domingo, 24 de maio de 2015

Hoje no metrô

Hoje algo um tanto diferente aconteceu. Encontrou Igor na estação Butantã, como quase toda sexta-feira depois do trabalho de ambos, só que dessa vez acompanhado da irmã. O Igor era um de seus melhores amigos: já se conheciam há alguns anos, já haviam conversado de tudo e já tinham passado por umas poucas e boas juntos, mas até hoje não tinha calhado de conhecer alguém da família dele. São todos do interior e quase nunca vêm pra cá. E agora a irmã tinha vindo casualmente visitar o irmão para o final de semana. Era muito parecida com ele de rosto, tinha olhos pequenos e um grande sorriso, e também tinha assim como o Igor um jeitão charmoso e uma voz forte. Mas mesmo assim, era bastante diferente dele de uma forma peculiar: era especialmente bonita. Foi difícil acostumar-se com a presença dela. Aquele encontro, tão rotineiro, familiar e casual hoje virou alguma coisa totalmente estranha. Ela era realmente muito bonita. Teve que se concentrar para manter a compostura e parecer normal – e fez isso com maestria, diga-se de passagem – enquanto se perguntava de onde aquela criatura alienígena e fascinante tinha aparecido, como foi de repente atrapalhar aquela zona de conforto tão banal e como era cosmicamente conectada ao seu melhor amigo ao mesmo tempo que sempre esteve tão longe? Foi um pouco perturbador. Se fosse possível tirar uma foto espiritual daquela situação mais cedo no metrô estaria boquiaberto e vidrado, cara a cara, sem piscar, vasculhando com atenção cada movimento no canto de seu sorriso e cada movimento em torno de seus olhos – como uma criança perdida na terra dos doces – e era isso de fato o que se segurava para não fazer no mundo não espiritual. Dizia-se qual o momento certo de desviar o olhar: ia dela para o irmão, para o teto, as janelas, o chão e de volta para ela, discretamente.  Até que graças ao mundo, que mantém certas coisas sempre do mesmo jeito - que usamos de referência para diagnosticar nossa própria sanidade ou lucidez -, todos ali de pé, olhando para os trilhos à frente como se não tivessem outro lugar para olhar, puderam ver a Luz no fim do túnel e foi um certo alívio imediato. Não vai ter mais que lidar com aquela tensão de novo, pelo menos não pelo fim de semana, o que já é um bom tempo para pensar no assunto. Enquanto isso, enquanto o fim de semana não começa oficialmente, pensou naquilo que dizem de que quando se dorme pensando em algo, é com isso que agente sonha. Boa noite.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O dragão sutil

Quando o dragão sutil apareceu pela primeira vez, mordeu fora, sem que eu percebesse, um pedaço do menor dos artelhos do meu pé direito, e o lóbulo da minha orelha esquerda. Só fui notar na manhã seguinte, porque meu pé estava formigando e havia algumas manchas de sangue no meu travesseiro. Na segunda vez, mais ousado, me subtraiu um pedaço, ainda bastante pequeno, da barriga, e um naco do tendão atrás do meu joelho esquerdo.
Da terceira vez, eu percebi sua aproximação. Gritei para espantá-lo - parecia pequeno como uma lagartixa, apesar do formato lembrar mais o de uma minúscula cobra alada -, mas meu tamanho e minha voz não serviram para intimidá-lo. Levou, de uma mordida, a ponta do meu nariz, de que eu tanto gostava.
Por esta época, a maioria das pessoas da vila já estava, como eu, subtraída de uns bons pedaços de si. À mestra curandeira já lhe faltavam quase todos os dedos, a capitã da guarda tinha minúsculas cicatrizes, por todo o braço esquerdo e pelas duas pernas, e o relojoeiro não tinha mais um dos olhos, nem sua famosa cabeleira. Eu estava entre as poucas pessoas que tinha acordado durante um ataque do dragão sutil, porém, e nenhum de nós tivera qualquer sucesso com urros ou tochas para espantar o monstro.
Pedi à confraria dos artesãos que me conseguissem uma espada. Resistiram, a princípio. Fosse o "dragão" - dava pra ouvir as aspas em seus ombros - tão pequeno e sorrateiro quanto se relatava, qualquer martelo de cozinha me serviria para amassar-lhe a cabeça. Seria, porém, uma quebra da tradição muito grave matar um dragão com qualquer coisa que não fosse uma espada, redarguiu a chefe da guarda em meu apoio, e a espada foi arranjada. (Soube, mais tarde, que, mais forte que o argumento da capitã, retinia no coração do confrade-mor o temor de ter seus dedos engolidos durante o sono, o que lhe tiraria a profissão).
Quando, seguindo a tradição, tentei cortar fora a cabeça do dragão sutil, minha espada prendeu-se em seu pescoço e tornou-se, a meus olhos, menor que um alfinete. Percebi que o dragão não era pequeno, mas que estava, de alguma forma, distante. E por distante que estivesse, além de perder minha espada entre suas escamas, perdi naquele dia minha mão direita entre seus dentes.
A vila prosseguiu sua vida, e eu, como sempre acaba acontecendo. Aos poucos, todos se acostumaram a amanhecer sem um dos olhos, ou com pedaços da orelha faltando, ou com um rim a menos.
Uns e outros tentávamos nos proteger. Armávamos redes ao redor das camas e armadilhas pela casa. Mas eram quase todas inúteis. O dragão sutil se encolhia - ou se distanciava, nunca soube entender isso muito bem - o dragão sutil se encolhia conforme a necessidade para atravessar mesmo as grades mais apertadas.
Com o tempo, o dragão sutil se tornou uma figura de linguagem - uma forma de se referir ao fenômeno perfeitamente natural de acordar com partes do corpo a menos. Apenas crianças e nós, insistentes supersticiosos, cremos em um dragão que realmente vem durante a noite nos mastigar pedacinhos fora.