sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Véspera
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
Capítulo 1
(retomando nossa velha amiga, protagonista de http://talvezblog.blogspot.com/2011/07/naquele-dia-literatura-pegou-ela-de.html . Atribua as falhas na gramática às quatro da manhã, ou assuma tratar-se de escolha estilística. De qualquer forma, tendo encontrado uma, contate-me, preu ver se dou um jeito)
Que as vezes tomamos decisões ruins, isso não era novidade. Mas ela se pegou incomodada, não faz muito tempo, com a intransigência da não repetição e com a intransigência da expectativa de repetição. A primeira, supunha, deveria atribuir a Deus, e a segunda, lhe parecia, aos homens.
Pois Deus calhou de inventar isso de não haver outra vez se não a uma, de forma que nossa intenção perde o protagonismo para nossa ação. Neste mundo horrivelmente material, não era o que ela desejava de fato que se manifestava, mas a consequência do que fazia. Não importava, dessa forma, a intensidade com que ela, por exemplo, desejasse a felicidade de alguém. A consciência deste alguém sobre sua intenção se limitava não a ela em si, mas àlguma consequência – muitas vezes beirando o desintencional – do que seu porco domínio sobre a gramática ou a mecânica do universo foi capaz de expressar. Havia aí uma terrível injustiça, ela percebia. Mais valioso era um cérebro afiado que um coração macio.
O primeiro conseguia emular intenções que nem tinha, pelo controle da consequência. O segundo se atinha a tornar a consequência o mais perto possível de sua intenção, nunca conseguindo tornar aquela tão bela quanto esta. E os dois, afiado e maciez, pareciam nunca pertencer ao mesmo dono. E se ela tinha a impressão de tê-los encontrado conjugados, percebia mais tarde que era normalmente um esperto amargo se cobrindo de açúcar, ou um coração estúpido demais para conseguir parecer tão bom quanto era. Mais terrível ainda, encontrara um ou outro donos beirando a esquizofrenia, servindo por vezes um, por vezes outro impulso, nunca combinando-os de fato.
A intransigência da expectativa da repetição, por sua vez, ela via de regra sentia mais de fora pra dentro que de dentro pra fora, pelo que achava mais lógico atribuí-la a um mal social que natural. Ela transmitia, e não negava isso, a imagem de uma mulher bastante forte e equilibrada – e, em alguma medida, era forçada a reconhecer, um pouco cabeça dura. Não sabia, afinal, outro meio de lidar bem na esfera profissional, por exemplo, e descobriu, a duras penas, que as portas se abriam em maior frequência na maioria das esferas sociais também com este perfil de solidez imaculada. Não se importava em absoluto com isso, a princípio. Lhe garantia uma espécie de distância a respeito da maioria dos distúrbios do mundo e, ao mesmo tempo, algo como que uma autoridade a respeito deles.
Igualmente agradável era para ela, porém, a possibilidade, entre os mais íntimos de seus amigos, de se libertar de sua aura de paz e coerência. Não que sentisse a necessidade disso com frequência; em alguma medida, ela sabia que não era de todo imprecisa sua noção de que todo palhaço acreditava, depois de um tempo, que seu nariz de verdade era o vermelho e redondo. Mas a possibilidade era dos principais atenuadores da necessidade, sua liberdade residia no poder ser mais que no ser.
A intransigência da expectativa de repetição se abatia sobre ela com mais peso quando, defrontada com um novo grande amor ou novo grande amigo, resolvia lhe conceder a possibilidade de a conhecer incoerente ou perturbada. O pequeno e novo pedaço de si que ela oferecia, no entanto, muitas vezes era recebido menos como uma inesperada dádiva e mais como uma desagradável surpresa. Não lhe concediam, nem lhe concebiam, a fraqueza, a pequenez ou a incoerência. Não fosse a fortaleza sorridente que se apresentava outrora, se afastavam – mais pelo medo da novidade que por qualquer maldade ou desprezo; ou, pelo menos, era isso que ela se forçava a supor, pelo bem de seu curioso sistema de amor próprio.
Foi munida desses intrigantes pensamentos que ela resolveu quebrar sua auto-promessa, e saiu, três horas da manhã, em busca de algum supermercado vinte-e-quatro horas que lhe vendesse creme de avelã. Ficou reconfortada com a possibilidade de sair para comprar creme de avelã, enquanto colocava um casaco por sobre o pijama e destrancava a porta. Por não ser nenhuma grande teóloga, era fatal sua incerteza quanto a ser um erro ou não ir comprar o creme de avelã, pelo menos se era um erro ou não ir comprar creme de avelã naquela específica vez, que jamais se repetiria. O que lhe reconfortava, porém, era saber, ao quebrar sua auto-promessa, que pelo menos em relação a si mesma estava livre da intransigência da expectativa de repetição.