quinta-feira, 22 de outubro de 2015

o Elefante

tem um Elefante na palma da minha mão

não é uma metáfora, ou uma experiência artística, ou um jogo de palavras,
não
literalmente, na palma da minha mão, tem um Elefante.

ele é orgulhoso, e algo cheio de si, como acaba acontecendo com os elefantes que saem muito cedo de casa, e é por isso que tenho que tratá-lo de Elefante, não de elefante.
fora isso, não há qualquer motivo para as maiúsculas.

as maiúsculas, todos temos que concordar com isso uma hora ou outra, são desperdiçadas na maior parte do tempo;
(e a pontuação)
mas eu sou, talvez, uma pessoa bem menos revolucionária do que gostaria, pelo que a maioria das minhas frases acaba, intimidada pelo olhar duro das sábias da gramática, cheia de vírgulas e pontos e parênteses e letras maiúsculas;
mas estou hoje inspirada pelo Elefante, este sim um verdadeiro revolucionário, e transgrido. minhas frases começam sem maiúscula, e todo este parágrafo - estrofe? - que não passa de um grânde parêntese, está sem parênteses para marcá-lo.
o Elefante acredita, e eu concordo com ele, que grânde deveria ser acentuada, e tú.
tú acentuada é muito mais bonita.
grânde acentuada tem outra grandêsa.

tenho um Elefante gramático e revolucionário em minha mão, e uma selva por todo meu corpo.
nas pontas dos meus dedos, caçoando do Elefante por sua empáfia, tem cinco jabutis. nenhum deles sabe o que empáfia significa, mas adoram a palavra, e acreditam que descreve perfeitamente o Elefante (ou, como eles gostam de dizer, "O Elefante").

no meu joelho direito tem uma cobra coral, que se enrosca em dias de frio com tanta força que me dói às vezes. ela também se enrosca quando está com saudades do Elefante, porque sabe que eu levo minhas mãos ao joelho quando ele dói. ela é ligeiramente apaixonada pelo Elefante, um amor que ela disputa com o tigre que tem no joelho esquerdo; 
o tigre, porém, só sabe machucar com arranhões, que são muito menos eficazes do que enroscos. quando está com saudades de seu amado Elefante, o tigre cutuca meu joelho esquerdo com sua garra, até que ele fique pinicando e eu tenha que baixar minhas mãos para coçá-lo. ele nem sempre faz isso, porém, só quando está com muita saudade, porque os jabutis que tem nos meus dedos gostam de mordiscar suas orelhas e bagunçar seu pêlo, e o tigre que tem no meu joelho é todo muito vaidoso. é um paradoxo terrível, pensa o tigre, que ele só consiga encontrar o Elefante que tanto o apaixona apenas quando seus pêlos estão bagunçados e quando não consegue conversar direito, porque tem um jabuti em sua orelha.

sempre que isso acontece, o tigre tenta puxar um papo com a mariposa que tem em minha canela, sua grande confissora.


não consegui falar com meu amor hoje...

por quê?

eu tinha um jabuti na minha orelha...

isso é uma metáfora, ou uma experiência artística, ou um jogo de palavras?

não, literalmente, mordiscando minhas orelhas, tinha um jabuti.


a mariposa dá de asas, suspira, e se prepara para uma conversa que ela sabe que vai ser confusa.
  

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Oração das Almas

Pra dona Glaucia, que me ensinou a ter menos vergonha delas

As almas guardam um silêncio todo digno, todo específico, nos cemitérios.

Não é como seu silêncio no dia a dia, quando elas vão nos visitar em nossas casas e lá ficam, tímidas, observando o que fazemos discreta e educadamente, talvez para compensarem o fato de nos estarem bisbilhotando a vida. São poucas as pessoas que se sentem confortáveis quando há almas as observando cozinhar, lavar-se, varrer o chão, amar. Tememos, talvez, o peso do julgamento - o silêncio das almas que nos visitam, por educado que seja, carrega em si algo de julgamento, como quem diz "No meu tempo, fazíamos diferente" ou "No Reino de Deus, não precisamos desse tipo de coisa". 

Mas não é assim nos cemitérios. Nos cemitérios, elas se sentam sobre as lápides, e nos miram com os olhos desbotados dos anjos de pedra e das fotografias pregadas nos túmulos (não com os olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo, porém, que nos cemitérios estão quase que sempre fechados). Elas se sentam em suas lápides, silenciosamente, e simplesmente indicam sua alegria pela nossa visita através das flores murchas e dos vasos quebrados, através dos gatos velhos e dos pássaros que voam entre as pedras.

Ou talvez eu esteja errado;

Talvez mesmo aí, em seu silêncio gentil e hospitaleiro, haja um quê de julgamento, como se nos dissessem, viu?, é fácil receber bem - sempre que visitamos, você insiste em prosseguir cozinhando, lavando-se, varrendo o chão, amando; quando basta que você se sente sobre sua lápide e demonstre sua alegria com nossa visita!
Talvez mesmo nos cemitérios, então, as almas nos julguem, de alguma forma. Mas não vou insistir nessa linha de raciocínio, ou meu texto pode ficar excessivamente metafísico.