sábado, 21 de maio de 2011

Piano

Há algumas semanas colocaram um piano na estação de metrô que costumo ter de usar todos os dias. É um projeto até interessante, o piano não é ruim e seu uso é livre, sem frescuras. Todos vocês já devem saber que tenho alguns hábitos noturnos, e mesmo que não os tivesse, sou obrigado a pegar um dos últimos metrôs para conseguir chegar em casa depois de sair da Universidade. Ah, nesse ponto provavelmente seria legal eu explicar que esse texto, extraordinariamente, é verídico - Ao menos em grande parte –, diferentemente dos que costumo escrever aqui, que são pura ficção, com apenas uma ou duas virgulas realmente minhas. Pois bem, o fato é que é verdade, e como verdade na vida de alguém não muito excepcional como eu, não tem nada que vá chamar muito a sua atenção, creio. As histórias realmente boas são pessoais demais para publicar aqui. Mas são essas coisas pequenas e em geral não-importantes que aquelas pessoas que escreviam, já muito tempo antes de eu juntar letras em palavras e palavras em frases e frases em textos de qualidade inferior, chamavam – e ainda costumam chamar, até onde sei – de epifania.

Mas voltando ao assunto. Todos os dias passo na frente daquele piano, quase sempre uma vez durante o dia e outra pouco antes do metrô fechar. Durante dia sempre tem alguém martelando as teclas dele, alguns com habilidade outros sem. Eu mesmo já arrisquei algumas notas mal-encadeadas baixinho, para ninguém ouvir, e olhando para os lados, como que fazendo aquilo na surdina. À noite a situação muda, quase sempre não tem ninguém tocando.

Algumas vezes tenho a sorte de voltar mais cedo, não muito, apenas alguns minutos. Numa dessas vezes, enquanto descia a escada rolante consegui ouvir as notas. Era uma música simples, mas nem por isso era feia. Era alguma coisa que eu nunca tinha ouvido antes. Ou simplesmente não reconheci, costumo demorar para reconhecer até mesmo algumas das músicas que mais gosto: não me vem o nome, ou o artista. Mas a questão é que não reconheci, e ainda não consigo reconhecer. Quando terminei de descer as escadas vi a velhinha tocando. Uma grande sacola de plástico encostada do lado do piano, não consigo encontrar nenhuma palavra melhor para descrevê-la do que maltrapilha. Não é uma palavra que eu goste, mas resume bem a situação. As roupas visivelmente remendadas e velhas, os cabelos, apesar de presos numa espécie de trança ou rabo-de-cavalo, estavam bagunçados. Não conseguia ver o rosto dela com clareza, ela se debruçava sobre o piano de uma forma desesperada, dava para ver – até mesmo sentir – a emoção que colocava em cada nota que fazia. Ela estava sozinha, me impressionou que ninguém parasse para ouvi-la. A música era realmente boa. Mas talvez isso não devesse me surpreender, a verdade é que eu nem mesmo parei, apressado que estava para chegar em casa e descansar depois de um dia cansativo. Mas quando atravessei a catraca pensei que deveria ter ficado lá, não muito só alguns minutos.

Várias vezes depois disso passei por aqueles lugar à tarde, e em algumas dessas vezes tive a chance de ouvir pessoas que tocavam muito bem, que juntavam uma pequena plateia ao seu redor. Às vezes não tão pequena assim para ser sincero. Mas nenhuma outra vez vi alguém debruçado sobre o piano como aquela velhinha. Ao menos não até ter a oportunidade de voltar um pouco mais cedo de novo. E lá estava a velhinha. A mesma grande sacola de plástico, talvez fosse outra roupa, mas tão velha e remendada quanto a outra, e tão curvada sobre as teclas quanto antes. E novamente ninguém tinha parado para ouví-la, mas dessa vez eu parei. Não fiquei muito tempo, é verdade, no máximo três minutos, mas nesses minutos fiquei imaginando uma história para aquela pessoa. Como havia aprendido a tocar piano ainda criança, como aquilo era agora importante para ela. Talvez o momento mais aguardado do dia dela fosse aquela hora, já com a noite adiantada, na qual sentava-se num banco frente a um piano em uma estação de metrô e acariciava as teclas como as velhas amigas que elas na verdade são.

Nunca vi o rosto da mulher. Depois desses três minutos saí do metrô pensando na importância da arte na vida das pessoas, e gostando dela um pouco mais do que já gostava. Até agora não voltei a encontrar a velhinha tocando no metrô.