segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Last Goodbye

Já alguns dias tinham se passado, mas ele ainda não lera a carta de Julia. Sempre a carregava consigo mas a coragem sempre lhe faltava quando pensava em desfazer as dobras que escondiam a última mensagem que ela havia lhe deixado. Dobraduras tão cuidadosamente feias que pareciam negar a situação na qual haviam Sido confeccionadas. Ter aquela carta junto a si era talvez uma forma que ele encontrara de tê-la sempre por perto, ela que materialmente deixara pouco, apenas algumas fotografias, na maioria das quais ela sequer aparecia; não ler a carta era uma forma de manter o relacionamento como algo bom, algo que se mantinha intacto.

Agora era comum que às vezes não conseguisse ficar em casa. Saía pela porta de repente, sem que realmente pensasse em fazê-lo, e vagava pelas suas sem destino, sempre com a carta. Naquela noite, quando se deu conta estava com os olhos em lágrimas, lagrimas gélidas num frio que o castigava, pois sob as duas fileiras de botões fechados do sobretudo vestia apenas uma calça jeans, tinha esquecido de se proteger melhor, só por reflexo não esquecera de vestir e fechar o casaco. A respiração saía do nariz avermelhado e se condensava no ar, os dedos estavam congelando, se remexendo nos bolsos como vermes, sem luvas para protegê-los. Esses dedos acabaram por encontrar a carta. Até então ele não pensava em nada.

Nunca fora muito afeito a bebedeiras, ao menos não até o acontecido com Julia, e mesmo depois de passados esses meses nos quais a bebida se tornara muito mais próxima ainda não conseguia reagir bem a ela. Talvez fosse esse o preço por começar tarde. Mas não se importava muito com isso, só queria esquecer, parar de pensar nela por alguns momentos. Na verdade suspeitava que nem mesmo isso conseguia, mesmo bebendo não devia conseguir tirar a impressão que ela causara em sua alma assim tão fácil. Mas no fim o resultado era o mesmo, na manhã seguinte não conseguia lembrar nada que havia pensado na noite anterior, e para ele isso tinha o mesmo efeito que não pensar em nada. Algumas vezes ficava preocupado com o que poderia fazer enquanto estava bêbado, e se enraivecia com a sujeira que tinha de limpar todos os dias, tivera até mesmo que jogar fora alguns livros e objetos de casa pois não podiam ser mais úteis, e cheiravam como o inferno. Apesar disso nunca tentara nada mais pesado do que a bebida. Ao menos até agora ela estava servindo muito bem ao seu propósito, se algum dia isso deixasse de ser verdade pensaria no que fazer. Ou melhor, não pensaria, simplesmente faria. Já começava a se conformar que cedo ou tarde se daria um fim semelhante ao de Julia.

Encontrar a carta automaticamente o levou ao bar mais próximo, onde gastou todo o dinheiro que carregava consigo e grande parte das horas que deveria passar dormindo. Quando saiu do lugar não conseguia pensar, mas isso não quer dizer que os seus sentimentos o tivessem deixado, muito pelo contrário, sem o pouco de razão que ainda lhe restava deixava as lágrimas correrem soltas pelas bochechas, verdadeiros rios. Começou a correr, e correu por aquilo que pareceram ser horas, sob o sobretudo já estava muito suado e no horizonte já se divisavam indícios de Sol, aqueles que lentamente vão tornando a noite azulada para depois de repente derreter no cinza que precede a alvorada. Talvez o suor tivesse feito com que o álcool se tornasse ineficaz, e ele chorou ainda mais por isso, não conseguira esquecer aquele momento em que sua mão fria encontrou a carta num dos bolsos. Talvez não saber nada sobre os motivos que levaram Julia a tão desesperada medida fosse uma das coisas que mais o afligia. Em sua ignorância não conseguia evitar os pensamentos que a culpa fosse dele. E com esse tipo de pensamentos é difícil viver em paz. Decidiu que se não era aquele o momento de por fim ao seu sofrimento era ao menos o de por fim à sua dúvida. Lentamente retirou a carta do bolso e desfez as dobraduras, em vários momentos chegando muito perto de desistir, de deixar para outro dia. Mas talvez o efeito do álcool não tivesse passado de todo, se sentia corajoso.

Não pode impedir que as lágrimas voltassem a seu rosto, dessa vez ainda mais abundantes. Não pode impedir que o dia começasse e o mundo acordasse enquanto lia cada palavra – cada letra – que Julia lhe deixara com cuidado. E não pode impedir que seus pés voltassem a correr quando descobriu o motivo, ainda no meio da carta, mesmo sem saber para onde eles o levavam, que fim o aguardava. Não pode impedir que o motorista se surpreendesse ao ver surgir um homem aos prantos correndo frente ao seu carro. Da mesma forma não conseguiu impedir que o choque quebrasse muitos de seus ossos, abrisse muitos ferimentos. Não pode impedir que o vento levasse sua carta – a carta de Julia – não se sabe pra onde, para sempre impedindo-o de lê-la. Não pode impedir que a ambulância demorasse mais do que poderia. Não pode impedir que seus olhos se fechassem, para sempre.


 

***

Passei muito tempo sem escrever sobre isso. De fato, passei muito tempo sem escrever aqui no blog. Podia dizer que estava em crise criativa, e de certa forma isso ia ser verdade, mas não ia ser desculpa. Mas nenhuma história devia passar tanto tempo assim sem ser trabalhada antes de ser concluída, a não ser que o autor se proponha a revisá-la por inteiro. Não fica a mesma coisa, ela perde a pegada inicial, perde o feeling. Sem falar que perde apelo para com os leitores, hehe. Então acho que vou acabar essa história por aqui, da próxima vez vou trazer alguma coisa diferente, talvez até mais feliz – provavelmente não pesada a ponto de conter suicídio, quero dizer. Mas por enquanto é isso, espero que tenham gostado!

P.S: No último parágrafo me utilizei da tal "licença poética" na concordância para tentar criar um efeito mais subjetivo, espero que tenha funcionado.