terça-feira, 20 de outubro de 2015

Oração das Almas

Pra dona Glaucia, que me ensinou a ter menos vergonha delas

As almas guardam um silêncio todo digno, todo específico, nos cemitérios.

Não é como seu silêncio no dia a dia, quando elas vão nos visitar em nossas casas e lá ficam, tímidas, observando o que fazemos discreta e educadamente, talvez para compensarem o fato de nos estarem bisbilhotando a vida. São poucas as pessoas que se sentem confortáveis quando há almas as observando cozinhar, lavar-se, varrer o chão, amar. Tememos, talvez, o peso do julgamento - o silêncio das almas que nos visitam, por educado que seja, carrega em si algo de julgamento, como quem diz "No meu tempo, fazíamos diferente" ou "No Reino de Deus, não precisamos desse tipo de coisa". 

Mas não é assim nos cemitérios. Nos cemitérios, elas se sentam sobre as lápides, e nos miram com os olhos desbotados dos anjos de pedra e das fotografias pregadas nos túmulos (não com os olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo, porém, que nos cemitérios estão quase que sempre fechados). Elas se sentam em suas lápides, silenciosamente, e simplesmente indicam sua alegria pela nossa visita através das flores murchas e dos vasos quebrados, através dos gatos velhos e dos pássaros que voam entre as pedras.

Ou talvez eu esteja errado;

Talvez mesmo aí, em seu silêncio gentil e hospitaleiro, haja um quê de julgamento, como se nos dissessem, viu?, é fácil receber bem - sempre que visitamos, você insiste em prosseguir cozinhando, lavando-se, varrendo o chão, amando; quando basta que você se sente sobre sua lápide e demonstre sua alegria com nossa visita!
Talvez mesmo nos cemitérios, então, as almas nos julguem, de alguma forma. Mas não vou insistir nessa linha de raciocínio, ou meu texto pode ficar excessivamente metafísico.

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