito, mas densa demais para que se possa chamar suave
2.
o dever dos vivos é cuidar dos vivos,
deixar que os mortos se cuidem entre si;
mas no espelho desta noite feita duplamente, parece que só consigo enxergar o reflexo dos fantasmas que moram em mim;
o brilho de ave dos olhos da minha avó, a barba do meu padrinho,
o número de telefone da Dinha, que só tinha sete dígitos;
estão todos tão nítidos para mim, nessa noite em que quase nada se enxerga;
3.
mas os vivos nos aguardam, sozinhos e com frio;
soterrados na fuligem, presos numa maca, nus ou quase nus;
tateamos através da noite dupla, tripla, infinita
nós que também vamos nus
na esperança de nos vestir do calor uns dos outros.