sexta-feira, 12 de abril de 2013

A Fome

A Fome é diferente em cada um de nós. Todos, no entanto, estão famintos por algo. A Fome não pode ser saciada, não pode ser apaziguada, não existe solução. A Fome é a força motriz, é o motivo e o objetivo de tudo que fazemos. Alguns conhecem muito bem sua Fome, outros apenas arriscam dizer o que seria ela. Outros, como eu, e, talvez, como você, ainda não descobriram. Ou não aceitaram.

K, no entanto, era um jovem que conhecia muito bem sua Fome. E conhecia muito bem o poder que o desejo exercia sobre ele. Hoje em dia, especialmente para alguém jovem, parece cada vez mais difícil saber o que se quer. K sabia. Mas isso não era exatamente um alivio. Muito pelo contrário, saber o que queria era exatamente um problema para o jovem. A necessidade de K não era exatamente física, não era exatamente sexo. Era uma coisa que não existia, não propriamente, não quando se tem vinte e poucos anos. A Fome de K também não era por afeto, não era amizade o que ele queria, não era amor ou companheirismo, não era alguém com quem pudesse conversar ou alguém que pudesse compreendê-lo. Não, a Fome estava no laço e, mais do que isso, na complexidade dele. Nada que pudesse definir seria remotamente útil.

Tente lembrar uma daquelas cenas dos filmes mais antigos que mostravam o Dr. Hannibal Lecter poeticamente apreciando uma refeição. A carga irônica que se revelava quando o garfo entrava em contato com a carne, sem que o expectador tivesse certeza de qual a origem daquele alimento, mas que pudesse muito bem intuí-la. A tensão da faca cortando todas as células devidamente preparadas e arranjadas num magnífico prato, numa obra de arte culinária. A Fome não pode ser comparada com uma alimentação normal, só pode ser metaforizada nesse caso exatamente pela carga paradoxal que se encontraria nesse exemplo. E é aí que está a genialidade dessa metáfora. Mas na vida real a Fome é diferente, no mundo real a Fome é bem menos glamorosa, ainda que seja tudo que pode se existir de mais refinado numa existência. A Fome é psicopática. Sim, é uma obsessão, é uma pequena refeição que pode ser apreciada em todos os seus aspectos e que só serve para aumentar ainda mais a necessidade. Ou melhor, o desejo.

Não é algo bonito de se falar. Na verdade, pode muito bem chegar a ser pura e simplesmente errado falar sobre a fome alheia. Nada revela tanto da alma de alguém. Não as estórias de amor que tentam transformar todas as nossas características em metáfora, não as estórias de fantasia que são, em si, grandes metáforas; e, definitivamente, não as longas dissertações filosóficas sobre a psique de um personagem sobre a sociedade que o moldou e faz dele quem ele é. Quem faz de nós o que somos é a Fome. E – novamente – não é bonito que eu esteja aqui falando sobre a Fome que fazia de K quem ele era. Principalmente por ser essa Fome algo que ele mesmo não consideraria nem sequer ligeiramente elogiável. Que dizer então de reconhecer que era essa característica específica a base fundadora de seu ser? Da forma que levava sua vida? Para a maioria dos homens admitir tal Fome provavelmente não seria nem um pouco embaraçoso, mas o era para K. Ele era um jovem sensível e, mais do que isso, que pensava criticamente. E o seu próprio ser era o alvo preferido de suas críticas. Saber qual era sua Fome só deixava K ainda mais decepcionado consigo mesmo, e ele já era auto-depreciativo o suficiente.  Ainda que, de uma forma muito leonina, para o mundo exterior tentasse passar uma impressão de alguém seguro, até mesmo cheio de si. Pensava se todas as pessoas arrogantes eram tão inseguras quanto ele, mas duvidava que a resposta fosse afirmativa.

A Fome de K era o tempo. Era a espera. Era a tensão da caça. Era a conquista; não a conquista física, mas a conquista moral, espiritual, era a conquista total e definitiva. A Fome de K eram as relações de poder, na cama, nas carícias, nos olhares. Era saber exatamente qual efeito causava sobre alguém, fosse tesão ou fosse puro ódio, era a capacidade de transformar uma em outra e então de voltar ao começo. Era um trabalho lento, era um trabalho digno de um psicopata: a escolha da vítima, a escolha dos métodos e do momento, o prazer da vontade, do clímax e, depois, de se fazer ser odiado. Podia ser interminável, como uma dança, como o movimento de um pêndulo. Podia também ser muito rápido, todo o processo poderia durar apenas uma noite, mas nesses casos K não poderia aproveitar todas as suaves alterações no sabor de seu banquete, poderiam durar semanas, meses, até mesmo alguns anos. Podia ser fácil ou podia ser doloroso, era como experimentar um prato salgado para, na próxima vez, provar um doce. Uma quente e outra frígida.

4 comentários:

Anônimo disse...

Texto me deu inspiração para um desenho.

Unknown disse...

Pessoa anônima, envie seu desenho! Podemos postá-lo aqui, ou não, dependendo do que vc achar melhor, mas fiquei bem curioso para vê-lo!
É bom saber que tem alguém aí no mundo real lendo essas coisas = )

Anônimo disse...

Como posso enviar o desenho?

Unknown disse...

me manda um e-mail; emannuel138@gmail.com
aí pode dizer se vc quer que publique aqui ou não. = )
Ah, e coloca no assunto "desenho sobre o talvezblog" ou algo assim, ok?