São Paulo é bonita
Como o é a lua cheia
Em noites de chuva
segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
quinta-feira, 14 de janeiro de 2016
Terra cinzenta
A terra em
que te exilaste era estranha
Mulheres e
homens tinham amores cinzentos e empoeirados
Eles eram
eles mesmos cinzentos e feitos de pó,
e percebiam
que tú eras uma estrangeira logo à primeira vista:
pois teu amar era cinzento, mas de um tom amarronzado,
e tú não eras feita de pó, mas de pedregulhos
e tuas roupas eram feitas dos cabelos dos últimos homens e mulheres coloridos.
(foto por Diego Lombo Machado)
e tú não eras feita de pó, mas de pedregulhos
e tuas roupas eram feitas dos cabelos dos últimos homens e mulheres coloridos.
(foto por Diego Lombo Machado)
quinta-feira, 7 de janeiro de 2016
Revenant
A porta se abre com dificuldade. É como se o tempo
houvesse se acumulado em suas dobradiças, em sua fechadura. O tempo e o ócio.
Claramente o apartamento ficou intocado desde que eu o fechei, tanto tempo
atrás. Preciso fazer força para conseguir entrar. Uso o ombro, como num
daqueles filmes policiais. Não serviria de nada se ela já não estivesse aberta,
é claro. Mas entro ainda no impulso do escorão, de surpresa, sem ter tempo de
calcular meu primeiro passo. Não sei se foi com o pé direito ou esquerdo. Uma
superstição boba que não iria fazer a menor diferença. Eu sei que voltar aqui
não é uma boa ideia. O assassino voltando à cena do crime. Eu sabia que era uma
ideia ruim e voltei mesmo assim. Isso deve dizer um pouco sobre mim. Sobre como
sou burro. Ou sobre como sou dependente das coisas ruins que existem dentro de
mim. E nada poderia ser mais parecido com o meu interior do que este apartamento.
Parece o cenário de um filme de terror. A casa assombrada esperando uma família
ingênua se mudar para poder eliminar cada um de seus membros. Exceto que aqui
não há nenhuma família, apenas eu. Todos os móveis estão cobertos em lona
branca. Como se fossem, cada um deles, fantasmas inanimados, ridículos. E sobre
isso uma camada grossa, vil, de poeira se assentou. Não imagino de onde ela
pode ter vindo, todas a entradas estão fechadas. Mas ainda assim se acumulou,
grossa, sólida. O próprio ar esta estagnado. Imagino que entrar na tumba de um
faraó, sob uma pirâmide fechada há milênios, não poderia ser muito diferente
daquilo. Sei lá quanto tempo faz que cobri tudo que existia ali, naquele lugar
que chamava de casa, e me fui, como se tivesse algum outro lugar para ir. Depois
de atravessar aquela porta, fugindo, o tempo nunca mais passou da mesma forma. Era
como se passasse com uma velocidade tão grande que criava uma força centrípeta,
me mantendo parado em seu centro. O que é dizer, é como se o tempo não
existisse. Poderiam ter sido apenas dias, mas me pareciam – e a poeira
concordava comigo – séculos, muitas vidas, das quais eu não vivi nenhuma. Vou
descobrindo as peças uma por uma. Redescobrindo memórias, memórias que não
tinham o efeito que eu poderia esperar. O sofá estava cheio de fúria, as
estantes, com os livros de lombadas apagadas, eram o peso opressor inigualável
da memória e do esquecimento, a cama era frustração sexual, solidão, a mesa era
feita de fome, suas pernas desiguais a infindável necessidade, a busca por tudo
que nunca consegui, nunca iria conseguir. Nada era belo e tudo machucava.
Respirava com dificuldade. O pó e as lágrimas entupindo todas as vias da minha
alma, me sufocando num passado que eu não mais conseguia lembrar, que era tão
distante que não me causava efeito nenhum. Abandonar esse lugar tinha sido a
insensibilidade. Voltar era sentir apenas uma coisa; a dor de ter perdido o
passado e não ter conquistado nenhum futuro se não o lixo. Como poderia ser
diferente quando não se sente nada? Voltei porque achei que aquilo não era
viver, mas antes de levantar a última lona, eu sabia que encarar aquela imagem
seria morrer. Levantei o véu e lá estava eu, jogado no chão. A faca ainda
enfiada em meu coração. Minhas lágrimas imediatamente cessaram. Como Dorian
deve ter se sentido ao observar seu quadro, com seu último suspiro? Eu não
respirava já desde de não sei quando. Estava ali, jogado, estranhamente
conservado – mas não muito, era claramente um cadáver em decomposição ali, sua
pele esverdeada, sua carne carcomida, como que inexistente entre o osso e a
superfície – o meu cadáver. Eu o havia ocultado e fugido. Escapara de meu
próprio suicídio e andava por aí, morto por dentro. Não era o único a fazer
algo assim. Andando na rua é fácil para nos reconhecermos. Falta o brilho no
olhar, falta o tesão em viver. Lá fora era o contrário, nada doía, mas era
também incapaz de sentir prazer. De sentir o que fosse. E algo assim não passa
despercebido. Você aguenta, por um tempo. Mas o céu acaba caindo sobre sua
cabeça em forma de memória. Porque esquecer o valor de algo é uma forma de
lembrar, e é a pior forma possível. Não é só porque o quebra-cabeças perdeu
algumas peças que, ao montá-lo com lacunas, o tornamos completo novamente. Se
apaixonar não é a mesma coisa sem o frio na barriga. E, convenhamos, quem retribuiria
a paixão de alguém assim? O esquecimento nos faz sentir falta de quando
podíamos lembrar. Voltei porque sentia falta de como era viver. Mas voltei
sabendo que não existe remédio. As mudanças que acontecem sobre nós não podem
ser desfeitas, não se pode reviver. Só se pode mudar mais. Só se pode olhar nos
olhos de nosso próprio cadáver e reconhecer nossos atos. E o corpo, os restos,
nos olham de volta e nos enchem de raiva, de fúria, de solidão, de tudo que nos
machuca desde os primórdios da vida. É só isso que sobra. É o que há de impuro,
de podre, de ruim. É a frustração consigo mesmo, aquele veneno que tomamos
todos os dias, desde o berço, aquilo que nos faz crescer e faz nossas juntas
doerem a cada movimento, a amargura absoluta que acaba nos matando. Eu sabia
que não podia voltar a ter o que antes me doía, por mais que sentisse falta da
dor, da ansiedade, da aflição, daquelas coisas que me faziam um ser vivo. Tudo
que podia fazer era mudar mais, era morrer de novo. E olhando nos meus próprios
olhos, como através de um espelho baço, a alma se esvai.
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