As notas que saíam do saxofone eram pura violência. No
palco, a banda de jazz parecia comedida, controlada, muito diferente da melodia
que fabricavam. Ao ouvir os primeiros acordes, ainda no bar, contíguo ao palco,
formando um L, ele sentiu o impulso de se afastar tanto quanto pudesse dali.
Mas a bebida era mais importante. Sem ela não iria suportar mais um minuto
naquele lugar. As sobrancelhas do homem de óculos se arquearam, escondendo-se
atrás da armação preta. Se perguntava por quê havia pedido um drink ao barman, e
se a sua montagem era tão complexa assim a ponto de justificar essa demora.
Deveria ter pensado nisso antes, pegado uma taça de champanhe, simplesmente.
Mas precisava de um teor alcoólico maior que aquele, disso estava certo. Quando
recebeu sua bebida, no que lhe pareceu séculos depois, partiu quase que
correndo do balcão. Era um movimento burro, como percebeu imediatamente; não
fazia ideia de para onde poderia ir e, ainda que soubesse, não poderia se
apressar tanto. Não porque sua afobação fosse chamar atenção das pessoas em
vestidos que pareciam feitos de lírio ou ternos qual o céu noturno, mas porque,
ainda que não lotada, a festa tinha gente o suficiente para lhe atrapalhar a
velocidade. Mas o saxofone continuava lhe martelar o cérebro, assim como a
alma, tinha que se afastar. A sensação de claustrofobia crescia. O homem de
óculos suava. Torrenciava. Não tinha problemas com a vestimenta formal, como
muitos, até se sentia bem com uma gravata bem enlaçada, mas por algum motivo
estava desconfortável naquela noite. Não em seu terno, mas em sua pele. Olhava
para todos, mas não reconhecia nenhum dos rostos. Tentava escutar as conversas,
mas era como se fossem travadas em idiomas que ele jamais havia conhecido.
Talvez esse realmente fosse o caso. Parecia estar numa bad trip, num estado de paranoia
ampliado. Tomou de um gole metade do conteúdo de seu copo, como desejando que o
álcool lhe subisse rápido à cabeça. O líquido desceu goela abaixo amargando mais
que a vida. Partiu em direção à escada, pensando que no andar superior o jazz
não o encontraria com tanta força. Esperava que algo acontecesse, podia
pressentir a aproximação, sem saber de que. O piso superior não lhe aliviou a
sensação de forma alguma. As notas pareciam repercutir diretamente do assoalho.
As pessoas, em suas vestimentas haute couture não diferiam em nada, poderiam
muito bem estar usando máscaras venezianas, tanto suas características se
mesclavam de uma à seguinte. Se dirigiu ao terraço, onde algumas pessoas
fumavam. Não tinham nenhum motivo especial para fazê-lo se não hábito, já que
em todos os corredores a fumaça dos cigarros era proeminente. O homem de óculos
achou que lá conseguiria respirar melhor e, de certa forma, estava certo. A
visão das arvores que rodeavam a mansão, ainda que com seu verde obscurecido
pela noite, o acalmava, assim como o lago próximo, refletindo a lua de uma forma
que parecia o ideal platônico desta cena bucólica. A música do salão principal
ainda o atingia, desconfortavelmente. O sax havia amainado, mas uma voz se
unira à harmonia. O homem de óculo observou um casal que caminhava abraçado pela
calçada de tijolos vermelhos (deviam ser vermelhos, ele pensava) que separava
as arvores do lago. O casal obviamente havia se desprendido da massa uniforme
da festa em busca de momentos de privacidade. Ainda que lhes dessem as costas,
o homem de óculos conseguia vê-los sorrir. Uma das pessoas tinha longos cabelos
loiros, outra curtos e escuros. Se vestiam como todos naquele lugar, mas, por
algum motivo, pareceram ao seu observador estranhamente individuais. Ele sabia
que, se os encontrasse depois, ainda que só os tivesse visto de costas,
conseguiria reconhecê-los. Havia algo no jeito que se moviam. Uma malemolência
que parecia mistura de álcool e de paixão. A vocalista cantava “another victim
on the promenade”, como se cantasse “I fall in Love too easily”. E o voyeur
sentiu nisso um mau agouro. Uma sensação de inevitabilidade se espalhou por seu
corpo a partir do estômago, como as borboletas que se libertam do casulo na
realização de uma paixão, mas não eram borboletas o que sentia, e sim insetos
frios, que deixavam seu corpo dormente de medo. Era como se uma faca lhe
penetrasse o abdômen. Sentiu vontade de gritar, mas a voz não lhe saiu. O
máximo que conseguiu por para fora foi um suspiro qual trompete com surdina.
Foi nesse momento que entendeu o que seu corpo já pressentira. Aquele casal que
lhe parecia tão apaixonado era, na verdade, uma cena de assassinato. Ele viu a
lâmina refletir o brilho da lua, o sangue se derramar pelo pavimento da
calçada. Viu a vítima, ainda num abraço amoroso em volta de quem lhe matava,
ser guiada até o lago, onde os dois entraram juntos. A roupa do homem de óculos
estava ensopada de suor, como se ele mesmo estivesse também entrando no lago.
Mais ninguém no terraço parecia perceber o que estava acontecendo. Ou não se
importavam, o que dava no mesmo. Quando o nível da água cobriu completamente os
amantes, o homem de óculos também se sentiu submerso. Não respirava. Buscava
por ar, sem sucesso. Um círculo de convivas se formara ao redor dele. Nenhum
movia um músculo para ajudá-lo, por mais que seu olhar suplicante lhe caísse
sobre os rostos que pareciam feitos de cera. Pelo contrário, pequenos sorrisos
se formavam naquelas faces que, cada vez mais, pareciam máscaras. E quanto mais
ele se debatia, sem conseguir respirar, as mãos como que tapando uma ferida em
seu ventre, mais se alargavam os sorrisos. O homem de óculos voltou a olhar
para o ponto onde os amantes haviam desaparecido sob a água. Deles, o único
sinal que viu foi também sua última visão: a lua refletindo nas lentes rodeadas
por grossos aros escuros.